Diário de Classe

A problemática questão sobre positivismo no concurso do MP-DF

Autor

  • Gilberto Morbach

    é doutorando e mestre em Direito summa cum laude pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos como bolsista do CNPq editor do Estado da Arte (Estadão) e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos e da Iris Murdoch Society.

10 de julho de 2021, 9h00

A mais recente prova do Ministério Público do Distrito Federal para o cargo de promotor trouxe, em sua questão 41, uma pergunta sobre o "positivismo jurídico moderno". A questão, problemática em si mesma, tornou-se ainda mais controversa após a divulgação do gabarito oficial. Discutir essa controvérsia é a proposta do Diário de Classe de hoje.

Reprodução/Twitter
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De acordo com o gabarito, a alternativa correta seria (surpreendentemente) a alternativa a): "estão corretas I e II". Considerando a complexidade do assunto e a urgência do problema, o propósito desta breve coluna é o de desafiar a interpretação da banca avaliadora. Com todo o respeito que um desafio dessa natureza exige, não me parece correta a alternativa apontada como tal. Vejamos.

A questão já começa bastante problemática em seu próprio enunciado. É virtualmente impossível definir "o positivismo jurídico moderno". Qual positivismo? E qual é o marco temporal que se define como critério para a demarcação de uma versão 'moderna' do fenômeno? É certo que, pela própria natureza, enunciados devem ser breves e de natureza geral, um tanto quanto ampla dentro dos limites razoáveis; disso não se segue que seja legítimo reduzir a complexidade de fenômenos como o positivismo jurídico numa única locução tão abstrata. Se é verdade que a separabilidade entre direito e moral é uma tese central do positivismo jurídico, diversos positivismos ao longo da história materializam esse denominador comum de diferentes modos; se é possível falar em "positivismo jurídico moderno", esse é um movimento que exige contextualizações.

Avancemos.

A primeira assertiva, I, diz que o positivismo jurídico "[c]arrega forte influência de duas correntes historicamente antípodas, o jusracionalismo iluminista e o historicismo alemão". Embora a alternativa seja também vaga e abstrata, pecando pela redução conceitual, é possível considerá-la correta (se já partirmos da premissa, naturalmente, de que é possível identificar "o positivismo jurídico moderno" tal como proposto pelo enunciado). Se atentarmos ao desenvolvimento do positivismo jurídico, no mundo anglo-saxão e na Europa continental, é possível identificar elementos dessas duas matrizes: o historicismo — com, sobretudo, Savigny (que, em certas direções, influenciou também John Austin na Inglaterra) — e o racionalismo Iluminista — em particular, na ascensão do direito codificado e entendido propriamente como direito positivo, como se pode ver e.g. na tradição francesa (se for mesmo possível falar em uma única tradição positivista na França).

A alternativa III é mais tranquilamente classificável como incorreta, como a própria banca definiu. Associar a codificação do direito, sobretudo no que diz respeito a uma unidade normativa, ao historicismo não seria adequado. O que havia de 'positivismo' na Escola Histórica reside em um compromisso epistemológico a partir do qual somente o direito positivo pode ser considerado objeto de conhecimento científico.

A segunda alternativa, II, é a mais problemática; considerada correta pelo gabarito oficial, não me parece certa. Ela diz que "[a] tese juspositivista do iussum quia iustum (justo porque ordenado), tal como o imperativo categórico kantiano, invertem [sic] a relação da lei clássica entre forma e conteúdo. Assim, a forma, e não mais o conteúdo, passa a ser o critério determinante do jurídico e do moral". A questão tem alguns problemas flagrantes: primeiro, parece colocar o imperativo kantiano como norma positivada — o que seria um equívoco.

Segundo, e ainda mais grave, "justo porque ordenado", apontado como tradução de "iussum quia iustum", definitivamente não é uma tese juspositivista, e não apenas pelo fato de haver muitos positivismos distintos. A própria tese da separabilidade, talvez o positivismo reduzido ao seu mínimo denominador comum, já invalida essa leitura. "Justo porque ordenado" é uma questão que sequer diz respeito ao positivismo, precisamente por seu compromisso teórico com a tese de que o direito como ele é pode ser distinguido do direito como ele deve ser. Se há uma tese positivista por excelência, é precisamente a de que não é necessariamente justo simplesmente porque ordenado. É jurídico. A questão da justiça é outra.

O único acerto dessa alternativa, portanto, seria o de que o positivismo, em geral, coloca a forma como critério determinante para o jurídico — mas o positivismo, qualquer que seja, não o faz no domínio moral. E ainda, se se argumentasse que a assertiva atribui essa tese na moral somente ao imperativo categórico, e não ao positivismo — reservando a 'inversão' da "relação da lei clássica" por parte do positivismo ao domínio jurídico apenas —, isso seria problemático ainda assim, porque a assertiva está claramente formulada de modo a atribuir ambas as teses ao positivismo. (É possível ainda ir além e dizer que esse eventual contra-argumento, ainda que aceito, não justificaria o fato de a assertiva ainda assim acabar reduzindo o imperativo categórico exclusivamente à mera forma da lei universal enquanto tal, primeiro passo na articulação acerca da lei moral; mas essa já seria uma outra questão, para alguém mais autorizado a discutir o imperativo categórico em Kant com o devido rigor teórico).

Em síntese, o positivismo jurídico é um fenômeno muito mais complexo do que o enunciado da questão 41 do MP-DF é capaz de capturar; a alternativa apontada enquanto correta, por sua vez, não se sustenta em razão da série de problemas subjacentes.

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