Opinião

Análise dos pressupostos da responsabilidade civil no abandono afetivo

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10 de julho de 2021, 6h03

Seriam os pais "obrigados" a estabelecer vínculo de afeto com os filhos sob pena de responsabilização civil? Esse é um debate que ganhou espaço com a decisão do Superior Tribunal de Justiça no REsp 1.159.242/SP [1], em que um pai foi condenado a pagar uma indenização por ter abandonado afetivamente sua filha.

O julgado paradigmático fez uma análise da colisão principiológica em que se observava de um lado a liberdade do pai de manifestar/ estabelecer, ou não, um vínculo de afeto com o seu filho, e do outro lado a solidariedade que confere ao filho o direito de ser atendido em suas necessidades existenciais [2].

O que deve prevalecer? Essa é uma pergunta cuja resposta passa necessariamente pelas regras do Direito Constitucional e do Direito de Família, mas, principalmente, pelos pressupostos da responsabilidade civil subjetiva.

Para falar em condenação por abandono afetivo é preciso o preenchimento dos requisitos artigo 927 do Código Civil, quais sejam: o cometimento de um ato ilícito, a culpa por parte do pai/mãe, a existência de um dano (material ou moral), e um nexo de causalidade que se estabelece entre a ausência de vínculo afetivo dos pais e os danos decorrentes dessa ausência.

Começando com a análise da conduta, conclui-se que para configuração do ato ilícito é preciso uma ação ou omissão que viole direito de um terceiro. A partir dessa premissa surge a seguinte reflexão: seriam os pais obrigados a amar? A resposta é não!

No entanto, os artigos 227 e 229 da Constituição Federal e o artigo 1.566, inciso IV, do Código Civil são claros ao estabelecerem que, apesar de não serem obrigados a amar, os pais são obrigados a cumprir seus deveres legais, como por exemplo assistir, criar, educar, conviver e guardar os filhos.

Para a ministra Nancy Andrighi, relatora do REsp 1.159.242/SP, essas obrigações são os desdobramentos do dever de cuidado, pois, além do necessário material para a sobrevivência, a pessoa precisa de outros elementos imateriais para o seu desenvolvimento [3]. Por essa razão, é possível concluir que o abandono, ou seja, a inobservância do dever de cuidado por parte dos pais enseja a prática de ato ilícito.

Passando para a análise da culpa, é possível concluir que os pais que voluntariamente e injustificadamente se omitiram do seu dever de cuidado para com os filhos agiram, no mínimo, com negligência em relação a sua prole, o que preencheria o requisito da culpa no debate da responsabilidade civil subjetiva.

No que tange à análise do dano, que nada mais é do que uma ofensa a um interesse ou bem juridicamente protegido [4], restou entendido no julgado que este seria presumido nos casos de abandono afetivo, o que dispensaria a vítima da apresentação de provas, devendo apenas construir o nexo de causalidade.

Apesar do brilhantismo do julgado, é preciso discordar com o argumento utilizado pela ministra relatora para a dispensa da prova no dano, pois nem sempre o abandono gera um dano para a vítima. Existem casos que a falta do pai/ mãe é tão bem trabalhada no seio de família que a vítima sequer sente os efeitos da ausência de quem abandonou.

Por essa razão o dano não pode ser presumido, ele precisa ser provado pela vítima. Mais do que isso, para aplicação do instituto da responsabilidade civil pelo abandono afetivo é preciso a comprovação do dano, do ato ilícito da culpa e do nexo de causalidade.

Dessa forma, não seriam hipóteses de responsabilidade civil se a relação filial nunca foi estabelecida, se não houve dano, se não houve abando voluntário e injustificado, e se não se estabeleceu, enfim, o nexo de causalidade entre o dano e a conduta culposa.

 


[1] STJ. REsp 1.159.242/ SP. Rel. Min. Nancy Andrighi, 3å Turma. Julgado em 24 abril 2012.

[2] SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição de danos. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2009. p.193.

[3] STJ. REsp 1.159.242/ SP. Rel. Min. Nancy Andrighi, 3å Turma. Julgado em 24 abril 2012.

[4] REIS, Clayton. Dano Moral. 5.ed.ampl. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2010. P 2-3.

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    é advogada sócia do escritório Lyra Duque Advogados, pós-graduanda em família e sucessões pela EPD, membro e pesquisadora no grupo de pesquisa "Planejamento Patrimonial" da Faculdade Milton Campos.

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