Opinião

31 anos do ECA e as crianças trans no Brasil

Autores

  • Carlos Nicodemos

    é advogado do NN-Advogados Associados membro do Conselho Nacional de Direitos Humanos e da Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFOAB presidente da Comissão de Direito Internacional da OAB-RJ e integrante do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH).

  • Thamirys Nunes

    é coordenadora nacional da Área de Proteção e Acolhimento da Criança Adolescente e Famílias LGBTI+ da Aliança Nacional.

12 de julho de 2021, 21h28

Na esteira do processo de redemocratização do Estado brasileiro, que começou em 1985, o país iniciou uma trajetória, que se estende até hoje, de reordenamento de sua estrutura normativa, especialmente de temas e grupos sociais que, no marco constitucional da Carta Política de 1988, passaram a dispor de leis que os consagrassem na nova democracia como verdadeiros cidadãos. É o caso dos direitos da criança e do adolescente!

Esse processo político que une democracia e direitos humanos, no caso de criança e adolescente, inicialmente passa pela concepção internacional do marco filosófico e ético do mundo civilizatório, que é a doutrina da proteção integral.

O resultado desse impulso democrático é a pedra fundamental da nossa Constituição de 1988, propriamente no artigo 227, a adesão imediata do Estado brasileiro à Convenção dos Direitos da Criança das Nações Unidas (ONU), em 1989, e o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8069/90. Temos, então, um tripé de proteção normativa que cumpriu e cumpre um importante papel na incipiente e resistente democracia moderna brasileira.

O passo seguinte para consagração da cidadania infantojuvenil seriam as políticas públicas de caráter estruturante e complementar especial, visando à prometida proteção integral para todas as crianças e adolescentes.

Sim, aqui optamos em dar o norte plural, ou seja, de todas, todos e todes, pois, no contexto das cidadanias sonhadas na democracia social, muitas foram isoladas e invisibilizadas e ficaram na estrada, como as crianças e adolescentes trans.

A invisibilidade das crianças e adolescentes trans acarreta a exclusão desse tema em debates nos campos familiar, sociais, normativos e políticos, resultando na não existência de políticas públicas que visem a sua proteção. É preciso proteger, acolher e respeitar todas as crianças e adolescentes em sua integralidade, não submetendo-as, então, a imposições relativas ao seu gênero. 

Crianças e adolescentes trans, devido à sua condição de gênero, tornam-se ainda mais vulneráveis, uma vez em que sob suas existências recaem altíssimos níveis de preconceito, desinformação, estigmas religiosos, abusos, violências, expulsão familiar e afetiva e evasão escolar. 

Se inegável é a dificuldade encontrada por adultos LGBTI para o livre exercício dos seus direitos, ainda maiores são as dificuldades encontradas por crianças e adolescentes trans, que por sua condição de criança e adolescentes já necessitariam da proteção e suporte da família, da sociedade e do Estado, e ainda mais em razão das suas questões de gênero. 

É assustador pensar que, ao aceitar um filho trans, os pais também têm de aceitar uma expectativa de vida de 35 anos, muito inferior à de pessoas cis-heteronormativas, que é de 75 anos.

Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), em 2020 a pessoa trans mais jovem assassinada tinha 15 anos. Em 2021, essa idade caiu para 13 anos. E os dados ficam piores: em 2020, dos 175 assassinatos de pessoas trans no Brasil, oito vítimas tinham entre 15 e 18 anos.

Desinformados, assustados e intimidados com esse futuro violento, muitos pais não permitem que seus filhos existam enquanto pessoas trans, submetendo-os a protocolos de "cura", estupro "corretivo", abusos emocionais e mentais, na tentativa de lhes impor uma cisgeneridade e garantir um futuro que acreditam ser mais seguro.

E quando se sentem cansados e exaustos de lutar contra a natureza de seus filhos, muitos pais/responsáveis expulsam seus filhos trans de casa. Segundo a Antra, a idade em que essas expulsões são mais recorrentes é 13 anos. Juntamente com a expulsão familiar vem a evasão escolar. E, sem amparo legal e políticas públicas assertivas, essas crianças e adolescentes trans vão para as ruas.

