Opinião

É ilegal prisão de suspeito por falso testemunho feita pela CPI

Autores

  • Henrique Hoffmann

    é delegado de Polícia Civil do Paraná autor pela Juspodivm professor da Verbo Jurídico Escola da Magistratura do Paraná e Escola Superior de Polícia Civil do Paraná mestre em Direito pela Uenp colunista da Rádio Justiça do STF e ex-professor do Cers TV Justiça Secretaria Nacional de Segurança Pública Secretaria Nacional de Justiça Escola da Magistratura Mato Grosso Escola do Ministério Público do Paraná Escola de Governo de Santa Catarina Ciclo Curso Ênfase CPIuris e Supremo.

  • Rafael Francisco Marcondes de Moraes

    é mestre e doutorando em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (USP) professor da Academia de Polícia do Estado de São Paulo e de cursos de graduação e pós-graduação e delegado de polícia do estado de São Paulo.

9 de julho de 2021, 19h15

Contexto fático da discussão
A prisão em flagrante por crime de falso testemunho contra investigado (intimado como testemunha) pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19, decretada pelo parlamentar presidente da comissão, denota equívocos e gera perplexidade, o que recomenda um debate mais profundo do tema.

Spacca
Como será explicado, a medida imposta na CPI não se sustenta tanto sob o ponto de vista material, diante dos óbices que rechaçam a caracterização do falso testemunho, quanto sob a perspectiva processual, face à ausência de requisitos exigidos para a custódia em flagrante delito.

CPI e a investigação não criminal
Importante pontuar, de início, que não é a CPI uma substituta da Polícia Judiciária na investigação criminal. Assim como outros órgãos estatais (como Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e Receita), pode presidir investigações de ilícitos não penais, porém não apuração exclusiva de crimes. A apuração de infrações penais (exclusivamente criminal) continua sendo missão outorgada à Polícia Judiciária (artigo 144 da CF).

Como bem destacou a Suprema Corte:

"Sempre se entendeu que o poder de investigar era inerente ao poder de legislar e de fiscalizar, e sem ele o Poder Legislativo estaria defectivo para o exercício de suas atribuições. O poder investigatório é auxiliar necessário do poder de legislar; "conditio sine qua non" de seu exercício regular. Podem ser objeto de investigação todos os assuntos que estejam na competência legislativa ou fiscalizatória do Congresso. (…) A comissão parlamentar de inquérito se destina a apurar fatos relacionados com a administração (…). Não se destina a apurar crimes nem a puni-los, da competência dos Poderes Executivo e Judiciário" [1].

Evidentemente, se no curso da apuração não criminal ficar evidenciada a prática também de algum delito, a prova colhida será compartilhada com o órgão de persecução penal. Isto é, o relatório da CPI deve ser encaminhado para Ministério Público (MP) (artigo 58, §3º da CF) ou Advocacia-Geral da União (AGU) ou outros órgãos, como a Polícia Judiciária, na linha do que dispõe a legislação (artigo 6º-A da Lei 1.579/52; artigo 1º da Lei 10.001/00) e entende o STF [2].

Investigado intimado como testemunha, direito ao silêncio e falso testemunho
Conquanto não seja objetivo primário da CPI apurar crimes, as diligências da comissão para fiscalizar ilícitos também se submetem a limites, notadamente aquele estampado num postulado muito caro à persecução penal: o nemo tenetur se detegere. Explicitado no artigo 5º, LXIII, da Constituição, por meio da cláusula do direito de permanecer em silêncio, compreende o direito de não produzir quaisquer elementos de incriminação contra si próprio. Isso significa que o suspeito ou réu não pode ser compelido a participar de diligência ou tolerar prova invasiva a fim de produzir prova contra si mesmo.

