Responsabilidade tributária no roubo da carga em trânsito aduaneiro: ficção?
7 de julho de 2021, 8h00
Existem certas discussões jurídicas que causariam espécie até ao despreocupado Herr Huld, o advogado do romance kafkiano "O Processo", se a realidade não as impusesse à necessária consideração de todos. E uma dessas discussões é a possibilidade de incidência tributária, mediante responsabilidade do transportador, na hipótese do roubo da carga sob condição de trânsito aduaneiro.
Nesse caso, a transportadora fica responsável pelo recolhimento dos tributos suspensos, nos termos do artigo 136 do CTN [2], c/c. com o artigo 32, inciso I do Decreto-Lei 37/66 [3]. Não obstante, os artigos 60, do mesmo Decreto-Lei 37/66 [4] e o artigo 664 do Decreto 6.759/09 [5], preveem excludentes dessa responsabilidade, nas hipóteses em que a mercadoria transportada sofre danos, avarias ou é extraviada, competindo ao responsável (transportadora) provar a ocorrência de caso fortuito ou força maior.
Pois bem. Feitas essas considerações preambulares, já é possível analisar alguns julgamentos realizados pelo Carf, bem como traçar um paralelo com precedentes do STJ a respeito do tema. Em regra, a questão aqui tratada apresenta as seguintes circunstâncias fáticas: uma transportadora discute a sua responsabilidade tributária na hipótese em que transporta mercadorias sob trânsito aduaneiro e que, durante esse deslocamento, são objeto de furto ou roubo.
O Acórdão Carf nº 3401-008.681 [6], por exemplo, parte da premissa quanto a existência de uma distinção entre caso fortuito interno e externo. O primeiro seria um risco inerente a consecução da atividade empresarial, enquanto o segundo seria algo completamente alheio a tal atividade. Com base em tal distinção, inexistente na lei, a turma julgadora, por unanimidade de votos, concluiu que somente nas hipóteses de caso fortuito externo seria excluída a responsabilidade da transportadora, arrematando suas considerações nos seguintes termos:
"…Se a violência nas estradas é circunstância de conhecimento geral, não haveria como se alegar que, máxime para uma empresa transportadora, o roubo de carga é um fato imprevisível e cujos efeitos seria impossível evitar. Como é cediço, há meios para se conferir maior segurança ao transporte e, consequentemente, minimizar os riscos do evento e, caso se concretize, seus efeitos".
No mesmo sentido é a decisão proferida pelo Carf no Acórdão Carf nº 9303-007.712 [7] que, por maioria de votos, também conclui pela manutenção da responsabilidade da transportadora, ao fundamento de existir uma distinção entre caso fortuito interno e externo. No mesmo diapasão: Acórdãos Carf nº 9303-008.382 [8] e nº 9303-006.478 [9].
Tais decisões, todavia, não são uma invenção do Carf, mas, sim, uma repetição de um antigo — e já superado — julgado do STJ (REsp nº 1.172.027/RJ) que, também fazendo uma distinção entre caso fortuito interno e externo, assim decidiu por maioria de votos:
"Tributário – imposto de importação – ação anulatória de auto de infração – roubo de mercadoria durante transporte terrestre – caso fortuito interno – responsabilidade do transportador.
1. O roubo de veículo e de carga sujeita a imposto de importação ocorrido no transporte de mercadoria já desembaraçada não elide a responsabilidade de transportadora pelo pagamento do valor apurado em auto de infração, nos termos dos arts. 136 do CTN, 32 e 60 do Decreto-lei 37/66.
2. Recurso especial não provido" (REsp 1172027/RJ, relatora ministra Eliana Calmin, 2ª Turma, julgado em 26/8/2010, DJe 30/09/2010).
Acontece que esse entendimento já foi superado pelo próprio STJ, que, em casos mais recentes, passou a tratar o roubo como situação subsumível ao conceito de caso fortuito para afastar a incidência de tributos, mais particularmente para afastar a incidência de II. Nesse sentido [10]:
"Tributário. Impostos de importação. Transporte de carga. Roubo. Força maior. Situação previsível, porém inevitável. Ausência de comprovação do descuido por parte do transportador. Causa de exclusão da responsabilidade.
1. O roubo, na linha do que vem professando a jurisprudência desta Corte, é motivo de força maior a ensejar a exclusão da responsabilidade do transportador que não contribuiu para o evento danoso, cuja situação é também prevista pela legislação aduaneira.
2. Assim, a responsabilidade, mesmo que tributária, deve ser afastada no caso em que demonstrada a configuração da força maior dosada com a inexistência de ato culposo por parte do transportador ou seu preposto.
3. Embargos de divergência conhecidos e providos". (EREsp nº 1.172.027/RJ; relatora ministra Maria Thereza de Assis Moura; Corte Especial; j. em 18/12/2013.)
