Opinião

Os limites materiais da ação cautelar fiscal

Autores

6 de julho de 2021, 18h09

O artigo 75 do Código Civil de 1916 prescrevia que "a todo direito corresponde uma ação, que o assegura", o que implica dizer que todo direito subjetivo frustrado encontraria a possibilidade de proteção e satisfação por meio de uma demanda judicial. Por outra perspectiva teórica, uma vez descumprido o consequente normativo de uma norma individual e concreta, o sujeito ativo de referida relação jurídica passa a ter legitimidade e interesse jurídico no ajuizamento da correspondente ação judicial para a satisfação de seu crédito (em confronto com a obrigação devida pelo sujeito passivo). Assim, o descumprimento do consequente de uma norma individual e concreta (direito material) revela-se como o antecedente da norma jurídica processual (direito de ação).

Contudo, é necessário reconhecer que em diversas hipóteses, para um determinado direito subjetivo, há mais de uma correspondente ação judicial que o proteja, tal como se comprova com a análise das ações judiciais asseguradas ao Fisco para a satisfação do crédito tributário. Em resumo, uma vez constituído o crédito tributário e encerrada eventual discussão administrativa, bem como superada qualquer tentativa de cobrança amigável, o Fisco (sujeito ativo) tem a prerrogativa de inscrever o crédito em dívida ativa e, então, adotar as medidas mais efetivas de cobrança do crédito tributário.

Entre as medidas mais efetivas, aqui entendidas como medidas com ao menos um certo poder de coação, tem-se o protesto da dívida ativa, o ajuizamento da execução fiscal e o ajuizamento da ação cautelar fiscal, cujos requisitos e limites são objeto do presente artigo, notadamente em relação à desconstituição de atos jurídicos de alienação de bens e direitos praticados pelo devedor contribuinte (sujeito passivo).

Pois bem, ao se analisar as disposições da Lei nº 8.397/92, resta evidente que esta foi desenhada para a proteção do direito do crédito da Fazenda Nacional em relação a atos de dilapidação do patrimônio ou que acarretem a probabilidade de não cumprimento (satisfação) da obrigação tributária, tal como previsto no artigo 2º da referida lei.

É interessante notar que a medida cautelar fiscal foi desenhada, principalmente, tendo em vista a contemporaneidade entre os atos de cobrança do crédito tributário e a adoção de medidas ou comportamento do contribuinte-devedor que levam a não satisfação do crédito tributário. Nesse sentido, o artigo 1º da Lei nº 8.397/92 estabelece que o "procedimento cautelar fiscal poderá ser instaurado após a constituição do crédito, inclusive no curso da execução judicial da dívida ativa".

É bem verdade que nas hipóteses dos incisos V, alínea "b" (transferência do patrimônio após a notificação para recolhimento do crédito fiscal) [1], e VII do artigo 2º (alienação de bens ou direitos sem a devida comunicação a Fazenda Pública quando exigido por lei), o ajuizamento da medida cautelar independe da prévia constituição do crédito tributário, o que, todavia, não infirma a conclusão do requisito de contemporaneidade entre os atos de redução da capacidade de satisfação do crédito e do ajuizamento da medida cautelar.

Assim, se deve haver a contemporaneidade entre os atos ou medidas adotadas pelo contribuinte-devedor que coloquem em risco a satisfação do crédito tributário (pagamento) e o ajuizamento da medida cautelar, é que também deve ser interpretada a possibilidade normativa (decisão judicial) de se obter a indisponibilidade de bens de terceiros que sejam oriundos de atos jurídicos de alienação pelo devedor-contribuinte.

Tem-se, portanto, que além das condições gerais de ação e dos requisitos previstos nos artigos 2º, 5º e 6º da Lei nº 8.397/92, a Fazenda Pública, ao propor referida ação deve-se preocupar com os prazos prescricional e decadencial para o desfazimento (anulação) do negócio jurídico realizado pelo contribuinte-devedor cujos efeitos se pretende ver afastado com a procedência da medida cautelar, ao menos no que se refere aos incisos III, V, "b", e VII do artigo 2º acima comentado.

Aqui não se destaca o prazo prescricional para o ajuizamento da ação cautelar fiscal na medida em que: 1) não há um prazo específico previsto em lei (assumindo uma feição semelhante ao mandado de segurança preventivo); 2) é contemporânea aos atos de cobrança do crédito tributário de sorte que uma vez prescrito o crédito tributário, prescrita estaria a medida cautelar fiscal (ou, no mínimo, haveria completa falta de interesse de agir); ou 3) é ajuizada no transcorrer da execução fiscal quando verificada a implementação de uma das condições previstas no artigo 2º da Lei nº 8.397/92.  

