Opinião

Apontamentos acerca do delito do artigo 272 do Código Penal

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13 de julho de 2021, 17h05

Inserido no âmbito dos crimes contra a saúde pública, o artigo 272 do Código Penal tipifica a conduta de falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de substância ou produto alimentício. A atual redação do tipo penal remonta ao final da década de 90, oportunidade em que a Lei nº 9.677/1998 ampliou as hipóteses de criminalização e aumentou as penas até então previstas na versão originária da codificação de 1940. Em suma, o caput do artigo 272 incrimina aquele que "corromper, adulterar, falsificar ou alterar substância ou produto alimentício destinado a consumo, tornando-o nocivo à saúde ou reduzindo-lhe o valor nutritivo". Mais adiante, especificamente no §2º, a legislação igualmente admite a punição pela modalidade culposa, apenada com detenção, de um a dois anos e multa.

É possível dizer que a citada alteração legislativa promovida em 1998 trouxe alguns aspectos positivos e outros negativos. A exemplo dos primeiros, verifica-se a inclusão expressa da possibilidade do cometimento delitivo nos casos de alteração de bebidas, alcoólicas ou não. Afinal, a referência exclusiva ao elemento normativo "substância alimentícia", somada ao respeito da legalidade no âmbito penal, praticamente obstava a possibilidade de incriminação nos casos que envolvessem, v.g., cervejas ou destilados.

Por outro lado, a mudança legislativa acarretou algumas impropriedades, as quais, inclusive, não passaram sem críticas pela doutrina. A parcial fusão dos dispositivos originais contidos no Código Penal de 1940 nos artigos 272 e 273 levou à notória desproporcionalidade. Isso porque a formulação vigente comina a mesma sanção, reclusão de dois a quatro anos e multa, tanto à corrupção de produto alimentício que se torna nocivo à saúde, quanto à situação em que o seu valor nutritivo é simplesmente reduzido. A nocividade à saúde inegavelmente coloca esse delito em efetivo plano de crime de perigo, enquanto a redução de valor nutritivo, sem qualquer potencial de dano ao organismo humano, mais se aproxima à dimensão de fraude, na qual a vítima imagina consumir algo que não corresponde exatamente à realidade. Tratar essas duas perspectivas de modo idêntico não parece ser, definitivamente, a melhor solução.

Seja como for, compete à doutrina lapidar os limites exatos desse tipo penal incriminador, sempre com a finalidade de conferir ao operador do direito a expectativa de taxatividade da lei e, em consequência, segurança jurídica. Uma leitura mais açodada da redação do código pode conduzir a um nível equivocado e problemático de amplitude da incriminação, fator a prejudicar a própria atividade industrial de produção de alimentos.

Não há dúvidas de que o legislador, seja em 1940 ou em 1998, lançou mão aqui da estratégia dos crimes de perigo, característica, aliás, de praticamente todos os delitos contra a saúde pública. Os crimes de perigo funcionam como autêntica antecipação de tutela, em face da qual a opção político-criminal consiste em tipificar comportamentos anteriores e comumente causadores de dano. Há, portanto, uma "emergência penal" e certa "ansiedade legislativa". Ao invés de aguardar a ocorrência do dano, incrimina-se aquela conduta que possui relevante probabilidade de causá-lo. Não se espera que o consumidor se alimente com a substância imprópria, desde logo incrimina-se a sua própria corrupção. Em resumo, o artigo 272 é a antessala da lesão corporal.          

Na medida em que os crimes de perigo são verdadeiras regressões temporalmente ideais, o dilema do penalista passa a consistir no grau e nos limites dessa antecipação de tutela. Em outras palavras, qual é o nível de perigo e as características da conduta que a fazem merecer, independentemente do dano efetivo, a incriminação? Essa indagação aparece em diversos nichos de atenção penal, tais como os crimes ambientais, delitos de trânsito, sistema financeiro, entre outros.

No âmbito específico do artigo 272 e da proteção da saúde pública, três elementos do tipo penal são fundamentais para a elevação das fronteiras de incriminação. Dois deles são bastante visíveis e explorados pela doutrina; o outro, ao contrário, não é muito percebido pela literatura especializada. Os dois primeiros dizem respeito aos atributos da substância ou produto alimentício e ao tipo subjetivo.

