Opinião

Notas sobre a aplicação do tratado de dupla tributação Brasil-Emirados (Parte 1)

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4 de julho de 2021, 9h12

Promulgado oficialmente no final de maio de 2021, o Tratado de Dupla Tributação do Brasil com os Emirados Árabes Unidos (EAU) deverá entrar em vigor em 2022. Esse tratado representa o início de uma nova fase na política tributária internacional brasileira, em vistas de grandes inovações em comparação com a rede de tratados brasileira.

Chama atenção que esse é o primeiro tratado firmado pelo Brasil com um paraíso fiscal. Esse aspecto, porém, não deverá impactar a utilização genuína do tratado de dupla tributação (TDT) por empresas estabelecidas nos EAU e tampouco deverá propiciar facilmente oportunidades de escolha dirigida de tratados (o chamado treaty shopping). Isso porque tal tratado também inova na prática brasileira por introduzir regras específicas e critérios rígidos para o aproveitamento de benefícios previstos no tratado.

Enfocam-se neste artigo alguns temas centrais, escolhidos por sua importância para uma primeira abordagem deste TDT.

Tratado com um paraíso fiscal?
O TDT Brasil-EAU é o primeiro tratado brasileiro firmado com um paraíso fiscal ou, mais propriamente, um país de "tributação favorecida". Nas circunstâncias atuais, é pouco provável que os EAU sejam totalmente excluídos da lista brasileira de paraísos fiscais simplesmente pelo fato de terem concluído um tratado de dupla tributação com o Brasil.

É verdade que há uma certa antinomia entre a classificação dos EAU enquanto paraíso fiscal e, ao mesmo tempo, um país parceiro nos negócios com o qual temos um TDT. A própria definição da alíquota de IRFonte retrata essa antinomia, dado que conflitam a regra que manda tributar remessas para paraísos fiscais com alíquota de 25% [1] e as disposições do TDT, que reduzem essa tributação para 15% ou menos.

Uma passada de olhos pelas alíquotas de IRFonte que vigorarão a partir de 2022 em pagamentos para os EAU permite visualizar uma questão interessante do enquadramento dos EAU como paraíso fiscal:

1) Dividendos: isentos [2];

2) Juros: 15%, 10% ou isentos;

3) Royalties: 15%;

4) Serviços técnicos: 15%;

5) Ganhos de capital: 25%.

O caso dos ganhos de capital é bastante ilustrativo, porque o TDT Brasil-EAU não fixou um limite para a tributação na fonte e disso surgem duas possibilidades. A conclusão mais óbvia é que a tributação deveria ser de 25% porque os EAU teoricamente permanecem sendo um paraíso fiscal, no sentido de país de baixa tributação. Por outro lado, caberia questionar se os EAU continuam mesmo a merecer a rotulagem de paraíso fiscal, seja em função das leis locais de tributação da renda [3], seja porque tal país, ao firmar tratado com o Brasil, reduz ou elimina quaisquer problemas de transparência ou troca de informações. Em vista disso, faria então mais sentido conceder a tributação de 15% sobre os ganhos de capital.

Tal medida, todavia, depende de uma atualização da lista de paraísos fiscais para o devido enquadramento dos EAU. No mínimo, seria coerente com situações similares que a Receita Federal excluísse desse tratamento as empresas emiradenses que se sujeitam a tributação relevante pelo Imposto de Renda.

De todo modo, a existência de um tratado de dupla tributação normalmente se justifica por fomentar investimentos entre os países ao conferir segurança com relação à eliminação de dupla tributação. No caso do TDT Brasil-EAU, esse problema afeta apenas empresas de alguns setores e poderá atingir um universo maior no futuro. Isso porque nos EAU a cobrança generalizada de Imposto de Renda em níveis mais elevados é uma realidade que se vislumbra apenas para um futuro vindouro. Conforme mencionado, não há atualmente tributação generalizada da renda nos EAU, salvo pela incidência (em níveis normais e elevados) para alguns setores relevantes da economia.