Especificamente quanto ao direito ao silêncio, essa garantia abrange, entre outros elementos, o direito de não ser submetido a interrogatório sub-reptício, travestido de entrevista [3], devendo ser informado sobre seu direito de ficar calado antes de ser ouvido como testemunha caso seja feita pergunta que gere incriminação [4], sendo atípica a conduta da testemunha que se cala ou mente em juízo para eximir-se da autoincriminação [5]. Em outras palavras o privilégio contra a incriminação própria exonera o depoente do dever de depor sobre fatos cujo esclarecimento possa ensejar sua responsabilização penal. Não incidindo o crime de falso testemunho, seja em inquérito policial e processos administrativo ou judicial em geral (artigo 342 do CP), seja na CPI (artigo 4º, II, da Lei 1.579/52).

Esse é o entendimento pacífico, há bastante tempo, não apenas na doutrina [6], como também dos tribunais superiores:

"Atípica a conduta de falso testemunho, quando a testemunha, compromissada em juízo, desobriga-se de dizer a verdade, com o fim de evitar sua acusação pela prática de algum crime, tendo em vista os postulados constitucionais do direito ao silêncio e da não autoincriminação" [7].

"A Constituição Federal assegura a todos os investigados o direito ao silêncio e à não autoincriminação, motivo pelo qual, ainda que compromissada em juízo, a testemunha não é obrigada a dizer a verdade sobre fatos que possam ensejar a sua acusação pela prática de algum crime" [8].

"Não configura o crime de falso testemunho, quando a pessoa, depondo como testemunha, ainda que compromissada, deixa de revelar fatos que possam incriminá-la" [9].

Grife-se: a artimanha de intimar o investigado como testemunha e submetê-lo a compromisso de dizer a verdade não tem o condão de afastar seu direito ao silêncio quanto a perguntas cujas respostas possam incriminá-lo. Além disso, no Brasil, como sabemos, inexiste o crime de perjúrio, não constituindo crime a mentira ou o silêncio do suspeito.

Atribuição para lavratura de auto de prisão em flagrante, parlamentar e Polícia Legislativa
Quando de fato se tratar de testemunha (e não de investigado) que mente ou se cala, sem que tenha se retratado ou declarado a verdade, a prisão em flagrante pode ser decretada, desde que presentes seus requisitos: a) o estado de flagrância delitiva, requisito temporal retratado em uma das modalidades do artigo 302 do Código de Processo Penal (CPP); e b) a fundada suspeita, requisito probatório hospedado no artigo 304, §1º, do CPP [10].

Nessa linha, além de o indivíduo ser capturado quando: a1) está cometendo a infração penal ou acaba de cometê-la (flagrante próprio); a2) perseguido, logo após, em situação que faça presumir ser autor da infração (flagrante impróprio); ou a3) encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser autor da infração, devem existir indícios suficientes (veementes) de materialidade e autoria do ilícito, a restar fundamentadamente indicados na decisão do delegado de polícia.

Ademais, a prisão em flagrante consiste em espécie de prisão cautelar cuja atribuição para decretação é da autoridade de Polícia Judiciária (artigo 304, §1º, do CPP), tendo a legislação autorizado a qualquer do povo não a formalização do auto de prisão em flagrante, mas a mera captura do suspeito em estado flagrancial (artigo 301 do CPP).

Não se olvida que o artigo 307 do CPP admite excepcionalmente que o juiz formalize o auto de prisão em flagrante (APF) quando o fato for praticado em sua presença ou contra ele no exercício de suas funções. Todavia, trata-se de dispositivo ultrapassado (e por isso mesmo de rara utilização prática), que colide frontalmente com o sistema acusatório consagrado no nosso sistema processual penal, que veda a iniciativa do juiz na fase de investigação (artigo 3º-A do CPP). Ora, se a Constituição concebeu um sistema de persecução criminal em que há uma instituição exclusivamente destinada à investigação criminal, em vez de concentrar tal atribuição em outro órgão (como se dá em modelos de outros países), também por esse motivo não faz sentido que o magistrado confeccione uma das peças que inaugura o inquérito policial.

