Opinião

Votos vencidos e votos vencedores

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5 de julho de 2021, 16h03

Marco Aurélio Mendes de Mello, ou simplesmente ministro Marco Aurélio, despede-se do Supremo Tribunal Federal. Insigne juiz, tendo sido também promotor, passou pela Justiça do Trabalho até sentar praça em elevado cargo, no Pretório Excelso, assumindo em 13/6/1990. Lá se vão mais de 30 anos e é chegada a aposentadoria de mais um decano.

Ostenta ele o nome de um dos chamados bons imperadores de Roma. Marco Aurélio, enquanto ministro do STF, tem um currículo permeado de glórias. Vindo da Faculdade Nacional de Direito, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sempre guardou e declarou lembranças do Palácio do Conde dos Arcos. Lá, inclusive, também concluiu os créditos de mestrado em Direito Privado, em 1982. Em termos profissionais, por primeiro, ingressou, mediante concurso público, no Ministério Público do Trabalho. Pelo quinto constitucional, tornou-se juiz do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região. Em 1981, foi nomeado ao Superior Tribunal do Trabalho. Finalmente, em 1990, ascendeu ao STF.

Destemido, como um julgador deve ser, teve posições marcantes em tantos casos. Em algum momento, já foi conhecido como "senhor voto vencido", uma vez que, como já apontava o reconhecido "Anuário da Justiça", em 2006, não raro, em uma de cada três decisões o ministro acabava nessa posição. Nesse mesmo ano, publicou o livro "Vencedor e vencido". Nele, enfeixou  diversos  votos  em  casos  emblemáticos, exemplificando como seu ideal pelo justo sempre se sobrepôs a quaisquer ponderações. Pela defesa de uma boa ideia  ou da Justiça  tudo valeria. E, nesse aspecto, mesmo quando vencidos seus votos, foi o ministro um vencedor enquanto homem e magistrado.

Sérgio Bermudes, em prefácio da publicada seleção de julgados e pronunciamentos do ministro, já anotava a sua figura singularíssima na corte, desde seu ingresso. Mas também alertava: "Não se suponha, entretanto, que Marco Aurélio só experimente a situação de vencido. Na maioria de seus votos, como relator, a Corte o acompanha porque  concorda com ele e aceita sua opinião substanciosa, fruto da correta identificação da lei e dos princípios incidentes e da sua adequada aplicação, como ainda da compreensão da fenomenologia jurídica, e da função do mais alto Tribunal da República, tornado o principal guarda da Constituição, pela expressa vontade dela mesma".

Nesse sentido, é de se lembrar que, ao longo da história, muitos vencidos sagraram-se, ao final, vencedores. Assim o foi com Fidípides, ou, ainda, Rodrigo Díaz de Vivar, que, segundo a tradição hispânica lendária, mesmo vitimado em batalha, cavalgou já morto para a vitória sobre seus inimigos. Talvez outra aproximação adequada fosse com Teseu, que, mesmo momentaneamente perdido em labirinto, usou da inteligência para sobrepujar as dificuldades do momento. Fábulas variam, enfim, sobre a glória do vencedor que parecia vencido, sendo certo, no entanto, que o obstáculo há de ser superado e a justiça, alcançada. Eis uma lição a ser apreendida em relação à vitória fugaz e à importância eventual daquele que se vê vencido. Polêmico, o ministro jamais temeu qualquer repercussão de suas decisões, e isso é algo a ser visto, compreendido e enaltecido, mesmo pelos que dele discordam. E assim o foi até seus dias finais na Corte Suprema.

Em particular junto ao Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), sempre foi, o ministro Marco Aurélio, reconhecido como figura ímpar e de respeito merecido. Do Iasp recebeu a maior de suas honrarias, o prêmio Barão de Ramalho, em 2008. Mas não só. Em 2018, foi-lhe outorgada outra comenda, esta, em favor de tantas posições suas relativas aos direitos humanos. Naquele momento, o favor conferido a mim pelo instituto foi tremendo, pois era de se exprimir o respeito de um penalista, posto como orador, a alguém que tanto representa aos direitos individuais. E assim o foi.

Se houvesse, enfim, um Almanaque de Gotha a avaliar a nobiliarquia, a importância e relevo de cada qual na Justiça  e em prol da Justiça —, ocuparia, o ministro Marco Aurélio, seus postos mais elevados. A importância de suas decisões marcou fundo uma época, e ainda perdurarão anos a fio. A certeza e a importância de seus posicionamentos, e a lição de vida que acompanhou, durante décadas, sua passagem pelo Pretório Excelso, no entanto, farão falta nos dias vindouros.

O ministro, que foi, também, e por vezes seguidas, presidente da República interino, há de fazer falta. Como se disse, críticas podem ser feitas às suas posições, feitos ou entendimentos, mas deve-se sempre reconhecer a coerência de suas posições. E aqui novamente fala o penalista: inegável coerência lógica de alguém que sempre externalizou a preocupação com a chaga do sistema criminal. Mesmo contrariando a muitos, a defesa pela liberdade sempre o acompanhou, mesmo quando os ventos caminharam em sentido oposto. É chegada, no entanto, mais uma hora de despedidas de ministros de tanto peso que deixam a corte. Que o ministro Marco Aurélio, agora, se encontre com o jovem advogado dos anos 1970 e traga à classe dos advogados a honra e a glória que foram emprestadas à magistratura por tantos anos. E que o destino reserve graças ao seu sucessor, que terá a difícil missão de ocupar tão nobre espaço.

Como disse o sempre ministro Celso de Mello (este também enaltecido com o mesmo Prêmio Barão de Ramalho), quando da investidura da presidência do STF do ministro Marco Aurélio, mais uma vez "hoje é dia de renovação. E é, também, dia de confirmação de nossa fé em valores que jamais poderão ser desrespeitados ou esquecidos". E mais, que incumbe ao Judiciário "o desempenho incondicional de um dever que lhe é inerente: o de velar pela integridade dos direitos fundamentais de todas as pessoas, o de repelir condutas governamentais abusivas, o de conferir prevalência à essencial dignidade da pessoa humana, o de fazer cumprir os pactos internacionais que protegem os grupos vulneráveis expostos a práticas discriminatórias e o de neutralizar  qualquer ensaio de opressão estatal". Tais palavras ainda ecoam forte naqueles que tem, no Judiciário, o porto seguro ideal. Nesse sentido, um grande viva a tantos dias de judicatura do ministro Marco Aurélio, que, por anos, saudou, com glórias, a noção do justo. E que venham os próximos, uma vez mais, junto à advocacia, agora, como antes, seu valoroso integrante.

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