Justiça tributária

Deve-se tributar a renda distribuída aos sócios ou acionistas, os dividendos?

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

12 de julho de 2021, 8h01

Spacca
Deve-se ou não tributar a renda que é distribuída aos sócios ou acionistas, os chamados dividendos? É dito aos quatro ventos que em apenas dois países não existe tributação dos dividendos, no Brasil e na Estônia, informação que não tenho como conferir.

O fato é que, sobre este tema vem se instalando uma estranha controvérsia, pois a esquerda deseja tributar os dividendos, e a extrema direita, representada pelo governo Bolsonaro, até mesmo incluiu essa tributação no PL 2.337, encaminhado dia 25/06/21 pelo ministro da Economia à Câmara dos Deputados, propondo a modificação de diversos aspectos relativos ao Imposto de Renda, sobre o qual já fiz alguns comentários iniciais. O assim chamado centro (que nem sempre corresponde ao Centrão), aparenta reagir a mais este aumento da carga tributária.

O que está ocorrendo? Quem terá razão?

Afastemos o absurdo de tramitarem três propostas de reforma tributária ao mesmo tempo, sendo que uma não dialoga com a outra: (1) tributação do consumo (PEC 45 e PEC 110 — criação do IBS); (2) a unificação do Pis e da Cofins (PL 3887/20 — criação da CBS) e, (3) esta reforma da tributação sobre a renda (PL 2337/21).

Observando apenas esta última, e longe de querer esgotar a matéria, é necessário fazer algumas análises técnicas para melhor compreender o sistema de tributação da renda em nosso país.

No Brasil denominamos de imposto sobre a renda uma multiplicidade de incidências, que, em alguns países são legislações distintas, divididas entre a tributação sobre a renda das corporações (nosso IRPJ) e a tributação sobre a renda das pessoas naturais (nosso IRPF). Além disso, existem receitas que são tributadas exclusivamente na fonte, regras próprias para a tributação dos ganhos de capital, receitas que são isentas e diversos tipos de reduções da base de cálculo.

De certa maneira isso forma um sistema de tributação da renda, e que aparenta uma enorme complexidade, mas que nem sempre está presente, pois algumas válvulas de escape foram criadas ao longo do tempo para que pequenas e médias empresas possam sobreviver. Daí porque existem pelo menos três diferentes formas de apuração do IRPJ: (1) tributação pelo Simples, (2) pelo sistema de lucro presumido e (3) através do lucro real. O fato é que os três sistemas estão sob ataque da Receita Federal, além do que foi proposto pelo PL 2337/21.

Em apertada síntese, o que se busca em todos esses sistemas é apurar o lucro das empresas, que decorre de uma apuração das receitas menos as despesas, considerados alguns ajustes contábeis, e tributá-lo ao final. Logo, neste ponto se identifica um aspecto de importância central, que é a busca da identificação do lucro, para que, sobre ele, incida o imposto sobre a renda das pessoas jurídicas (IRPJ).

Se até aqui o caro leitor/leitora acompanhou, é necessário desdobrar alguns pontos para a perfeita compreensão da questão central a ser abordada: a tributação dos dividendos.

Primeiro: só existe lucro a ser distribuído se a empresa tiver tido lucro — meio óbvio isso, não? Se a empresa não tiver lucro, como distribuirá o que não tem? Portanto, tributação de dividendos (lucros distribuídos) parte do pressuposto da existência de lucro na empresa (lucros auferidos).

Segundo: é formalmente verdadeiro que os dividendos se constituem receita dos acionistas/sócios, e que isso muda a caixinha de análise, pois, se eles forem pessoas físicas (o que nem sempre ocorre, e complica ainda mais a proposta do governo Bolsonaro) sairemos da tributação das pessoas jurídicas (IRPJ) para a das pessoas físicas (IRPF). Essa é a explicação da Receita Federal quando diz que não se pode somar as alíquotas, pois o projeto baixa em 5% as alíquotas do IRPJ (lucro auferido pelas empresas) e cria uma incidência de 20% sobre a distribuição dos dividendos, que é uma incidência sobre as pessoas físicas (IRPF).

Terceiro: ocorre que a afirmação acima (2º ponto) é tão somente um jogo de palavras, pois se as empresas não tiverem auferido lucros, não haverá distribuição de lucros (1º ponto).

Logo, se o raciocínio até aqui apresentado estiver correto e fluido, passemos a outro ponto importantíssimo de análise.

Quarto: a tributação da renda das pessoas jurídicas no Brasil (IRPJ) tem dois componentes que devem ser destacados: (a) sua trajetória histórica, e (b) um tributo esquisito, que é o Pis/Cofins. Vamos a eles.

Comecemos pelo (a) aspecto histórico. Claro que existia IRPJ antes da Constituição de 1988. O que não existia eram duas figuras que distorcem e majoram essa incidência, tornando os cálculos meio nublados: (1) o Adicional do IRPJ (criado em dezembro de 1995 pela Lei 9.249/95), sem correção de seu valor desde 1996, o que prejudica os contribuintes, aumentando artificialmente a carga tributária; e (2) a CSLL — Contribuição Social dobre o Lucro Líquido (criada em dezembro de 88 pela Lei 7.689/88), que, por ter sido batizada de contribuição, aumentou a receita da União sem compartilhá-la com os Estados e Municípios.