Nesse sentido, o fato de a CPI possuir poderes de investigação próprios das autoridades judiciais (artigo 58, §3º, da CF) não se qualifica como permissivo para autorizar que o relator da CPI (ou qualquer outro parlamentar) lavre um auto de prisão em flagrante [11], mesmo em relação a delito praticado nas dependências da casa legislativa.

Tampouco deve o APF ser lavrado pela Polícia Legislativa, seja a Polícia do Senado ou a Polícia da Câmara dos Deputados. Tais polícias possuem previsão constitucional (artigo 52, XIII, e artigo 51, IV, da CF, respectivamente) peculiar. Isso porque, além de não terem sido inseridas nos órgãos de segurança pública (artigo 144 da CF), não tiveram suas atribuições expressamente indicadas pelo texto constitucional, que se limitou a dizer que compete ao Senado e Câmara dispor sobre suas polícias. Por força do princípio da legalidade, o agente público só está autorizado a desempenhar a atribuição expressamente autorizada pela legislação. Por isso, a interpretação sistemática da Constituição leva à conclusão que, tendo a apuração de infrações penais sido destinada às polícias Judiciárias (artigo 144, §§1º e 4º, da CF), as Polícias Legislativas não podem realizar investigação criminal, sendo polícias administrativas com dever apenas de evitar infrações.

Não se desconhece que a Súmula 397 do STF afirma que o poder de polícia da Câmara e do Senado, em caso de crime cometido nas suas dependências, compreende a prisão em flagrante do acusado e a realização do inquérito. Contudo, cuida-se de enunciado editado em 1964 sob outra ordem constitucional, incompatível com a atual Constituição de 1988, que expressamente reservou a investigação criminal para as polícias judiciárias. Sendo, no âmbito federal, conforme expressa dicção do texto constitucional, a Polícia Federal aquela que deve "exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União" (artigo 144, §1º, IV, da CF).

Também não se ignora que o Regimento Administrativo do Senado Federal (artigo 263 da Resolução 13/2018) e o Regimento Interno da Câmara dos Deputados (artigo 269 da Resolução 17/1989) autorizam que o auto de prisão em flagrante por crime cometido nas suas dependências seja lavrado pela Polícia Legislativa. Entretanto, a competência do Legislativo para dispor sobre sua polícia não autoriza afastar ou suprimir a atribuição investigativa criminal da polícia federal expressa na Carta Magna [12]. Os policiais legislativos devem se limitar, portanto, a apresentar o suspeito capturado em flagrante ao delegado de polícia, em especial para a audiência de apresentação do artigo 304 do CPP [13], e posteriormente a autoridade policial determinará o encaminhamento do preso à audiência de custódia (artigo 310 do CPP), caso não venha a arbitrar fiança e expedir alvará de soltura (artigo 322 do CPP).

Abuso de autoridade
Como a legislação deve conferir não apenas poderes, mas também deveres àqueles que agem em nome do Estado, criando instrumentos de punição para as hipóteses em que o agente público não pautar sua atuação em nome do interesse público, foi editada a Lei de Abuso de Autoridade.

Um dos tipos penais incide exatamente sobre aquele que decreta prisão de modo ilegal:

"Artigo 9º — Decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais:    
Pena — detenção, de um a quatro anos, e multa".

Logo, presente a finalidade específica (elemento subjetivo especial) de o agente, alternativamente (artigo 1º, §1º da Lei 13.869/19): a) prejudicar outrem; b) beneficiar a si mesmo ou a terceiro; c) por mero capricho; ou d) por satisfação pessoal [14], deve responder criminalmente pelo abuso.

