Opinião

Ainda a questão da maioridade penal

Autor

  • João Mestieri

    é advogado doutor em Direito pela PUC-RJ fellow da Yale University (USA LLM Yale Law School USA 1972) membro efetivo da Academia Brasileira de Letras Jurídicas — titular da Cadeira 16 — professor associado da PUC-RJ e membro honorário da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim).

8 de julho de 2021, 6h04

Atualmente temos no Brasil um discurso retórico de grande impacto popular, procurando desviar a atenção dos destinatários da norma penal dos reais problemas sociais e de suas reais soluções para caminhos vicinais populistas que visam muito mais a aplacar o clamor público do que cumprir com o dever político e social de prover a sociedade de soluções verdadeiras para questões verdadeiras.

O vezo de se discutir o valor da maioridade penal é exemplo antológico de uma tal postura da impostura. Em termos da teoria do Direito Penal, do Processo Penal, da Criminologia e, em especial, do Penitenciarismo, a redução da menoridade penal é absolutamente ineficaz para a diminuição dos números da criminalidade.

O que veladamente se pretende é substituir políticas públicas caras, porém necessárias, imprescindíveis, e com o efeito indissociável de abrir os olhos do cidadão para as realidades sociais, por paliativos de alto impacto populista que venham de encontro aos anseios imediatistas da população, ávida de uma reação à altura ao estado de coisas, ou seja, a criminalidade sem controle, sem programa de equacionamento, sem solução e sem punição.

O erro de base é evidente e não se diga que se possa tributá-lo à ignorância das regras sociais. O clamor público quer reações que respondam aos seus sentidos de percepção; entende-se que se os menores entre 16 a 18 anos forem imputáveis, haverá com isso uma inibição desse segmento da delinquência e, via de consequência, teríamos o efeito positivo da redução da criminalidade. Os menores assim imputáveis seriam submetidos ao sistema carcerário comum, vale dizer, teriam ingresso no sistema penitenciário do Estado. Note-se que o discurso a favor da redução da idade da imputabilidade evita examinar a qualidade do sistema penal "dos adultos", sua realidade e eficácia.

Nada obstante, permitiu o destino que no STJ, no AgRe no Recurso de Habeas Corpus nº 136.961 (RJ), o ministro Reynaldo Soares da Fonseca, relator, frente à barbaridade das condições em que se encontrava o Instituto Plácido de Sá Carvalho, situado no Complexo de Bangu, no qual o paciente cumpria pena em condições degradantes e subumanas, reconhecesse a incidência da Resolução de 22/11/2018 da Corte de Direitos Humanos, reduzindo a pena à metade, e proclamando a importância de se guardar os princípios do Direito da fraternidade na aplicação das regras do Direito.

A ideia da redução do limite etário, velha de décadas, independentemente da época ou período em que se apresente, de jogar os condenados maiores e menores na vala comum do sistema penitenciárioignorado, abandonado e falido, jamais vingou perante a apreciação cientifica da Sociologia, da Política Criminal e do Penitenciarismo. Em realidadeo que temos no Brasil? Temos uma legislação de bom nível, a Lei de Execução Penal, de 1984, que jamais foi aplicada em seus princípios, filosofia e finalidades. O viajante que lesse esse elegante diploma brasileiro e fosse visitar os estabelecimentos prisionais, na crueza de sua realidade, certamente chegaria à conclusão de que o diploma legal estaria na estante por acidente, por engano, pois sem dúvida referir-se-ia a outra sociedade.

O setor penitenciário é um dos mais desfavorecidos na hora de se discutir e cumprir orçamentos públicos; entende-se que os "delinquentes" não possam merecer e receber mais do que aqueles cidadãos impolutos, que também vivem a sua miséria, material, moral, social. Destinar verbas para as penitenciárias e aos seus diversos serviços e necessidades soaria como um desrespeito ao cidadão comum, de bem.

Em verdade, a estratégia de diminuir o limite de idade da imputabilidade participa da natureza do pensamento pouco esclarecido e acientífico de agigantar o Direito Penal, de exacerbar as penas, na crença de que, diante de um sistema punitivo mais drástico, os índices da criminalidade declinariam. Uma tal falácia, a par de já se haver mostrado falsa e sem propósito, apenas retarda ou posterga a tomada de decisões no sentido correto da nossa história sócio-política.

A realidade a ser encoberta pelo engodo da maioridade reduzida é, como sempre foi, o não enfrentamento das questões sociais reais como um todo, cadinho de onde provêm todos os males sociais com potencial de alimentar o estrato da delinquência. Saúde e educação, no primeiro plano; para além do respeito a esses direitos básicos da construção social e da formação do cidadão, o crescimento da economia com a criação de oportunidades de emprego, de conformidade com a capacitação de cada um e, sempre, o livre caminho para a ascensão social.

Diante do fracasso do Estado no implementar ações preventivas e satisfativas da plenitude dos direitos individuais, procura-se retoricamente chamar a atenção não para esses gaps de satisfação social, mas para os malfeitos daqueles que, desassistidos do governo e da sorte, chegam ao crime. Enquanto se pretende incriminar o jovem a partir de seus 16 anos, evita-se que o foco da opinião pública pouse sobre a inércia do Estado em cumprir as suas prioridades de governo, de privilegiar no orçamento a aplicação de recursos em políticas públicas fundamentais.

O objetivo da execução penal, segundo a moderna doutrina e legislação correspondentes, é igualmente prenhe de retórica idealista; não convém manter uma pena-castigo, melhor será a pena-ressocialização. Sabe-se, de há muito, que a imensa clientela das penitenciárias é formada de adultos sem formação, sequer fundamental, para além da miséria moral, a impedir a absorção de valores básicos da moral media. São sobreviventes, existências marginalizadas das ondas sociais, entes inaceitáveis.

O sistema penitenciário recebe, assim, esse contingente formidável de desesperançados sociais e os guarda, tranca-os da maneira mais vil possível e depois os devolve às ruas, sem que hajam sofrido qualquer ação positiva de valia. Os índices de reincidência são, como de esperar, expressivos.

A questão, como toda a gente sabe, ou deveria saber, não é de repressão mais enérgica e paritária à delinquência adulta, mas de fazer valer, obrigar o governo a funcionar, a prover as comunidades da verdadeira saúde e da verdadeira educação; e ainda, no momento adequado e necessário, criar e manter verdadeiras oportunidades de participação social. Isso cumprido, como por encanto, os índices de criminalidade cairiam drasticamente, os bandidos do morro não poderiam aliciar os jovens, não seria bom para os adolescentes procurar desde logo "levar vantagem" na vida presente, porque teriam ao seu dispor um verdadeiro programa de vida decente, uma carreira e até mesmo o apoio de uma família, da sua família.

O Estatuto da Criança e do Adolescente é um documento legislativo de grande valor, mas que pode ser revisado para se criar uma política mais elaborada e complexa para a delinquência dos adolescentes, mas sem perder a sua natureza, a sua qualidade, frente ao desafio social. Por fim, não podemos esquecer que, seja para a delinquência juvenil, seja para a delinquência adulta, nada, absolutamente nada, poderá avançar no sentido social se não houver a participação responsável dos governos com sanções positivas, ou seja, boa saúde, boa educação e, diga-se, bons exemplos.

Autores

  • é advogado, doutor em Direito pela PUC-RJ, fellow da Yale University (USA.LLM, Yale Law School, USA, 1972), membro efetivo da Academia Brasileira de Letras Jurídicas — titular da Cadeira 16 —, professor associado da PUC-RJ e membro honorário da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim).

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