Opinião

O STF e a ausência de definição sobre a incidência de ISS no uso de marca

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12 de julho de 2021, 7h15

A 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal reafirmou sua jurisprudência acerca da constitucionalidade da tributação de ISSQN sobre valores pagos em razão da cessão de direito de uso de marca — os chamados royalties. No entanto, uma análise detalhada da referida decisão aponta para a necessidade de sua reforma pelo Plenário, tendo em vista aspectos que foram desconsiderados pelo órgão fracionário.

A discussão gira em torno da extensão do termo "serviços de qualquer natureza", sobre os quais os municípios podem instituir imposto na forma do disposto no artigo 156, III, da Constituição Federal. A Lei Complementar nº 116/2003, ao estabelecer as normas gerais em matéria de ISSQN, definiu a cessão do direito de uso de marca (item 3.02 da Lista Anexa) como um serviço passível de tributação, ensejando o questionamento por parte dos contribuintes.

No caso concreto, o Tribunal de Justiça de São Paulo acolheu tese deduzida por contribuinte estabelecido em São Paulo, declarando a inconstitucionalidade do item acima e concedendo a ordem para afastar a obrigação de recolhimento de ISS ao município sobre valores pagos a título de royalties para sua matriz, localizada fora do Brasil.

Ao apreciar o recurso extraordinário interposto pela municipalidade, o ministro Edson Fachin, em decisão monocrática, reformou o acórdão local, sob o fundamento de que existiria jurisprudência consolidada no Supremo Tribunal Federal sobre o tema, sendo a decisão confirmada pela 2ª Turma da corte.

Em face desse acórdão, a empresa opôs embargos de divergência, sustentando dissidência com acórdão proferido pela 1ª Turma do tribunal nos autos do ARE nº 1.187.281/SP. No acórdão apontado como paradigma, a 1ª Turma decidiu que o acórdão recorrido não teria afrontado diretamente o texto constitucional, deixando de conhecer do recurso extraordinário, embora tenha analisado a controvérsia.

Os embargos de divergência tiveram seu seguimento negado pelo relator, mas serão levados ao conhecimento do colegiado maior do Supremo em sede de agravo regimental interposto pelo contribuinte. Dessa forma, reformando-se a decisão monocrática do ministro relator e admitida a divergência, o Plenário terá de decidir se a questão tem contornos constitucionais. Se o entendimento for pela infraconstitucionalidade da discussão, o recurso manejado pelo município de São Paulo sequer poderia ter sido admitido.

Entretanto, caso o Supremo Tribunal Federal decida que a controvérsia tem caráter constitucional, ver-se-á diante de uma segunda questão a ser analisada: a existência ou não de "repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso" (artigo 102, § 3º, da CF).

Isso ocorre pois jamais a corte analisou a repercussão do tema. Nenhum dos acórdãos citados na decisão monocrática proferida pelo ministro Edson Fachin observou tal rito. Todos se fundamentam na Reclamação nº 8.623/RJ, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, que não foi conhecida por ausência de identidade entre o caso paradigma e o dos autos. Por isso, a decisão não se presta a representar a jurisprudência consolidada do tribunal.  

Caso a corte busque resolver a questão conforme a sua jurisprudência, a solução a ser adotada, em verdade, é a declaração de inconstitucionalidade da cobrança de ISSQN sobre a cessão do direito de uso de marca.

Com efeito, analisando os precedentes do Supremo Tribunal Federal sobre a base de cálculo do tributo, faz-se necessário rememorar o RE nº 116.121/SP, com voto redigido pelo ministro Marco Aurélio, em que se decidiu pela inconstitucionalidade da incidência do ISSQN sobre operações de locação de bens móveis, sob o fundamento de que somente a prestação de serviços, assim entendidos como o resultado direto de esforço humano, seria fato gerador do tributo. Tal julgado, que fixou as balizas da Súmula Vinculante nº 31, adota separação rígida entre as obrigações de dar e de fazer, admitindo a tributação somente no segundo caso.

No entanto, o entendimento da corte sofreu parcial reforma ao longo das últimas décadas. No RE nº 603.136/RJ, fez-se acurada análise da jurisprudência do Tribunal sobre o ISSQN, concluindo-se que a expressão "serviços de qualquer natureza" permite a tributação de atividades que não correspondam exclusivamente a uma obrigação de fazer. Com isso, autoriza-se a incidência do imposto municipal sobre as chamadas obrigações mistas, as quais englobam uma obrigação de fazer somada a uma obrigação de dar. Portanto, a obrigação não necessitaria ser exclusivamente de fazer, mas também não poderia ser unicamente de dar.

Com esse argumento, o Plenário da corte julgou ser constitucional a incidência do tributo sobre os contratos de franquia, pois estes não consistiriam em uma mera cessão de direitos, mas configurariam contratos híbridos. Nas palavras do relator, ministro Gilmar Mendes, "o 'sistema' de franquia envolve muito mais do que apenas uma cessão de marca, envolve diversas formas de prestação de diferentes serviços. Daí a incidência de ISS, como prevê a lei complementar" (RE nº 603.136/RJ).

Nesse cenário, a cessão de uso de marca por não corresponder a uma obrigação de fazer, ou, no limite, uma obrigação mista, não se configura como fato gerador do ISSQN. Se o Supremo Tribunal Federal pretende permanecer fiel à sua jurisprudência e aos núcleos de significados mínimos do texto constitucional, deve declarar a inconstitucionalidade do item 3.02 da lista de serviços anexa à LC nº 116/2003. De outra forma, o tribunal ignorará completamente o significado do termo "serviços", contemplando um sentido fora dos limites textuais, em desprezo pelas competências tributárias constitucionalmente estabelecidas.

Em sendo assim, fundamental que o tribunal dê provimento ao agravo regimental e admita os embargos de divergência, julgando estes últimos e respeitando os motivos determinantes de seus precedentes anteriormente analisados, sob pena de brutal insegurança jurídica aos contribuintes. Do contrário, prevalecerá a construção atualmente existente, que leva a crer na existência de uma jurisprudência sedimentada sobre o tema, mas, em verdade, se sustenta em decisões monocráticas que julgaram a matéria sem prévio pronunciamento do tribunal sobre a existência de repercussão geral na matéria constitucional debatida, em desacordo com o texto constitucional (artigo 102, §3º, da CF).

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