No mais, é de se celebrar a existência de um TDT nas relações com os EAU, porque tal instrumento permite acesso dos contribuintes a importantes instrumentos de correção de eventuais distorções tributárias, como é o caso do princípio de não discriminação e do procedimento amigável [4]. O tratado também propicia maior aproximação entre as autoridades fiscais dos dois países por meio da implementação de tais procedimentos amigáveis e do intercâmbio de informações. De todo modo, algumas dessas interações já vinham ocorrendo em outros contextos, pois os EAU integram os principais acordos multilaterais da OCDE para troca de informações e implementação de medidas do projeto BEPS.

Como dito na introdução, ao firmar um tratado com um país reputado como um paraíso fiscal o Brasil não confere uma abertura para a utilização de estruturas de treaty shopping. Isso porque, diferentemente de outros tratados brasileiros, a utilização prática desse tratado com os EAU depende do atendimento a rígidos critérios de residência e de acesso aos benefícios do tratado, comentados adiante.

Definição de residentes/acesso a benefícios do tratado
A aplicação do TDT Brasil-EAU é mais restrita do que em outros tratados, porque no caso dos EAU somente poderão se beneficiar do tratado os indivíduos residentes nos EAU e as sociedades incorporadas nos EAU que sejam, ao mesmo tempo, administradas nos EAU e também controladas, direta ou indiretamente, por indivíduos residentes nos EAU ou por instituições governamentais dos EAU.

Esse tratado não facilita muito, portanto, o uso de expedientes de treaty shopping. O requisito de controle local é aspecto que se repete em três passagens distintas do TDT Brasil-EAU, enfatizando-se a necessidade de obtenção de um certificado de residência perante a autoridade fiscal emiradense que ateste essa condição [5].

O requisito se justifica também por uma questão prática relativa à instalação de negócios nos EAU. Geralmente a criação de uma subsidiária nos EAU requer o estabelecimento de relações com um residente local, seja mediante a admissão de um sócio oriundo de países da região do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), ou de um patrocinador com nacionalidade emiradense. Em ambos os casos, o residente local deverá ter participação mínima de 51% no capital social da subsidiária local.

Requisitos similares foram estabelecidos para a implantação de filiais, que também demandam a contratação de um patrocinador/agente doméstico para a obtenção de licença de operação comercial. A remuneração do patrocinador pode consistir de um percentual das receitas, dos lucros ou do valor do negócio, bem como um valor fixo.

Há iniciativas em andamento para remoção dessas restrições, de modo que o TDT Brasil-EAU merecerá atualizações no futuro para coerentemente abrandar os rígidos critérios para caracterização da residência. Com efeito, modificações recentes na legislação comercial dos EAU passaram a permitir a participação de capital estrangeiro em 100% como regra geral, exceto para atividades que tenham um impacto estratégico sobre a economia [6].

É importante comentar ainda que o tratado não esclarece se o controle por indivíduos residentes locais deve se refletir igualmente em direitos políticos e econômicos. Não é incomum que o controle societário seja discrepante em relação aos direitos econômicos. Pode-se inferir que o conceito de "beneficiário efetivo" traduziria o direito ao recebimento dos rendimentos, mas esse certamente não é um tema tranquilo. Fato é que a exigência de controle em termos de direitos econômicos poderia ter sido formulada de modo mais explícito. Se ambos os países, Brasil e EAU, claramente se inspiraram no modelo de TDT da Organização das Nações Unidas (ONU), elas poderiam ter inserido no artigo 29 o item 2(d)(i) do modelo, que faz referência a voto e valor.

E uma particularidade do TDT Brasil-EAU foi a inclusão do teste contra erosão de base, em seu artigo 29(3) [7]. Segundo esse requisito, a empresa emiradense não terá direito aos benefícios do tratado se ela servir para a canalização de pagamentos, isto é, se mais do que 50% de seus rendimentos brutos forem usados, direta ou indiretamente, para realizar pagamentos a empresas não qualificadas para os benefícios do TDT. Evita-se com isso o mero repasse de valores a empresas situadas, por exemplo, em terceiros países que não têm TDTs com o Brasil.