É verdade que existem muitas famílias que acolhem seus filhos trans, mas a qual custo? Muitos pais, ao assumirem suas crianças/adolescentes trans, são denunciados no conselho tutelar, sofrem ofensas e provocações de familiares e amigos, temem perder seus empregos e se sentem perdidos, sem orientação e sem ajuda.

Ao matricular uma criança/adolescente trans na escola, a grande maioria das famílias relata já ter sofrido preconceito dos profissionais da educação. Em consultas médicas, exames e atendimentos por profissionais da saúde, o cenário de preconceito e despreparo permanece. Na assistência social não existem programas políticos para amparar a existência trans infanto-juvenil. E a Justiça, muitas vezes, não consegue entender o seu direito de existir.

Se a existência de pessoas trans adultas é uma realidade há centenas de anos, por que não existem políticas que protejam suas infâncias? Podemos ficar nos questionando por horas a fio, mas, infelizmente, não encontraremos respostas além do preconceito.

Para preconceito existe informação!

Estamos aqui, hoje, para informar! Crianças e adolescentes trans existem, são indivíduos de direitos fundamentais e precisam da nossa proteção enquanto família, sociedade e Estado.

Quando olhamos para a questão trans infanto-juvenil, estamos possibilitando enxergar a raiz da problemática social, econômica e política, que se sobrepõe à população trans adulta. Portanto, não conseguiremos jamais mudar a situação da população trans adulta no Brasil se paralelamente não enxergarmos as crianças e adolescentes trans.

Nesse sentido, a Coordenação Nacional da Área de Proteção e Acolhimento da Criança, Adolescente e Famílias LGBTI+, da Aliança Nacional LGBTI, tem promovido um grupo de acolhimento para as mães e pais das crianças e adolescentes trans, com cerca de 150 famílias de todo o Brasil.

Destaca-se também a obra de 2020 "Minha Criança Trans? – Relato de uma mãe ao descobrir que o amor não tem gênero", de Thamirys Nunes, como uma obra emblemática que constitui hoje um sopro de resistência à invisibilidade do tema.

O que se coloca neste momento é como o princípio da cooperação, que instituiu a responsabilidade da família, da sociedade e do poder público, como apontado no Artigo 227 da Constituição Federal de 1988 e no artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8069/90, vai recuperar o enorme hiato que se instalou ao longo dos 31 anos do ECA e apontar ações, programas e políticas públicas para as crianças e adolescentes trans no Brasil.

Importante sublinhar que na lógica do princípio de isonomia consagrado pela Carta de 1988, no artigo 5º, que impôs que os iguais sejam tratados igualmente e os desiguais tratados de forma desigual, numa percepção ética-afirmativa de acolhimento das diferenças no marco da diversidade, crianças e adolescentes trans exigem que o princípio do peculiar processo de desenvolvimento e crescimento pessoal seja fundado numa proteção integral especial consagrada no Artigo 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente.

E é isso o que se espera da proposição formulada pela coordenação nacional da Área de Proteção e Acolhimento da Criança, Adolescente e Famílias LGBTI+, da Aliança Nacional LGBTI, junto à Procuradoria-Geral dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal no Rio de Janeiro, sob número 20210052588/2021 (PR-RJ-00061311/2021), de relatoria da procuradora federal Ana Padilha Luciano de Oliveira, que requer a instalação de uma investigação civil contra o Estado e órgãos de classe como o Conselho Federal de Medicina, o Conselho Federal de Serviço Social e o Conselho Federal de Psicologia para apurar e propor medidas de instituição de ações, programas e políticas públicas direcionadas às crianças e adolescentes.

Assim, nesta data comemorativa dos 31 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente, em tempos de resistência das pautas de direitos humanos no Brasil, é fundamental descortinarmos essa pauta e rompermos essa invisibilidade, pois está evidente que crianças e adolescentes trans não serão convidados.

Autores

  • é advogado do NN-Advogados Associados, membro do Conselho Nacional de Direitos Humanos e da Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFOAB, presidente da Comissão de Direito Internacional da OAB-RJ e integrante do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH).

  • é coordenadora nacional da Área de Proteção e Acolhimento da Criança, Adolescente e Famílias LGBTI+ da Aliança Nacional.

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