Opinião

O 'caso Britney Spears' à luz dos direitos humanos: os abusos da curatela nos EUA

Autores

  • Amanda Gonçalves Teixeira

    é graduanda do curso de Direito da Universidade Federal do Paraná pesquisadora do projeto de iniciação científica "O crime de corrupção na jurisprudência dos tribunais superiores: 2009-2019" da Universidade Federal do Paraná e estagiária no Ministério Público Federal (PR-PR).

  • Amanda Sian Orsi de Campos

    é graduanda do curso de Direito da Universidade Federal do Paraná pesquisadora de iniciação científica do grupo de pesquisa "Sistema criminal e controle social" da Universidade Federal do Paraná e estagiária na Justiça Federal do Paraná.

  • Ana Júlia Amaro Miyashiro

    é graduanda do curso de Direito da Universidade Federal do Paraná pesquisadora do Núcleo de Estudos em Sistemas de Direitos Humanos da Universidade Federal do Paraná (NESIDH-UFPR) pesquisadora de iniciação científica do grupo de pesquisa "Sistema criminal e controle social" da Universidade Federal do Paraná e estagiária na Justiça Federal do Paraná.

11 de julho de 2021, 17h14

O 'caso Britney Spears'
"Embaraçoso e desmoralizante". Foram esses os termos utilizados por Britney Spears ao se referir aos últimos 13 anos de sua vida, nos quais esteve sob a curatela (conservatorship), atualmente gerida por seu pai, Jamie Spears, pela empresa de finanças Bessemer Truss e pela conservator profissional Jodi Montgomery. Quando finalmente teve a oportunidade de se pronunciar publicamente sobre o assunto, diante da magistrada Brenda Penny, da Corte Superior do condado de Los Angeles [1], a cantora foi incisiva: ninguém envolvido em sua curatela deveria sair impune da situação, inclusive seu próprio genitor.

O regime norte-americano denominado conservatorship é posto a cidadãos adultos que não podem se encarregar das próprias finanças ou da vida pessoal [2]. Assemelha-se à curatela do Direito brasileiro, contudo, difere-se em relação à retirada do poder de decisão do "conservado" (conservatee), pois esta no Brasil se limita apenas à esfera patrimonial.

A responsabilização judicial pela situação financeira e pessoal de Britney Spears foi conferida a Jamie Spears em 2008, após a filha protagonizar uma série de controvérsias difundidas pela mídia, que geraram preocupações sobre sua saúde mental. Todavia, o surpreendente é que, nos 13 anos que sucederam o início da curatela, Britney lançou quatro álbuns de estúdio, realizou três turnês mundiais e uma residência artística em Las Vegas que contou com 248 shows.

Evidentemente, a cantora não demonstrou nesses anos qualquer sinal de grave limitação psicológica ou física que justifique a necessidade da responsabilização de terceiros por suas decisões. A partir dessa incógnita, surgiu entre os fanáticos de Spears o movimento #FREEBRITNEY, que objetiva o fim de sua curatela e a libertação da artista.

Durante o depoimento proferido na audiência pública do último dia 23, Britney fez alegações contundentes sobre os abusos promovidos por seu pai e sua equipe  especialmente nos últimos dois anos, após o cancelamento de sua residência de shows Domination em Las Vegas.

A cantora afirmou ainda ter sido obrigada a trabalhar exaustivamente e realizar uma turnê depois de ser ameaçada por sua equipe, que, em outra ocasião, internou-a contra sua vontade em uma clínica de reabilitação, após ela se recusar a executar um passo de dança em um ensaio para seu novo concerto. Em complemento, revelou não ter controle sobre seus direitos reprodutivos, vez que é impedida de retirar o dispositivo intrauterino (DIU) que está em seu corpo, tolhendo-lhe a possibilidade de concretizar o seu sonho de ser mãe novamente.

O relato de Britney Spears comoveu não só seus fãs, mas inúmeras pessoas ao redor do mundo, que questionam repetidamente como a detentora de uma das carreiras artísticas mais prolíficas da história se encontra presa em um regime que a reconhece como uma pessoa incapaz e que, em suas palavras, lhe faz "muito mais mal do que bem".

A curatela de Britney Spears à luz dos direitos humanos
Partindo disso, embora nos Estados Unidos seja possível que um sujeito atue como curador de outro que tenha limitações físicas e/ou psicológicas, é perceptível que a tutela imposta à Britney Spears experimenta distintas violações de direitos humanos, mostrando-se abusiva ao substituir as vontades pessoais da cantora pelas do curador.

No âmbito global, a Declaração Universal de dos Direitos Humanos de 1948 assegura [3], em seu artigo 2º, que todo ser humano possui a capacidade de gozar dos direitos e das liberdades estabelecidos no documento, sem que seja submetido a qualquer tipo de discriminação. Ainda, o instrumento categoricamente declara, em seu artigo 12, que ninguém deve sofrer interferências em sua vida privada, em sua família, em seu lar ou em suas correspondências.

Desse modo, avalia-se que, conforme o depoimento de Britney, sua curatela tem sido administrada de maneira completamente contrária às disposições de tratados internacionais sobre direitos humanos, posto que a "conservada" proclamou não ter qualquer contato com amigos ou controle sobre a escolha do profissional e da frequência das terapias que realiza por imposição do regime. Ainda relatou que, durante seu internamento forçado em clínica de reabilitação, sequer tinha privacidade para vestir-se, sendo observada a todo momento por funcionários.

No âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, é possível entender que as circunstâncias vivenciadas por Spears inviabilizam as individualidades de sua vida privada, interferindo diretamente no direito à liberdade, que, conforme o Parecer Consultivo OC-24/17 [4], representa a possibilidade de se autodeterminar e de escolher livremente as opções e as circunstâncias que dão sentido à sua existência.

Mormente, analisando o direito à integridade física e psíquica, consagrado pelo artigo 5º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos [5], assegura-se a proteção contra tratamento degradante e sofrimento psíquico desnecessário. Assim, pode-se inferir que a curatela acarretou dano material e imaterial a Britney Spears: o primeiro, referente à perda e depreciação patrimonial; e o segundo, em razão do sofrimento e das alterações nas suas condições de existência, em conformidade à decisão da corte supra no caso Ximenes Lopes vs. Brasil [6].

Da mesma forma, é garantia da curatelada o direito à autonomia sobre o próprio corpo, embora isso não se vislumbre frente ao relato de que foi impedida de remover o dispositivo intrauterino (DIU) e vivenciar nova gravidez, demonstrando clara coerção reprodutiva. Sobre isso, a mesma corte, no caso Gelman vs. Uruguay [7], sustentou que a livre maternidade representa parte essencial do livre desenvolvimento da personalidade das mulheres. Doravante, o curador permanecer negando o direito à livre maternidade corresponde a uma violação da liberdade pessoal da curatelada.

Salienta-se também que a situação de Britney Spears pode ser até mesmo compreendida como uma sucessão de agressões contra a mulher, tendo em vista as violações de diversos dos seus direitos, que, no entrecho interamericano, estão resguardados pela Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar e a Violência contra a Mulher [8].

A curatela na realidade brasileira
Na realidade brasileira, por outro lado, não seria possível uma tutela com abrangência equivalente à aplicada ao caso da cantora. Isso porque o país passou por uma grande evolução em sua legislação, a qual possibilitou que a curatela seja restrita aos direitos patrimoniais do curatelado, de modo que seus direitos existenciais não são atingidos. No Brasil, cabe lembrar, é chamada de curatela a proteção legal da pessoa, em geral maior de idade, cuja autonomia decisional para atos da vida civil reste comprometida por alguma circunstância indicada em lei.

Antes, as pessoas com deficiência eram consideradas absolutamente incapazes e impedidas de praticar qualquer ato da vida civil. No entanto, com a ratificação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e com a promulgação do Estatuto da Pessoa com Deficiência [9] [10], houve grande progresso no tratamento da curatela. A regra passou a ser a capacidade legal dessas pessoas, de modo que a curatela deve ser utilizada excepcionalmente e de maneira proporcional às necessidades de cada caso, apenas quando não há capacidade de o indivíduo exprimir sua vontade. Sendo assim, a autodeterminação do sujeito deve ser protegida na medida de seu discernimento.

No país, portanto, não é admitida a substituição da vontade do curatelado nos direitos personalíssimos e existenciais, entre os quais o casamento, a integridade corporal e a privacidade. Assim, a capacidade de agir da pessoa deve ser reconhecida e suas restrições devem ter como propósito a integração do sujeito, e não sua exclusão.

Nota-se, dessa forma, que o Direito brasileiro atual, no que diz respeito à curatela, é mais compatível com as normas internacionais e constitucionais, principalmente no que remete aos direitos humanos e fundamentais, proporcionando maior respeito aos interesses existenciais do curatelado. Evidencia-se, além disso, que a necessidade de integrar o sujeito e de respeitar seu livre desenvolvimento aponta a insuficiência, à luz dos direitos humanos, de institutos que excluem o exercício da personalidade do curatelado, como é o caso de Britney Spears.

 


[1] ASWAD, Ben. Read Britney Spears’ Full Statement Against Conservatorship: ‘I Am Traumatized’. Variety, EUA, 23 de jun. de 2021. Disponível em: <https://variety.com/2021/music/news/britney-spears-full-statement-conservatorship-1235003940/>. Acesso em: 6 de jul. de 2021.

[2] ESTADOS UNIDOS. The Judicial Branch of California. Conservatorship. Disponível em: <https://www.courts.ca.gov/selfhelp-conservatorship.htm>. Acesso em: 6 de jul. 2021.

[3] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948. Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos>. Acesso em: 7 de jul. de 2021.

[4] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Parecer Consultivo OC-24/17 de 24 de novembro de 2017 solicitado pela República da Costa Rica. Disponível em:< https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_24_por.pdf>. Acesso em: 6 de jul. 2021.

[5] ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana de Direitos Humanos ("Pacto de San José de Costa Rica"), 1969. Disponível em: <https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm>. Acesso em: 6 de jul. de 2021

[6] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Ximenes Lopes versus Brasil Sentença de 4 de julho de 2006 (Mérito, Reparações e Custas). Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_149_por.pdf>. Acesso em: 6 de jul. de 2021.

[7] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gelman vs. Uruguay. Sentença de 24 de fevereiro de 2011 (Mérito e Reparações). Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2016/04/09b4d396111fe41e886a744a9f8753e1.pdf>. Acesso em: 6 de jul. de 2021.

[8] ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Interamericana para a Prevenção, Punição e Erradicação da Violência contra a Mulher ("Convenção de Belém do Pará"), 1994. Disponível em: <http://www.cidh.org/basicos/portugues/m.belem.do.para.htm>. Acesso em: 6 de jul. de 2021.

[9] BRASIL. Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm>. Acesso em: 6 de jul. 2021.

[10] BRASIL, Lei nº 13.146, de 06 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13146.htm>. Acesso em 07 de jul. 2021.

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