Ao exigir que o produto alimentício seja "nocivo à saúde" ou tenha reduzido "valor nutritivo", o legislador limita a incriminação, construindo aqui um paradigmático delito de perigo concreto. Em outras palavras, exige, exatamente por meio desses atributos, que o produto coloque concretamente em risco a saúde humana ou implique em engodo no tocante às suas qualidades. Daí porque, em termos mais práticos, impossível a condenação criminal sem a avaliação pericial que comprove essas particularidades. De outro lado, ao se valer da possibilidade de tipificação culposa do artigo 272, o legislador ampliou a incriminação, promovendo a criminalização daquelas hipóteses em que esse perigo concreto não decorre somente da subjetividade dolosa, mas igualmente daquelas outras em que deriva de violação de deveres de cuidado do produtor. Isto é, a violação de deveres de cuidado, a exemplo da inobservância dos devidos insumos ou métodos utilizados na linha de produção industrial, pode conduzir, a depender de outras variáveis legais, à imputação culposa do crime de perigo concreto.       

Entretanto, e como dito anteriormente, há um terceiro elemento central e bastante desprezado na percepção dos limites da incriminação contida no artigo 272 do Código Penal. Trata-se da exigência normativa de ser o produto alimentício "destinado ao consumo". Existe aqui uma sutileza essencial. Ser o produto alimentício destinado ao consumo não é o mesmo de ser a produção destinada ao consumo. Afinal, dizer que a produção de alimentos é destinada ao consumo é dizer o óbvio, ou seja, é inerente à produção de alimentos humanos a sua direção ao consumo. Ao contrário, o produto alimentício "destinado ao consumo" é aquele que já foi produzido, finalizado e, após esse processo, reservado ao consumo. O tipo penal, portanto, não se refere ao processo de produção, mas, sim, ao produto produzido e destinado ao consumo.

Essa distinção é importante e, caso não feita, pode conduzir a severos impasses e deslizes interpretativos. Um exemplo notório disso é o representado pela certificação de qualidade existente nas melhores práticas da indústria alimentícia. Durante o processo produtivo, cuja cadeia reúne centenas ou milhares de fornecedores, colaboradores, máquinas e métodos, é possível a ocorrência de imprecisões, acidentes, falhas humanas ou mecânicas que comprometam unidades ou parcelas daquela produção. É exatamente por isso que as indústrias estabelecem e desenvolvem a expertise de conferir e certificar a qualidade de todas as unidades produzidas, verificando a sua composição, as suas características e a inexistência de malefícios ou nocividades no alimento.

De acordo com o tipo penal do artigo 272, o delito apenas é possível ocorrer após essa certificação, pois é somente a partir daí que se compreende aperfeiçoado o elemento normativo "destinado ao consumo". Antes disso, o que se tem é uma produção obviamente destinada ao consumo, mas não uma unidade de produto concreto efetivamente destinado ao consumo. 

Se assim não fosse, o artigo 272 seria disfuncional. A sua finalidade, destacadamente na modalidade culposa, implica no incentivo às pessoas jurídicas para a adoção de planos empresariais concernentes à criação de métodos e mecanismos de conferência e certificação da autenticidade e qualidade dos produtos, impedindo, como via de consequência, que cheguem deformados ao consumidor. Essa cultura e esse cuidado empresarial implementam-se em todas as fases produtivas, mas se destacam e consolidam ao final. Por isso mesmo, o produto destinado ao consumo é aquele que concretamente superou todas essas etapas e cuidados, chegando à fase final e ultrapassando todos os rigores do controle e supervisão. Evidentemente que aquelas unidades que foram descartadas ao longo do processo de produção não se constituem como produtos destinados ao consumo, já que a sua exclusão aponta para o reconhecimento de sua inaptidão ou imprestabilidade.

É nesse ponto que o elemento normativo "produto destinado ao consumo" se mostra como fundamental elemento de limitação e racionalização do tipo penal. A sua adequada leitura comporta três positivas consequências. Em primeiro lugar, circunscreve a exata distinção entre produção e produto "destinado ao consumo". Além disso, impulsiona as empresas a adotarem métodos rigorosos de certificação da condição de cada uma das unidades de sua produção. Por fim, e o mais importante, protege o consumidor e garante a qualidade dos alimentos oferecidos.   

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