Observemos agora a (b) tributação pelo Pis/Cofins, tecendo apenas dois comentários. Denominei-a (1) de esquisita porque incide sobre a receita bruta das empresas. Ora, receita bruta corresponde a (praticamente) tudo que entra no caixa da empresa, seja através da emissão de faturas, seja a receita financeira. Pedindo desculpas antecipadas aos eventuais doutos em direito tributário que estão lendo, pode-se afirmar, com alguma largueza conceitual, que essa incidência é quase uma tributação sobre o consumo, campo de incidência próprio dos Estados, através do ICMS. Isso tanto é verdadeiro, que as PECs 45 e 110, que visam reformar o sistema de tributação do consumo em nosso país, incorporam o PIS/Cofins nessa incidência (proposta da IBS), o que também é alegado pela Receita Federal ao patrocinar a unificação desses dois tributos através do PL 3887/20 (proposta de CBS).

Observe-se que o pagamento do Pis/Cofins ocorre antes mesmo da apuração do lucro, o que também distorce o mecanismo de sua apuração, pois as empresas são tributadas pela receitao lucro só será apurado posteriormente, e aí então se poderá constatar se a empresa teve ou não lucro no período.

Além do que foi exposto sobre o PIS/Cofins, deve-se ainda observar seu (2) aspecto histórico, pois ambos existiam antes de 1988. O PIS, criado pela Lei Complementar 7/70, era de 0,15% do faturamento das empresas, e o antecessor da Cofins, o Finsocial, foi instituído pelo Decreto-lei 1.940/82, era de 0,5% sobre o faturamento das empresas. Para tornar curta uma longa história, hoje a somatória de ambos incide na proporção de 3,65% sobre o faturamento das empresas (quando estas não tomam créditos, isto é, pelo método da cumulatividade) ou na proporção de 9,25% sobre o faturamento (sendo permitido o uso de alguns créditos, sob o método não-cumulativo).

O heroico leitor/leitora perguntará: e o que tudo isso tem a ver com a questão da tributação dos dividendos, que são os lucros distribuídos?

A resposta é simples: o Brasil optou pelo aumento da carga tributária das empresas sob duas modalidades: (1) aumentando a tributação sobre a renda das pessoas jurídicas através do (a) Adicional de Imposto de Renda e (b) da CSLL; e (2) aumentando a tributação sobre o consumo, através do Pis/Cofins, pago antecipadamente à apuração do lucro das empresas.

Logo, a majoração da tributação do lucro das empresas foi compensada com a desoneração da tributação da distribuição dos lucros aos sócios/acionistas.

E por qual motivo isso ocorreu? Porque facilita a arrecadação e simplifica todo o procedimento de apuração do lucro distribuído. Isso foi consolidado através da Lei 9.294, de 1995, que isentou a tributação de dividendos. Antes disso a fiscalização necessitava identificar mecanismos muito comuns de DDL – Distribuição Disfarçada de Lucros, verdadeiros desvios de arrecadação, pelos quais as empresas mascaravam a distribuição dos lucros, sem os oferecer à tributação. Exemplos: pagamento de planos de saúde ou aquisição de veículos para os sócios, sem que tais benefícios fossem oferecidos à tributação pelo IRPF.

A proposta atual, apresentada pelo governo Bolsonaro, de tributar os dividendos em 20%, fará com que esse tipo de análise fiscal volte a ser necessária, o que se evidencia no PL 2337/21 que traz incontáveis normas a respeito. Porém, isso será feito pelo sistema de inteligência artificial da Receita Federal? Dificilmente funcionará de modo adequado, sendo necessário um batalhão de servidores públicos para realizar esta tarefa a contento – e todos sabemos que o contingente de servidores da Receita Federal tem minguado ano a ano.

Para concluir, retornemos à pergunta inicial: deve-se ou não tributar a renda que é distribuída aos sócios ou acionistas, os chamados dividendos? Resposta: Sim e não.

Sim, desde que reduzida a carga tributária incidente sobre o lucro auferido pelas empresas, considerando todos esses penduricalhos onerosos referidos (Adicional de IR, CSLL e as incidências de Pis e Cofins), sem majorar a carga tributária total.

Não, pois o sistema atualmente vigente já tributa fortemente, de modo direto e indireto, o lucro auferido pelas empresas, descartando a análise dos lucros distribuídos aos sócios/acionistas. Recorde-se: só se distribui o que se tem, logo, a distribuição foi previamente tributada, pela carga atualmente aplicada aos lucros auferidos pelas empresas.

O que será injusto — e é o que pretende o governo Bolsonaro — é manter a carga tributária sobre o lucro auferido pelas empresas (IRPJ e penduricalhos), e ainda criar nova incidência de 20% sobre a distribuição desse lucro — sobre os dividendos (IRPF). Isso gerará um sem-número de problemas, a serem analisados em outro texto.

Peço desculpas aos leitores/leitoras pela simplificação na exposição de todo esse sistema, que comporta incontáveis variáveis, mas optei pelo didatismo. Espero ter conseguido o intento.

Autores

  • é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.

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