Por outro lado, ao se tratar do ajuizamento da ação cautelar fiscal para a indisponibilidade de bens alienados pelo contribuinte-devedor, tal como previstos nas hipóteses dos incisos III, V, "b", e VII do artigo 2º acima citado, é de se reconhecer que a indisponibilidade dos bens pressupõe o reconhecimento judicial (decisão fundamentada em sentença) da nulidade (não validade) dos atos de alienação (transferência da propriedade a qualquer título), o que, portanto, deve atrair as regras de prescrição ou decadência para se obter a anulação do ato jurídico (de direito civil) que sustentou a transferência dos bens da titularidade do contribuinte-devedor para outrem [2].

Exemplificando o quanto sustentado, imagine-se que determinado contribuinte, pessoa física, seja autuado pelo Fisco federal em relação à falta de declaração e recolhimento do imposto de renda. Após a primeira cobrança "amigável" antes da inscrição em dívida ativa ou quando da inscrição em dívida ativa (suponhamos que em menos de 30 dias após o término da discussão administrativa), o contribuinte-devedor doa parte de seu patrimônio. Respeitando-se o artigo 174 do Código Tributário Nacional (CTN), é ajuizada a execução fiscal no quinto ano após a constituição definitiva do crédito tributário (após o término da esfera administrativa). Verificado pela Fazenda Nacional que houve a doação e que o crédito tributário inscrito em dívida ativa ultrapassa 30% do valor do patrimônio remanescente do contribuinte-devedor, é proposta a ação cautelar fiscal para ver a indisponibilidade dos bens doados.

A princípio, a medida cautelar preencheu todos os requisitos necessários previstos na Lei nº 8.397/92, sendo, inclusive contemporânea à cobrança do crédito tributário. No entanto, é de se perguntar se a Fazenda Nacional poderá questionar a validade do ato de doação e, por meio da referida ação judicial invalidar os efeitos do negócio jurídico aqui exemplificado.

Como visto acima, parece-nos que não, pois, a indisponibilidade dos bens doados anulação dos efeitos do ato jurídico de doação (transferência da propriedade) pressupõe ação específica para tal, a qual, mesmo que suplementada pela ação cautelar fiscal, não poderá afastar o prazo decadencial de quatro anos previsto no artigo 178, II, do Código Civil para a anulação de negócio jurídico praticado com fraude contra credores [3].

Em nossa perspectiva, pois, ainda que exista o direito de ação à propositura da medida cautelar, essa não terá eficácia para a indisponibilização dos bens do contribuinte-devedor em favor da Fazenda Pública quando esta não mais possuir prazo decadencial ou prescricional para desconstituir o negócio jurídico (doação e alienações em geral) praticado pelo contribuinte-devedor.

Dessa forma, ainda que se confira um papel à medida cautelar maior do que de instrumento processual acautelatório e acessório de proteção do direito material, tratando-se, pois de medida processual que interfere diretamente nas relações jurídicas materiais, não há como se escapar da peremptoriedade dos prazos prescricionais e decadenciais para a desconstituição de negócios jurídicos, o que demonstra que a ação cautelar fiscal não é regida tão somente pela Lei nº 8.397/92, o que determina a submissão às disposições do Código de Processo Civil e do Código Tributário Nacional.

A perspectiva aqui defendida tem maior impacto, inclusive, quando no curso da cobrança do crédito tributário há suspensão da exigibilidade do crédito tributário com ou sem inscrição em dívida ativa, postergando eventual ajuizamento da execução fiscal, o que pode incorrer em grande transcurso de prazo entre o negócio jurídico de alienação de bens do contribuinte-devedor e o ajuizamento da ação cautelar fiscal para indisponibilidade dos bens em propriedade de terceiro e consequente desfazimento (anulação) do negócio jurídico.


[1] Vale a advertência de que não visualizamos situação possível de notificação para pagamento de crédito tributário sem que este esteja devidamente constituído, o que demonstra uma impropriedade da legislação.

[2] Diante do requisito da contemporaneidade, é possível assumir que, geralmente, a ação cautelar é ajuizada dentro do prazo decadencial ou prescricional para a anulação dos atos jurídicos realizados pelo devedor-contribuinte de transferência-alienação do patrimônio deste.

[3] "Artigo 178 –  É de quatro anos o prazo de decadência para pleitear-se a anulação do negócio jurídico, contado:

II – no de erro, dolo, fraude contra credores, estado de perigo ou lesão, do dia em que se realizou o negócio jurídico".

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!