Reflexão final
O instituto da CPI é certamente relevante para o exercício da missão fiscalizatória do Legislativo. Mas é preciso que os parlamentares, ao adotar medidas restritivas de direitos (como a prisão) contra quem quer que seja, observem estritamente os requisitos jurídicos para tanto. O cerceamento da liberdade de alguém não pode ser motivado por clamor social (comoção ou indignação da sociedade), para servir de exemplo ou supostamente preservar o prestígio (credibilidade) do poder público [15]. As decisões devem sempre se pautar em critérios impessoais e objetivos, e não ao sabor de casuísmos e intuições.

 


[1] STF, Tribunal Pleno, HC 71.039, Rel. Min. Paulo Brossard, DJ 07/04/1994.

[2] STF, Tribunal Pleno, MS 35.216-AgR, Rel. Min. Luiz Fux, DJ 17/11/2017.

[3] STF, Rcl 33.711, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 11/06/2019.

[4] STF, RHC 122.279, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 12/08/2014; STJ, RHC 131.030, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJ 03/11/2020.

[5] STJ, HC 603.445, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, DJ 29/04/2021; STJ, REsp 402.470, Rel. Min. Laurita Vaz, DJ 20/11/2003.

[6] DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado. São Paulo: Renovar, 1991, p. 526; JESUS, Damásio de. Código Penal Anotado. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 906.

[7] STJ, RHC 66.908, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, 10/11/2016.

[8] STJ, HC 326.956, Rel. Min. Jorge Mussi, DJ 05/11/2015.

[9] STF, HC 73.035, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 19/12/1996.

[10] MORAES, Rafael Francisco Marcondes de. Prisão em flagrante delito constitucional. Salvador: JusPodivm, 2020, p. 173-180.

[11] Nota crítica: no sistema processual penal brasileiro, de matriz acusatória, os juízes não têm poderes de investigação (reservados aos delegados de polícia), e sim poderes jurisdicionais, que afetam a investigação criminal nas hipóteses de diligências investigativas submetidas a reserva de jurisdição absoluta (ou seja, que precisam da autorização judicial para serem realizadas).

[12] MOREIRA, Rômulo de Andrade. O enunciado 397 do Supremo Tribunal Federal e a polícia legislativa. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 20, n. 4467, 24 set. 2015. Disponível em: <jus.com.br/artigos/42640>. Acesso em: 8 jul. 2021.

[13] MORAES, Rafael Francisco Marcondes de; GONÇALVES, Fernando David de Melo. Consultor jurídico, São Paulo, 14 abr. 2020. Na pandemia, audiência de apresentação e garantias é imprescindível. Disponível em: <www.conjur.com.br/2020-abr-14/opiniao-imprescindivel-audiencia-apresentacao-garantias>. Acesso em: 8 jul. 2021

[14] COSTA, Adriano, FONTES, Eduardo; HOFFMANN, Henrique. Lei de Abuso de Autoridade. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 45; LESSA, Marcelo de Lima; MORAES, Rafael Francisco Marcondes de; GIUDICE, Benedito Ignácio. Nova Lei de Abuso de Autoridade: diretrizes de atuação de Polícia Judiciária. São Paulo: Academia de Polícia, 2020, p.23-24.

[15] STJ, HC 281.226, Rel. Min. Jorge Mussi, DJ 06/05/2014.

Autores

  • é delegado de Polícia Civil do Paraná; autor pela Juspodivm; professor da Verbo Jurídico, Escola da Magistratura do Paraná e Escola Superior de Polícia Civil do Paraná; mestre em Direito pela UENP; colunista da Rádio Justiça do STF. Foi professor do CERS, TV Justiça do STF, Secretaria Nacional de Segurança Pública, Secretaria Nacional de Justiça, Escola da Magistratura Mato Grosso, Escola do Ministério Público do Paraná, Escola de Governo de Santa Catarina, Ciclo, Curso Ênfase, CPIuris e Supremo. www.henriquehoffmann.com

  • é delegado de polícia de São Paulo, mestre e doutorando em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Academia de Polícia de São Paulo (Acadepol).

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