Opinião

Sandbox, regulação e disruptura no mercado de combustíveis

Autores

  • Alberto Coimbra

    é sócio do escritório Magro Advogados coordenador das equipes de contencioso cível precatórios/creditórios e regulatório pós-graduando em Direito Processual Civil pela PUC-SP.

  • Adisson Leal

    é advogado no Sturzenegger e Cavalcante Advogados Associados e doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo.

12 de julho de 2021, 9h13

Longe dos holofotes das grandes causas e do correspondente clamor social e político das demandas constitucionais mais sensíveis para o país, o Supremo Tribunal Federal acaba de declarar inconstitucional a Lei nº 9.023, de 25 de setembro de 2020, do estado do Rio de Janeiro, que proibia o serviço de abastecimento de veículos ao consumidor fora do estabelecimento comercial autorizado. No foco da proibição, o delivery de combustíveis encabeçado pela GOfit Inovações Tecnológicas S.A, empresa pioneira nesse serviço no Brasil.

Basicamente, o serviço se desenvolve por meio de um aplicativo (GOfit) pelo qual o consumidor indica o local onde deseja realizar o abastecimento, fazendo com que um "minicaminhão tanque" se desloque para atender ao cliente.

Assim como vivenciamos quando da chegada do Uber ao Brasil, o novo modelo de negócio implementado pela GOfit gerou reações de diversos players do ramo, desde postos de combustíveis até um sindicato com atuação em Minas Gerais  fora, portanto, do espectro inicial de atuação da empresa de delivery. Por seu turno, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro editou a referida lei, proibindo "a prestação de serviço ao consumidor que tenha como objeto o abastecimento de veículo em local diverso do posto de combustível" (artigo 1º), sujeitando o infrator a multas de mil a cinco mil Unidades Fiscais de Referência (UFIRs) e até ao cancelamento da inscrição estadual.

Diante da proibição, chega-se ao ponto mais interessante do imbróglio: a empresa levou à Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) um pedido de autorização para o desenvolvimento do modelo de negócio como projeto-piloto, uma prática experimental que, dentro dos setores ultra regulados como o de combustíveis, se convencionou chamar de sandbox regulatório.

Literalmente "caixa de areia", a expressão sandbox designa a montagem de um ambiente destacado do ambiente geral, especificamente para o desenvolvimento de experiências.

A ideia é bastante difundida na informática, nomeadamente no desenvolvimento de jogos e sistemas, com a criação de "camadas" destacadas em que o usuário pode ter uma experiência ampliada sem o comprometimento da camada tradicional de funcionalidades e de segurança. Para que não se pense que se trata de uma prática distante da realidade cotidiana: se o leitor é um dos mais 3,2 bilhões de usuários do navegador Google Chrome em todo o mundo, provavelmente tem sido parte, ainda que inadvertidamente, de um sandbox em matéria de privacidade. Nas configurações do navegador, na aba "privacidade e segurança", há um tópico chamado "sandbox de privacidade", definido pelo desenvolvedor como uma iniciativa em desenvolvimento que "ajuda na proteção contra mecanismos de rastreamento".

Já bastante desenvolvido na área financeira, o sandbox regulatório é definido pelo Banco Central do Brasil como um "ambiente em que entidades são autorizadas para testar, por período determinado, projeto inovador na área financeira ou de pagamento, observando um conjunto específico de disposições regulamentares que amparam a realização controlada e delimitada de suas atividades".

No Reino Unido, precursor da prática, o Financial Conduct Authority a define como uma oportunidade para que negócios testem proposições inovativas no mercado, com consumidores reais. Na Alemanha, a prática intitulada reallabore é regulada pelo Bundesministerium für Wirtschaft und Energie (Ministério da Economia e da Energia), que destaca um duplo viés desse tipo de estratégia: oportunizar a inovação e, ao mesmo tempo, aperfeiçoar a regulação por meio de uma "aprendizagem regulatória".

De volta aos combustíveis, a ANP, por meio de nota técnica, acaba autorizando a GOfit a operar dentro desse contexto experimental, atendendo a uma série de regras de segurança e limitada a "caixa de areia" às regiões cariocas de Barra da Tijuca, Recreio dos Bandeirantes e Vargem Pequena. Para tanto, aparou-se em pareceres de sua Superintendência de Distribuição e Logística e da Advocacia-Geral da União, que vislumbraram neste projeto-piloto uma oportunidade de abertura do setor de combustíveis à inovação.

No entanto, mesmo com o aval da ANP, o imbróglio jurídico permaneceu bastante acirrado, culminando com o ajuizamento, pelo diretório nacional do Partido Liberal, em outubro de 2020, da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6580, visando à declaração de inconstitucionalidade da lei fluminense que proibiu o serviço de delivery de combustíveis.

