Opinião

A realidade por trás dos números

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8 de julho de 2021, 16h08

Ao recebermos a edição de 2021 do "Anuário da Justiça" da ConJur, chamou a atenção, logo nas primeiras páginas, o resumo numérico da atividade dos tribunais que a revista analisa e que reproduzimos abaixo:

Movimento processual 2020
Processos  STF STJ TST TSE STM Total
Distribuídos 39.552 354.398 349.860 9.831 940 754.551
Julgados 99.518 503.699 340.416 9.119 1.025 953.777
Acervo 26.256 258.053 540.261 5.312 353 830.235

Focado, naturalmente, em meu próprio tribunal, impressionou-me ver como, comparativamente às demais cortes, julgou menos do que recebeu e teve seu acervo elevado ao maior patamar de seus 75 anos de existência.

Consultando a série histórica do TST, relativa ao crescimento de seu acervo de processos a julgar ao final de cada ano, limitado aos anos em que integramos a corte como ministro (posse ao final de 1999), o quadro que a Coordenadoria de Estatística e Pesquisa do TST apresenta é o seguinte:

Crescimento do acervo do TST 2000-2019 (últimos 20 anos)
Ano Acervo Ano Acervo Ano Acervo Ano  Acervo
2000 153.906 2005 227.424 2010 168.841 2015 237.503
2001 159.400 2006 244.431 2011 161.590 2016 209.916
2002 195.912 2007 249.316 2012 176.413 2017 220.755
2003 224.495 2008 206.089 2013 224.461 2018 214.140
2004 246.743 2009 172.731 2014 248.895 2019 342.843

De plano, não se pode atribuir à pandemia da Covid-19 e aos seus efeitos colaterais de teletrabalho e de sessões telepresenciais o aumento na demanda recursal ao TST e a incapacidade de debelá-la devidamente. Isto porque todos os tribunais superiores, à exceção do TSE, julgaram mais do que receberam de recursos e reduziram substancialmente seus acervos no ano de 2020. É natural perquirir, diante desses dados estatísticos que chamam muito a atenção, pelas razões desses consideráveis aumentos de estoque processual, buscando suas causas mais prováveis e próximas. O que se verifica dessa série histórica são dois saltos monumentais de acervo durante os dois últimos anos, com aumento de quase 130 mil processos ao final de 2019 e de cerca de 200 mil ao final de 2020. Assim se chegou a essa cifra astronômica de mais de meio milhão de processos aguardando solução no TST ao findar o ano da pandemia.

Spacca
Assim, uma primeira conclusão é a de que as causas desse aumento são endógenas ao TST e à Justiça do Trabalho, da qual aquele é o órgão de cúpula. Daí a pergunta sobre o que poderia ter ocorrido nos últimos anos no TST e nos TRTs para que houvesse um aumento substancial de recursos para e dentro da instância última trabalhista.

Uma primeira causa, em relação ao aumento de recursos internos ao final de 2020, é clara: a declaração de inconstitucionalidade do §5º do artigo 896-A da CLT, que estabelecia a irrecorribilidade interna das decisões monocráticas proferidas em agravos de instrumento que dessem pela intranscendência da causa (cfr. TST- ArgInc-1000845-52.2016.5.02.0461, julgada em 6/11/20). A reforma trabalhista promovida pela Lei 13.467/17, quanto ao TST, veio a regulamentar e tornar aplicável o critério de transcendência para o recurso de revista, como filtro mais radical de seleção de recursos a serem julgados pela corte, estabelecendo a irrecorribilidade naqueles processos que, já tendo sofrido o crivo do juízo de admissibilidade dos TRTs, não justificassem nova apreciação meritória pelo tribunal. Nesse aspecto, a decisão majoritária do Pleno do TST contribuiu para mitigar o filtro e aumentar a recorribilidade interna.

Assim, o TST, mesmo tendo julgado menos processos do que em 2019, teve um aumento de mais de 10% nos recursos internos em 2020, passando de 55.267 para 61.220, e já quase duplicou o número do mesmo período de 2020 (21.338), com 37.264 só até maio deste ano de 2021, segundo dados da Cest do TST.

Como diziam alguns ministros do STJ quando foi editada a MP 2226/01, que no TST estávamos com "a faca e o queijo na mão" para racionalizar a prestação jurisdicional do tribunal com o critério de transcendência, que eles almejam, sob o nome de critério de relevância com a PEC 10/17 do Senado (aprovada como PEC 209 na Câmara), uma vez que a sistemática dos recursos repetitivos não é suficiente para concentrar a corte na sua missão de uniformização da jurisprudência, perdendo-se no julgamento de casos e não teses, além do travamento do sistema em face dos constantes sobrestamentos de processos.

