Opinião

Um olhar empático (e jurídico) sobre a retificação de registro da população trans

Autor

  • Marília Golfieri Angella

    é sócia-fundadora do Marília Golfieri Angella – Advocacia Familiar e Social especialista em Direito de Família Gênero e Infância e Juventude mestranda em Processo Civil pela Faculdade de Direito da USP e professora colaboradora do FGV Law.

11 de julho de 2021, 6h35

Já pensou quão potente é exercer o direito de ser quem você é? Se você não pensou sobre isso, você é um privilegiado! Agora vamos entender um pouco mais sobre um dos avanços da pauta LGBTQIA+ para não deixar a discussão apenas no recentemente findado mês de junho? Entender os braços dessa discussão é garantir, acima de tudo, o direito à vida do próximo, e você pode ser um agente transformador nesta luta.

Cis ou trans? Quem é você? Como pessoa cis, os questionamentos sobre seu nome devem ter ficado limitados ao gostar ou não gostar, a uma homenagem a algum parente ou ao sonho dos pais de ter um filho com o nome X ou Y, o momento da escolha, quem registrou, e por aí vai. Agora, para a população trans, certamente o nome de registro representa muito além disso, envolvendo questões complexas que exigem um olhar empático para o avanço das pautas sociais no nosso país.

Por muito tempo, a alteração de nome social da população trans só era possível mediante sentença judicial  embora não houvesse qualquer entrave na Lei de Registros Públicos que impedisse tal retificação, muito pelo contrário, já que era permitida a alteração em razão de situação vexaminosa  e a exposição perante os Tribunais de Justiça necessariamente passava por inúmeros questionamentos e esbarrava em preconceitos não velados, condicionando-se, em determinados casos, a alteração à realização da cirurgia de alteração de sexo, que pode representar um alto risco até mesmo à vida da pessoa que a pretende. Era como exigir a prática de um ato violento e mutilante, quiçá não desejado, a alguém que buscava apenas o reconhecimento de sua existência!

Desde 2018, em significativo (e tardio) avanço, em continuação ao movimento que ocorrida no próprio Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) reconheceu a possibilidade de se realizar a alteração do nome no registro civil através de um procedimento administrativo. O acesso à ordem jurídica justa, tão defendido pelo ilustre professor Kazuo Watanabe (Ed. Del Rey, 2019), se fez valer! O acesso a esse direito fundamental de ser quem se é estava, enfim, legitimado pelo Estado!

Agir e pensar de modo diverso, sem dúvida, seria afrontar direitos fundamentais das pessoas Ts, ferindo sua dignidade, liberdade, intimidade, vida privada, honra, imagem e saúde, preservadas pela Constituição Federal (artigos 1º, III, 5º, caput, e X, e 6º), tendo em vista que tais direitos estão em constante evolução em nossa sociedade, com novos significados, valores e necessidades de adaptação da tutela estatal.

E um direito não só restrito ao cenário nacional, pois a Convenção Americana de Direitos Humanos (o famoso Pacto de San José da Costa Rica), ratificada pelo Brasil, em seus artigos 5º e 11 garante o direito de toda pessoa ter respeitada sua integridade física, psíquica e moral e, também, sua honra e dignidade, assim como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo XXII, e o Protocolo de San Salvador, no artigo 10. Incontáveis normas, portanto, nacionais e internacionais, que regulamentam este direito fundamental!

Por qual motivo, então, dizemos que o avanço se deu de forma tardia? O Brasil adotou os Princípios de Yogyakarta, estabelecidos em 2006 na Indonésia, nos quais, já em sua introdução, se colocava que "a orientação sexual e a identidade de gênero" são "essenciais para a dignidade e humanidade de cada pessoa e não devem ser motivo de discriminação ou abuso".

Após tímidos avanços de reconhecimento do direito de usar o nome social em algumas esferas administrativas, ainda que sem possibilidade administrativa de se fazer definitivamente a alteração, em 2012 a jurista Maria Berenice Dias também dizia que "um dos instigantes fenômenos que estão a reclamar regulamentação é o da transexualidade, pois diz com a identidade do indivíduo e se reflete em sua inserção no contexto social. A proteção do transexual se refere ao direito à intimidade, um dos elementos do direito de personalidade, que merece destacada atenção constitucional, quando se fala em tutela da dignidade da pessoa humana. (…)". ("Direito à Identidade Transexual". in "Direito, relações de gênero e orientação sexual". SÉGUIN, Elida (coord.), p. 21).

Foram precisos mais alguns anos até que a regulamentação viesse a realmente adaptar o ordenamento brasileiro a esse direito tão fundamental, que é ser reconhecido por um nome compatível com sua identidade de gênero. Agora nos perguntamos: ainda que positivado, ou seja, ainda que escrito e vigente, tal direito é de fato exercido pela população T de forma plena e segura?

O Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo! Apenas em 2020, segundo um levantamento feito pelo G1, 175 mulheres trans foram mortas, majoritariamente negras e em situação de prostituição. Quando, por falta de escolha, se perde o direito existir, estudar, trabalhar dignamente, sonhar, ter uma casa, uma família, sendo constantemente ignorado pela sociedade, passando fome e frio, será que a alteração do nome passa a ser uma real preocupação?

A possibilidade de se alterar o registro civil para validação do nome social foi um significativo avanço, mas o olhar empático à causa trans requer um esforço coletivo superior: é preciso, antes de tudo, garantir o direito à vida e o respeito à dignidade dessa população ainda estereotipada e marginalizada.

"Mas mulher trans era homem ou mulher?". Essa pergunta revela a falta de consciência social, que afronta direitos fundamentais da população T, de modo que passa a ser utópico garantirmos, enquanto Estado, o direito ao nome social, quando a luta prescinde de elementos muito mais basilares, tais como visibilidade e segurança pública para que, a cada dois dias, uma mulher trans não seja morta no Brasil.

Dizia a citada Carta de Yogyakarta que "toda pessoa tem o direito de ser reconhecida, em qualquer lugar, como pessoa perante a lei". Contraditório dizer que toda pessoa tem o direito de ser pessoa? Não. LGBTQIA+ é mais que uma sigla, é uma causa que ultrapassa as barreiras juninas do orgulho e deve ser respeitada para que todos nós, todas e todes, estejamos em igual nível de proteção legal, garantidos em nossa dignidade e liberdade, tendo nossos nomes e gêneros respeitados e aceitos, tal como manda a nossa Constituição. Quando respirar passa a ser uma batalha no Brasil, respirar com liberdade, sem medo de morrer assassinado, é uma batalha ainda mais intensa e dura.

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