O partido arguiu a inconstitucionalidade formal da lei, por usurpação da competência privativa da União para legislar sobre energia, disposta no artigo 22, IV, da Constituição Federal, considerando a amplitude conferida ao termo "energia" pela Lei nº 9.478/97, que contempla o mercado de combustíveis no âmbito da política energética nacional. Nesse ponto, inclusive, destacou precedente do próprio Supremo em que o ministro Octavio Galotti considera "induvidosa a inaptidão do Estado-membro para legislar sobre qualquer espécie de combustível" (ADI 855, relator p/ o ministro Gilmar Mendes, DJe 27.3.2009).

Instada a prestar informações à corte, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro consignou que a lei impugnada estabeleceu "vedação a atividade potencialmente lesiva ao consumidor e ao meio ambiente", buscando deslocar a ratio da norma para a competência concorrente de União, estados e Distrito Federal para legislar sobre produção e consumo, sobre florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição, sobre responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, e sobre previdência social, proteção e defesa da saúde. Assim, a lei impugnada estaria em conformidade com a repartição vertical de competências em que cabe à União estabelecer normas gerais, restando aos estados e ao Distrito Federal uma competência legislativa mais específica voltada ao atendimento de suas particularidades.

A ANP interveio no feito na condição de amicus curiae, trazendo, enfim, ao conhecimento da corte a prática do sandbox regulatório em um projeto-piloto de delivery de combustíveis, justamente o leading case da GOfit. Já desde a primeira fiscalização realizada pela agência, percebeu-se o potencial disruptivo do negócio e seguiu-se uma autorização limitada e controlada, na verdadeira linha de um sandbox regulatório. A ANP informou que, nos moldes do termo de compromisso autorizativo firmado com a empresa, adotaram-se as devidas cautelas relativas às questões de segurança da operação e que vem acompanhando o exercício da atividade sem perceber nenhum tipo de intercorrência negativa.

Aliás, importante notar que a Resolução nº 41/2013 da ANP veda a comercialização e a entrega de combustível automotivo em local diverso do estabelecimento da revenda varejista, o que reforça a sensibilidade do órgão para o surgimento de um novo modelo de negócio que exija uma reflexão sobre as proibições e sobre a necessidade de revisão de suas próprias normas. Infelizmente, trata-se de postura autocrítica rara na Administração Pública brasileira, normalmente hostil ao empreendedorismo e à inovação.

Enfim, por maioria de votos, na linha do voto condutor da relatora, da ministra Cármen Lúcia, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente a ação direta, reconhecendo que a legislação estadual impugnada usurpou competência privativa da União para legislar sobre energia. Restaram vencidos os ministros Marco Aurélio e Edson Fachin, que situaram a lei fluminense no contexto da tutela do consumidor e, portanto, da competência concorrente inscrita no artigo 24 da Constituição.

Apesar da divergência, a conclusão da corte chancela não apenas um novo modelo de negócio, seguindo uma linha mais liberal, à semelhança, por exemplo, do entendimento firmado no caso da terceirização da atividade-fim (Tema 725 da sistemática da repercussão geral), em que se consagrou a proteção constitucional da liberdade de desenho empresarial (artigos 1º, IV, e 170 da Constituição), como também chancela o modelo de experimentação real do sandbox, prestigiando a disrupção e oportunizando o aperfeiçoamento da regulação do setor de combustíveis.

Trata-se, assim, de um importante precedente no sentido da consolidação de um modelo legislativo menos intervencionista na atividade econômica e que, ainda que se trate de setor ultrarregulado, permite a experimentação com vistas ao desenvolvimento do setor por meio da inovação.

E, para que não se olvide da tutela do consumidor, esta mantém-se consagrada na medida em que a segurança do serviço de delivery de combustíveis obteve aval expresso da área técnica da ANP e a autorização de atividade econômica disruptiva traz consigo ganhos significativos em termos de abertura de mercado e de garantia da concorrência, um dos mais caros fundamentos do mercado de consumo e que só beneficia o próprio consumidor no contexto geral de desenvolvimento da economia.

O tema do sandbox regulatório deve permanecer na pauta do dia, encorajando novos modelos de negócio, que passam a se desenvolver sob o crivo do Estado, e não à margem dele.

Autores

  • é advogado do Trench Rossi Watanabe.

  • é coordenador da Filial Brasília do escritório Magro Advogados, doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo, professor e coordenador do Curso de Direito da Universidade Católica de Brasília, foi pesquisador-visitante da Ludwig-Maximilians-Universität München e foi assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal.

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