A sobredita decisão, inclusive, foi veiculada em sede de embargos de divergência, isto é, por meio da Corte Especial do STJ, o que o torna uma precedente vinculante [11], nos termos do artigo 927, inciso V, do CPC [12] [13].
Ao que parece, para os precedentes administrativos aqui analisados, divorciados da realidade fática e descolados da atual jurisprudência vinculante do STJ, situações como o roubo de cargas ou acidentes de trânsito a implicar a avaria da mercadoria transportada, não se enquadrariam no conceito de caso fortuito, o que nos remete então a seguinte indagação: quais seriam as hipóteses de caso fortuito aptas a afastar a responsabilidade da transportadora na situação aqui estudada? Se o entendimento do tribunal administrativo for levado ao extremo, só seriam excludentes de responsabilidade situações teratológicas, como o extravio da carga em razão da sua abdução por extraterrestres ou, quem sabe, na hipótese das mercadorias transportadas serem avariadas em razão de um maremoto nas estradas de Minas Gerais.
O mais chocante nesse debate, a suscitar uma pretensa diferença entre caso fortuito interno e externo, são afirmações retóricas depreendidas dessas decisões no sentido de que o roubo de carga no país é uma situação corriqueira e, portanto, "previsível", o que imputaria ao transportador o ônus, inclusive econômico, de impedir essa ocorrência. Diriam: "Transportador de bem não trafega na rodovia 'X', tão mal frequentada! Se andou lá, é porque queria ser assaltado!"… Tal discurso lamentavelmente se assemelha àquele, também abjeto, que quer imputar à vítima de um estupro a responsabilidade pelo crime por ela sofrido, em razão das vestimentas que trajava ou do horário e local em que se encontrava. É a cultura da "culpa da vítima", transplantada para a seara fiscal!
Voltando-se ao caso aqui analisado, afirmações de que o roubo de carga no país é algo previsível é um atestado, oficial, de que falhamos enquanto Estado, pois, em razão da incompetência estatal em oferecer segurança pública, a vítima de um crime é duplamente penalizada, já que responde pelos inúmeros prejuízos desse crime e, também, pelas exigências tributárias.
Espera-se, em algum momento, que o Direito realizado no Carf nessa temática tenha uma maior sensibilidade com a realidade, de modo que as decisões aqui referidas encontrem abrigo apenas nas páginas de obras literárias.
[1] " Artigo 315 – O regime especial de trânsito aduaneiro é o que permite o transporte de mercadoria, sob controle aduaneiro, de um ponto a outro do território aduaneiro, com suspensão do pagamento de tributos".
[2] "Artigo 136 – Salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato".
[3] "Artigo 32 – É responsável pelo imposto:
I – o transportador, quando transportar mercadoria procedente do exterior ou sob controle aduaneiro, inclusive em percurso interno;
(…)".
[4] "Artigo 60 – Considerar-se-á, para efeitos fiscais:
I – dano ou avaria – qualquer prejuízo que sofrer a mercadoria ou seu envoltório;
(…)".
[5] "Artigo 664 – A responsabilidade a que se refere o artigo 660 pode ser excluída nas hipóteses de caso fortuito ou força maior".
[6] Conselheiro Relator João Paulo Mendes Neto.
[7] Conselheiro Relator Jorge Olmiro Lock Freire, assim ementado:
"TRÂNSITO ADUANEIRO. ROUBO DE CARGA.
O roubo da carga transportada corresponde à hipótese que a doutrina convencionou denominar caso fortuito interno, que poderia ser previsto, e cujos efeitos poderiam ser evitados. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial do Contribuinte negado".
[8] Conselheira Relatora Tatiana Midori Migiyama (vencida), Conselheiro Redator designado Jorge Olmiro Lock Freire.
[9] Conselheiro Relator Andrada Marcio Canuto Natal.
[10] Ainda no mesmo teor: REsp nº 1.660.163/SP.
[11] Convém ressaltar que o artigo 62, §§ 1º e 2º do RICarf, estabelece um rol mais restrito do que aquele do artigo 927 do CPC, i.e., de precedentes judiciais que vinculam os julgadores do Carf. Entendemos, todavia, que tal restrição regimental é flagrantemente ilegal, na medida em que esvazia de conteúdo o disposto no artigo 15 do Estatuto Processual Civil. Tal previsão regimental também é inconstitucional, na medida em que ofende o disposto no artigo 22, I da CF (Compete privativamente à União legislar sobre: I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho).
[12] "Artigo 927 – Os juízes e os tribunais observarão:
(…).
V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
(…)".
[13] Na mesma linha do referido precedente, convém destacar o voto vencido da conselheira Thais de Laurentiis, veiculado no Acórdão Carf nº 3402-006.220.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!