Opinião

Lei modelo da Uncitral gera ganhos de eficiência para credor e devedor

Autor

  • Marcus Vinicius Vita Ferreira

    é sócio do escritório Wald Antunes Vita e Blattner Advogados pós-graduado em Direito do Consumidor pela PUC-SP mestrando em Direito Constitucional pelo Instituto de Direito Público (IDP) e ex-consultor convidado da Comissão de Assuntos Constitucionais e da Comissão de Mediação e Arbitragem do Conselho Federal da OAB.

9 de julho de 2021, 20h35

Uma das principais características da pós-modernidade globalizada é o aumento da complexidade das relações societárias rumo a um movimento de transnacionalização do capital e da atividade econômica, que não mais encontra mais fronteiras físicas e geográficas bem delimitadas.

Trata-se de um processo de natureza histórica de internacionalização das empresas e de incremento das relações interempresariais responsáveis pela criação de uma espécie de sociedade e mercado mundial. Por intermédio de complexos e disrputivos tipos societários, passou a ser lugar comum na estrutura jurídica dos mercados a existência de subsidiárias, afiliadas, coligadas e subholdings para explorar atividades econômicas nos mais diversos países.

Afinal, ao mesmo tempo em que os avançados sistemas jurídicos permitem, por meio de inovadores tipos societários, um alastramento da expansão das atividades econômicas, há os inconvenientes de que essas mesmas jurisdições que possuem disruptivos sistemas societários que permitem a expansão dessas atividades a nível global não raro possuem mecanismos antiquados, sob uma ótica transnacional, de solução conjunta e concertada de soerguimento de empresas que passam por dificuldades financeiras ou mesmo de maximização de ativos do devedor quando este se encontra em estado jurídico de falência.

É que os tradicionais modelos regulatórios de recuperação judicial e falência dos países, alicerçados em uma cultura jurídica predominantemente territorialista de viés filosófico altamente protetivo da soberania estatal, em que um processo concursal só irradia efeitos dentro da própria jurisdição em que inseridos os bens e os credores de uma determinada empresa ou grupo econômico não mais conseguem regular a teia de complexas relações societárias que desenrolam simultaneamente em múltiplas jurisdições.

O fato é que foi exatamente nesse contexto de integração econômica, visando a harmonizar o Direito Comercial Internacional entre os países, que a Organização das Nações Unidas (ONU) criou, em dezembro de 1966, a Comissão de Direito Comercial Internacional das Nações Unidas — United Nations Commission on International Trade Law (Uncitral).

No intuito de fornecer aos países um modelo, uma espécie de referencial ou standart legislativo mínimo a partir do qual as jurisdições possam, de modo coordenado, ajustar entre si as questões complexas que norteiam os concursos internacionais, a Uncitral criou uma lei modelo a ser adotada em regime de de softlaw. Em outras palavras, de livre preferência e adesão pelos países signatários.

Entre os diversos benefícios decorrentes da cooperação jurídica internacional promovidos nos casos de insolvência transnacional a partir da adoção da lei modelo podemos citar os seguintes: 1) solução dos conflitos entre vários Estados, visto que as normas jurídicas de Direito Falimentar dos Estados diversos podem não coincidir, como é deveras comum; 2) instrumento de combate às complexas fraudes internacionais e suas sequelas; 3) maior segurança jurídica para o comércio e investimentos internacionais; 4) administração justa e eficiente para os casos de insolvências transnacionais; e  5) proteção e maximização do valor dos ativos do devedor, dentre outros.

A lei modelo possui como elementos estruturantes os seguintes elementos: o acesso, o reconhecimento, as medidas deferíveis e a cooperação. Entre estes, e sem a pretensão de exauri-los, mas, ao contrário, de suscitar a dúvida e o bom debate, talvez o acesso e o reconhecimento sejam aqueles que provoquem mais polêmica em torno da soberania dos países, especialmente porque não raro o acesso e o reconhecimento implicam em violação à ordem pública.

Isso porque a lei modelo garante aos representantes de processos de insolvência estrangeiros (pessoas ou órgãos) e aos credores o direito de socorrer aos tribunais de um Estado e de solicitar assistência. Permite-se o acesso direto aos tribunais do Estado onde tramita o processo principal de insolvência (artigo 9°), evitando, assim, a utilização de meios morosos como o envio de cargas rogatórias.

Até então, os países não dispunham de um ordenamento jurídico eficiente para preencher esse vácuo normativo. Valiam-se de instrumentos como concessão de exequatur (nos países adotantes da civil law) e de cortesia (pelos tribunais de common law), e de execução de mandatos advindos de outros Estados seguindo a sua própria legislação. Todavia, esses mecanismos não se mostraram suficientes para subsistência de uma cooperação internacional efetiva, porquanto extremamente morosos e incompatíveis com o ritmo célere que os processos concursais transnacionais reclamam.

O certo é que por trás desse modelo cooperativo e integrativo de diálogo procedimental entre jurisdições concursais consagrado pela lei modelo da Uncitral está uma concepção jusfilosófica de universalismo temperado ou, como sugere parte da doutrina, de pós-universalismo, que obtempera equilibradamente nuances do territorialismo e do universalismo puro.