O problema é que não temos usado adequadamente o critério, julgando à moda antiga, de dizer porque a parte não tem razão, ao invés de dizer porque não se adentrará no mérito do recurso intranscendente. Ou então, julgando à nova moda, de transcrever a decisão recorrida e dizer que se mantém pelos seus próprios fundamentos. Assim, quer no sistema artesanal, que acumula milhares de processos de acervo, quer no sistema fordista da linha de produção de processos em série, não customizados, o fato é que a jurisdição padece por atravancamento ou massificação. E quem perde é o jurisdicionado, sem contar a saúde física e psicológica do magistrado submetido a números tão desalentadores.

Mas o fator que mais tem gerado o aumento de recursos para o TST é, sem dúvida nenhuma, o fato de o TST vir sendo refratário à jurisprudência do STF em matéria trabalhista e muitos TRTs não observarem sequer a jurisprudência sumulada do TST e do STF. Isso tem obrigado as partes a recorrerem das decisões regionais ou terem de passar necessariamente pelo TST para obterem do Supremo aquilo que já está pacificado pelo Pretório Excelso. Sobre tal situação de fato já nos debruçamos em artigo publicado na ConJur intitulado "Confronto entre TST e STF: Uma Análise Psicológica do Direito" (21/10/20).

Em que pese as decisões proferidas pelo STF nos casos de responsabilidade subsidiária da Administração Pública (ADC 16, Tema 246 e precedentes em reclamações julgadas pelas 2 Turmas do Supremo), de terceirização (Temas 725 e 739 e ADPF 324) e de negociação coletiva (precedentes dos RE 590.415 e RE 895.759), as matérias seguiram em debate no TST, obrigando a Suprema Corte a erigir os Temas 1.118 (sobre o ônus da prova da fiscalização) e 1.046 (limites da negociação coletiva), com sobrestamento de milhares de recursos no TST, além de se discutir na SDI-1 dessa corte se havendo subordinação direta do trabalhador na terceirização, seriam aplicáveis os precedentes do STF (tema agora afetado ao Pleno do TST).

Nessa toada, os processos vem e voltam, entre STF e TST, para exercício de juízos de retratação, a par dos órgãos jurisdicionais trabalhistas serem instados a observarem os precedentes da SDI-1 do TST mais do que os da Suprema Corte.

No que concerne aos TRTs, chama a atenção, por exemplo, a insistência de várias cortes regionais em não aplicarem a jurisprudência pacífica do STF e do TST quanto à exigência constitucional do comum acordo para apreciação de dissídio coletivo econômico (CF, artigo 114, §2º). Centenas de recursos foram providos em 2019 e 2020, para extinguir processos de dissídios coletivos, mesmo com jurisprudência de anos da SDC e após o precedente do STF do RE 1002295 (Tema 841), julgado em 21/09/20.

Outros tantos apelos têm sido acolhidos pelo TST em ações anulatórias, mesmo depois da decisão do STF pra o Tema 935 de repercussão geral ("É inconstitucional a instituição, por acordo, convenção coletiva ou sentença normativa, de contribuições que se imponham compulsoriamente a empregados da categoria não sindicalizados").

Nem se mencionem os recursos que sobem por não aplicação de preceitos da reforma trabalhista de 2017 por parte de muitos tribunais regionais, como os da homologação judicial de rescisão contratual (CLT, artigos 855-B a 855-E), Justiça gratuita (CLT, artigo 790, = §3º e 4º), honorários de sucumbência (CLT, artigo 791-A), vedação à ultratividade de normas coletivas (CLT, artigo 614, §3º), demissão em massa sem negociação coletiva (CLT, artigo 477-A), não incorporação de gratificação de função (CLT, artigo 468, §2º), trabalho intermitente (CLT, artigo 442-B) e parametrização de danos morais (CVLT, artigos 223-A a 223-G), para referir apenas alguns.

É natural que uma reforma da dimensão que foi a de 2017 provoque intensa polêmica e necessidade de pacificação por parte do TST, suscitando muitos recursos. Porém, a persistência nas posições superadas pela jurisprudência do TST é que explica o aumento significativo de recursos, em que a solução final já é conhecida, porém se obrigam as partes a recorrer, com gasto de tempo e dinheiro de recorrentes e contribuintes, fazendo a máquina judicial funcionar desnecessariamente.

Em suma, num artigo despretensioso, que apenas pretende levar à reflexão em torno dos números assustadores de processos tramitando no TST, a principal causa que detectamos para explicar o fenômeno, numa síntese que abarque as que foram aqui tratadas, parece ser uma postura refratária à radicalidade do filtro seletor de recursos no TST, à jurisprudência pacificada do STF e à própria reforma trabalhista em muitos de seus aspectos, o que vai, aos poucos, inviabilizando uma prestação jurisdicional mais célere e segura por parte do órgão de cúpula da Justiça do Trabalho.

Ou talvez sejam outros fatores desconhecidos que expliquem esse aumento desproporcionado de processos que não chegamos a imaginar, como acasalamento noturno de recursos…

Brincadeiras a parte, oxalá as causas decorram de problemas mais simples de serem resolvidos ou nos decidamos a racionalizar melhor o trabalho nesta instância extraordinária, contando com a colaboração das cortes regionais neste 80º aniversário de nossa Justiça do Trabalho.

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