Entrada em vigor
Tendo sido assinado em 2018, o TDT Brasil-EAU já foi ratificado nos dois países, de modo que se espera que os demais trâmites diplomáticos exigidos para trocas de notificações sejam completados ao longo de 2021, assegurando sua entrada em vigor neste ano.

Ainda que este tratado entre em vigor ao longo de 2021, suas disposições somente terão aplicação a partir de 1º/1/2022. Todavia, a linguagem empregada pelo tratado a este respeito merece análise mais detida, pois há situações de retroatividade imprópria que podem gerar oportunidades para aplicação do tratado a situações em andamento.

Com relação a tributos retidos na fonte, o TDT Brasil-EAU se aplicará em relação "às rendas pagas, remetidas ou creditadas no ou após o primeiro dia de janeiro" de 2022 [8]. Embora esse dispositivo empregue as expressões "pagas", "remetidas" ou "creditadas", é importante observar que em alguns casos previstos expressamente no tratado o Imposto de Renda na fonte somente pode ser cobrado no evento de "pagamento", ainda que o crédito contábil ocorra em momento anterior [9]. Dessa forma, é possível admitir um efeito retroativo, por exemplo, para juros vencidos e creditados contabilmente ao longo de 2020 (ou em anos anteriores) e que venham a ser pagos em 2022, quando o tratado já estiver em vigor.

Para a tributação pelos demais tributos previstos no tratado, o tratado deverá ser aplicado em relação à renda auferida nos anos fiscais que comecem no ou após o primeiro dia de janeiro de 2022 [10].

Continua na Parte 2

 


[1] Vide artigos 744, §1º, 745, §4º e 748 do RIR/18.

[2] A demonstração de dividendos como isentos nesta tabela pressupõe o cenário atual. Caso seja instituída tributação na fonte de 20% sobre os dividendos, as alíquotas que se aplicarão em pagamentos aos EAU serão de 15% (regra geral) ou 5% (pagamentos a Governo ou entidades governamentais).

[3] A legislação atual dos EAU não permite seu enquadramento como paraíso fiscal no sentido de "país que não tribute a renda ou que a tribute a alíquota máxima inferior a vinte por cento". Há sim tributação da renda nos EAU e com alíquotas igual ou superior a 20%. Há apenas um problema de abrangência, porque esta tributação se restringe aos setores de petróleo e de serviços bancários. Pode-se imaginar que a arrecadação nesses setores já é suficiente e permite que se isente todos os demais setores e pessoas. De todo modo, reconhece-se ser controversa a definição de paraíso fiscal, pois esta nunca foi muito bem explicada e tampouco pareceu se preocupar com a aplicação uniforme da alíquota de IR dos países.

[4] Vide artigos 26 e 27 do TDT Brasil-EAU.

[5] Vide artigos 4(1)(b), 29(3) e Protocolo, item 1(a) do TDT Brasil-EAU.

[6] Cada emirado tem passado a listar quais atividades são impactantes e quais não são. As listas de Abu Dhabi e Dubai já foram disponibilizadas recentemente. Vide, com relação a Abu Dhabi, o item "Foreign Ownership Activities" em https://www.adbc.gov.ae/CitizenAccess/Welcome.aspx; vide também, com relação a Dubai, a correspondente lista em https://ded.ae/DED_Files/ded_other/Full_Foreign_Ownership_Activities.pdf

[7] Vide a parte final do artigo 29 (3) do TDT Brasil-EAU. Este é o único tratado brasileiro que adota este teste.

[8] Vide artigo 31(2)(a) do TDT Brasil-EAU.

[9] São exemplos de situações em que o próprio tratado incorpora esta limitação os pagamentos de juros (artigo 11) e royalties (artigo 12), cuja tributação na fonte deve se limitar a tributar os juros e royalties "pagos".

[10] Vide artigo 31(2)(b) do TDT Brasil-EAU.

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