A nota distintiva do pós-universalismo é justamente ser um meio-termo entre o territorialismo, em que uma jurisdição concursal só projeta efeitos sobre seu próprio território, e o universalismo puro, em que se busca criar uma espécie de um único processo concursal universal regido por regras únicas.

Aliás, o próprio modelo de soft law da lei modelo da Uncitral em que os países podem escolher adotá-la e na medida em que entenderem pertinente à suas respectivas realidades concursais já é um exemplo de respeito à pluralidade e à soberania de cada local.

A própria sistemática de classificação feita pela lei uniforme entre processo principal e secundário ou auxiliar a partir do critério do centro dos principais interesses do devedor (Comi), em que o principal se caracteriza por ser aquele deflagrado no país onde o devedor possua o centro de seus principais interesses (será regido primordialmente por estas normas) e o secundário se notabiliza por ser o residual, somente exigindo a existência de um estabelecimento, de ativos ou mesmo credores estrangeiros, já é um exemplo especialmente relevante de respeito à soberania dos países, notadamente porque a própria lei uniforme prevê, em seu artigo 6º, a possibilidade de as cortes locais recusarem o reconhecimento de atos que estejam em manifesto desacordo com a ordem pública nacional.

O fato é que mais de 40 países, incluídas as grandes potências econômicas mundiais, como Estados Unidos (desde 2005), já aderiram voluntariamente e adotaram, em seus respectivos sistemas jurídicos, a lei uniforme da Uncitral como instrumento de cooperação internacional entre tribunais e demais autoridades competentes dos Estados na atuação concorrente de múltiplas jurisdições no âmbito de processos de insolvência.

No Brasil, até o advento da Lei nº 14.112/2020, que alterou a Lei nº 11.101/05, inexistiam normas de Direito Concursal transfronteiriço em vigor e alinhada aos princípios, diretrizes e procedimentos da lei uniforme da Uncitral, circunstância que ensejou enormes críticas por parte da comunidade jurídica brasileira. Isso especialmente porque, à falta de um critério racional e objetivo que trouxesse segurança jurídica, ganhavam destaque o casuísmo e a insegurança para os atores econômicos multinacionais que aqui aportavam ou tinham intenção de portar capital privado intensivo.

Um exemplo clássico de cooperação internacional em processo concursal é o caso Viação Aérea Rio-Grandense (Varig), em que o juízo falimentar do Rio de Janeiro em que tramitava a falência da companhia aérea precisou tratar diretamente com a Corte de Falências de Nova York para solução conflito entre a aplicação da lei brasileira e a lei norte-americana.

As aeronaves da Varig estavam vinculadas a contrato de arrendamento mercantil, e dessa forma não se sujeitavam ao procedimento de recuperação judicial de acordo com a lei brasileira (artigo 49, §3º), e seus direitos jamais seriam suspensos, como prescreve o parágrafo único do artigo 199 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Ocorre que o arrendador obteve da Corte de Falências de Nova York decisão liminar deferindo o arresto das aeronaves. Essa medida judicial, se cumprida, inviabilizaria a recuperação da empresa no Brasil, porquanto sem aeronaves a Varig estaria impossibilitada de exercer sua atividade econômica de venda de passagens e transporte aéreo de passageiros.

Para solucionar o conflito estabelecido entre a lei brasileira, que admitia a recuperação da empresa, e a lei estadunidense, que garantia ao arrendador o direito de reaver o bem dado em garantia, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro enviou uma comissão de juízes à Corte de Falências de Nova York para tratar diretamente desse problema e explicar ao juiz norte-americano a legislação falimentar brasileira e as consequências, no Brasil do cumprimento de sua decisão, o que propiciou a suspensão da medida liminar e o encaminhamento do processo de recuperação.

Com efeito, o fato é que, embora desde a criação do grupo de trabalho instituído pela Portaria nº 467/2016, do Ministério da Fazenda, em que se buscou criar uma comissão incumbida de atualizar a própria Lei de Recuperação Judicial e Falências, e, nesta esteira, incluir na legislação falimentar disposições a propósito da insolvência transfronteiriça, a adesão brasileira à lei modelo da Uncitral por via legislativa só veio efetivamente ocorrer com a citado Lei nº 14.112/2020, que alterou a Lei nº 11.101/05 (LRF).

O capítulo VI-A, subdividido em cinco seções, refletem muitas das premissas pós-universalistas adotadas pela lei modelo. As seções estão divididas da seguinte forma: disposições gerais (Seção I); do acesso à jurisdição brasileira (Seção II); do reconhecimento de processos estrangeiros (Seção III); da cooperação com autoridades e representantes estrangeiros (Seção IV); e dos processos concorrentes (Seção V).

