Opinião

Aos vencidos, ódio ou compaixão; às associações, as batatas

Autores

  • Daniel Báril

    é sócio coordenador da área de Insolvência e Reestruturação de Silveiro Advogados.

  • Daniel Raupp

    é sócio na área de direito societário de Silveiro Advogados mestre em Direito Societário pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

8 de julho de 2021, 20h33

Quando Machado de Assis, em seu "Quincas Borba", cunhou a frase que inspira o título deste artigo, lidava com uma anedota que apreendia um contexto distributivo de recursos escassos ("um campo de batatas" insuficiente para "duas tribos famintas"), cuja futilidade da própria luta redundava nas batatas do vencedor. Quando, por seu turno, o legislador nacional, regulando o sistema da insolvência estabelecido na Lei nº 11.101/2005 (LFRE), optou por submeter a esse regime apenas o "empresário e a sociedade empresária" (cf. artigo 1º) [1], excluindo explicitamente (cf. artigo 2º) empresas públicas e de economia mista [2], e implicitamente organizações como associações e fundações, tinha diante de si contexto diametralmente oposto.

Ora, não é ela própria — a recuperação judicial — um bem escasso a ser "economizado" pelo legislador, nem muito menos é fútil a luta pela sobrevivência de entes com clara conotação empresarial.

No caso machadiano, considerando que "se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição", "a paz nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação". No caso recuperacional, excluir do sistema entes que geram "estímulo à atividade econômica" (mesmo que não tipificados como empresa, caso de determinadas associações), a exclusão parece a destruição e a admissão, a conservação. 

Tal, então, é a mazela sofrida por determinadas associações que, possuindo funcionalidade equivalente à de sociedades empresariais em virtude das atividades a que se propõe realizar, foram privadas pelo legislador de uma solução via recuperação judicial, por adotarem, do ponto de vista estrutural, tipologia legal associativa e, portanto, não empresarial

É notória a disfuncionalidade do regime brasileiro da insolvência civil, ao qual as associações, a rigor, estariam submetidas. Ainda regulada pelo Código de Processo Civil de 1973, a insolvência civil já não funciona adequadamente nem para as pessoas naturais, que dirá, então, para entes civis de estrutura mais complexa, muitas vezes de porte substancial e com interesses múltiplos, tanto do ponto de vista externo (credores e comunidade) quanto do ponto de vista interno (por exemplo associados, diretores e empregados). 

Não por outro motivo o Judiciário vem pontualmente deferindo o processamento da recuperação de determinadas associações, permitindo a conservação de organizações produtivas de riqueza. Isso, aliás, não era de todo inesperado, considerando que o Judiciário já havia autorizado que, através do conceito de "preservação da empresa" (insculpido no basilar artigo 47), fosse permitida inclusive a prorrogação do improrrogável (vide aplicação jurisprudencial do §4º do artigo 6º quanto ao stay period). 

Ora, a recuperação judicial (como a falência) tem por finalidade organizar um processo distributivo de recursos escassos, num contexto empresarial de default do devedor. Em outras palavras, ela organiza e sistematiza um concurso de credores, não sendo ela própria, como dissemos, o recurso escasso a ser "economizado" pelo legislador. Aliás, como bem notou Cássio Cavalli em parecer que exarou no contexto da recuperação judicial de instituições de ensino da Rede Metodista (Processo nº 5035686-71.2021.8.21.0001), a recuperação judicial, entre outras funções, auxilia na otimização de processos expropriatórios que, sem ela, tramitariam de forma a dilapidar patrimônio em processos múltiplos que sobrecarregariam ainda mais o judiciário. 

Evidente que o elemento "organizador" da recuperação não basta para que ela seja concedida aos diversos tipos de agentes atuantes no mercado — fosse assim, poderia haver uma indiscriminada concessão de tutelas recuperatórias. Aqui, como de modo geral no Direito Comercial, a análise do tema deve conjugar estrutura e, principalmente, função.

Para tal, o funcionalismo jurídico de Ascarelli, conforme sistematizado por Cavalli em sua inovadora tese ("Empresa, direito e economia". Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 218-219), mostra-se uma ferramenta apropriada ao permitir a análise de um instituto, considerando sua estruturação jurídica, mas permitindo que se tome uma perspectiva econômica a partir da funcionalidade que ele exerce no mercado.

Nesse sentido, veja-se que o instituto da recuperação judicial tem uma funcionalidade bastante específica, o qual também é seu princípio basilar e que está insculpido em seu artigo 47: a preservação da empresa, de sua função social, com o estímulo à atividade econômica. Observa-se, pois, que o elemento "empresa" lhe é estrutural. Não é qualquer agente econômico que gozará das prerrogativas de sua tutela, mas, sim, apenas aqueles em que o interesse comum, transformado em norma jurídica, reconhece como essenciais para a manutenção da ordem econômica existente. 

Havendo, pois, empresarialidade e economicidade, deve ser sopesada a necessidade de se conceder a tutela recuperatória a determinado ente. Nesse contexto, algumas tipificações supostamente excluídas pelo legislador podem ser, pelo Judiciário, compreendidas como possuindo tal característica em contextos específicos.

Tomando-se, por exemplo o ponto de vista da função exercida, parece adequado concluir que as contratações realizadas por associações como grandes times de futebol ou relevantes redes educacionais (e mesmo hospitalares) têm natureza mais próxima à empresarial do que à civil (veja-se que muitas vezes as relações jurídicas desses entes com suas clientelas são regidas pelo Direito do Consumidor, ramo desdobrado do Direito Comercial e decorrência direta de sua expansão dentro do Direito Privado). Caso semelhante, aliás, ao ocorrido com os produtores rurais, responsáveis por grande parte do crescimento do PIB nacional, mas que até muito recentemente não eram juridicamente reconhecidos como empresários e, portanto, não podiam se socorrer da recuperação judicial. 

Expostas nossas considerações sobre a recuperação judicial de entes supostamente não albergados pela LFRE, alerta-se que se do legislador não esperamos "nem ódio nem compaixão", parece razoável esperarmos que o Judiciário, com cada vez menor parcimônia, cumpra seu mister jurisdicional, permitindo a recuperação judicial de determinadas entidades que, possuindo claros contornos empresariais, foram supostamente alijadas da possibilidade de reperfilarem os seus passivos. Por isso, então, é que ora indagamos se, realmente, não cabem "às associações, as batatas"? Ou melhor, às associações, a recuperação judicial?

 

[1] "Artigo 1º – Esta Lei disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, doravante referidos simplesmente como devedor".

[2] "Artigo 2º-  Esta Lei não se aplica a:
I – empresa pública e sociedade de economia mista;
II – instituição financeira pública ou privada, cooperativa de crédito, consórcio, entidade de previdência complementar, sociedade operadora de plano de assistência à saúde, sociedade seguradora, sociedade de capitalização e outras entidades legalmente equiparadas às anteriores".

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