Um elemento especialmente interessante que reflete um "problema" não apenas brasileiro, mas que ocupa as diversas jurisdições insolvenciais e que decorre da própria transnacionalidade concorrente diz respeito à discursos de premissa filosófica territorialista que entendem violadora da soberania nacional a possibilidade de reconhecimento de um processo concursal estrangeiro em território nacional.

Ao meu sentir, esse pressuposto não se revela acertado por algumas razões. A primeira delas, de ordem teórica e filosófica, que orienta todas as demais de índole prática, é que as disposições normativas da Lei de Recuperação Judicial e Falências que dizem respeito à insolvência tranfronteiriça nada mais são do que, guardadas as devidas peculiaridades, reflexos da lei modelo da Uncitral.

Como falado, a lei modelo foi erigida sob um paradigma pós-universalista, cujo pressuposto de existência é justamente a criação de uma espécie de unidade concursal entre jurisdições estatais distintas respeitando-se à pluralidade soberana de cada uma delas. O regime de aplicação soft law da lei modelo já traduz, em si mesmo, uma ideia de respeito à pluralidade e à soberania de cada jurisdição concursal. Adere quem quer e nos limites que deseja.

Trata-se, nesse particular, que adesão ao princípio de direito internacional da cortesia, muito festejado entre os internacionalistas por possuir como vetor axiológico à mitigação de conflitos entre jurisdições. A concepção de cortesia está associada ao fato de que os governantes podem aplicar o direito objetivo de cada povo, nos limites de seu território, desde que não haja prejuízo ao seu poder, ao seu povo e aos próprios estrangeiros. Trata-se de conferir isonomia à concursalidade entre nacionais e estrangeiros.

É a própria internalização, no âmbito do recente microssistema legal brasileira das insolvências transfronteiriças, do princípio da par conditio creditorum, segundo o qual há paridade de condição de todos os credores, sejam eles internos e, agora, externos.

A segunda razão é que as próprias disposições legislativas brasileiras inseridas em nosso recente sistema de insolvência transfronteiriça têm base em uma cláusula geral de proteção da ordem pública. Diz o §4º do artigo 167-A da LRF: "O juiz somente poderá deixar de aplicar as disposições deste Capítulo se, no caso concreto, a sua aplicação configurar manifesta ofensa à ordem pública". Esse dispositivo reflete o artigo 6º da lei modelo da Uncitral, que igualmente consagra a exceção de ordem pública.

Repare-se que ambos os dispositivos, o brasileiro e a lei modelo, utilizam a expressão "manifestamente contrário à ordem pública", a fim de sugerir uma interpretação restritiva. Caso contrário, a almejada cooperação internacional se veria comprometida por simples diferenças entre legislações internas. Assim, tem prevalecido o entendimento de que o escopo da exceção de ordem pública é a proteção de direitos e garantias constitucionais, bem como políticas fundamentais do Estado requisitado.

De fato, o conceito de ordem pública é fluido e de textura aberta, comportando múltiplas interpretações a depender do hermeneuta e do contexto em que está inserido. No entanto, em algumas oportunidades, as cortes norte-americanas se manifestaram sobre o seu conteúdo semântico a fim de melhor definir seus contornos.

O certo é que somente aqueles procedimentos que forem manifestamente contrários à ordem pública dos países é que devem ser recusados, sob pena de frustração dos próprios objetivos perseguidos com a cooperação jurídica internacional transfronteiriça de celeridade e agilidade na proteção dos ativos do devedor e na preservação do interesse dos credores, na dicção do §1º do artigo 167-F da LRF.

No último dia 18 de maio, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou, por unanimidade, a Resolução nº 394/2021, que internaliza o "Judicial Insolvency Network" (JIN), um acordo internacional com regras de cooperação e de comunicação direta com juízos estrangeiros de insolvência.

Veja-se, nesse particular, que as regras sobre cooperação internacional em processos concursais concorrentes dizem respeito a princípios e procedimentos, sempre se respeitando à soberania e as questões de ordem pública das demais jurisdições. Mesmo em questões meramente procedimentais de comunicação direta entre países, é possível se recusar a adoção de ações manifestamente contrárias à ordem pública. Tudo em estrita conformidade à soberania das jurisdições concursais.

Ao fim e ao cabo, a incorporação da lei modelo da Uncitral, lastreada em um modelo pós-universalista de cooperação, equilíbrio e respeito às peculiaridades jurídicas de cada país, embora tardiamente incorporada ao Direito brasileiro, confere isonomia concursal a nacionais e estrangeiros. Mais do que isso, imprime ganhos de eficiência tanto para o devedor com a promoção da recuperação de sua empresa em crise, quanto, na outra ponta, para os credores, porquanto a comunicação célere e direta entre países permite a proteção e maximização do valor dos ativos do devedor.

Autores

  • Brave

    é sócio do escritório Wald, Antunes, Vita e Blattner Advogados, pós-graduado em Direito do Consumidor pela PUC-SP e mestrando em Direito Constitucional pelo Instituto de Direito Público (IDP), foi consultor convidado da Comissão de Assuntos Constitucionais, e da Comissão de Mediação e Arbitragem do Conselho Federal da OAB.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!