Opinião

Um decano que soube divergir

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  • Gilda Figueiredo Ferraz de Andrade

    é advogada graduada pela Universidade de São Paulo (USP) especialista em Direito Empresarial pela USP ex-conselheira da OAB-SP durante 12 anos membro do Instituto dos Advogados de SP da Academia Paulista de Letras Jurídicas e da Academia Paulista Direito do Trabalho ex-vice presidente Aliança Francesa de SP conselheira da AATSP palestrante e debatedora sobre temas jurídicos.

5 de julho de 2021, 19h18

O primeiro ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST) a ser indicado a uma vaga no Supremo Tribunal Federal, o ministro decano Marco Aurélio Mendes de Farias Mello, despede-se da toga depois de 31 anos de serviços prestados à mais alta corte do país. Ele ingressou na magistratura em 1978, quando era desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, via quinto constitucional destinado ao Ministério Público. O ministro Marco Aurélio reconhece que o aprendizado na Justiça do Trabalho o preparou para os desafios no STF. E, embora fosse primo do então presidente da República, Fernando Collor, contava com o apoio unânime dos demais ministros trabalhistas, enquanto no Superior Tribunal de Justiça vários ministros eram igualmente candidatos: essa disputa coletiva abriu a indicação para o jovem ministro Marco Aurélio na alta corte.

Interessante, senão oportuno, também trazer a registro a lembrança de um julgado de sua relatoria, ainda como ministro do Tribunal Superior do Trabalho, quando de forma técnica, criativa e não menos brilhante apreciou a matéria fática de determinado processo , denominando-a, em síntese, um "delírio de prova", inovando e, ainda assim, garantindo a aplicação da lei.

Poucos foram os ministros que passaram pelo Supremo Tribunal Federal a deixar uma marca tão indelével quanto o decano Marco Aurélio Mello, conhecido por suas decisões humanistas, "garantistas" e, por que não dizer?, por vezes polêmicas. Sempre optou pela decisão mais equânime, sempre professou teses pioneiras e sempre fugiu da unanimidade para remar contra a corrente dos demais pares do STF do Brasil.

A originalidade de seus votos e a constante discordância lhe valeram a alcunha de "senhor voto vencido", mas muitos desses votos se tornaram práticas jurisprudenciais no Supremo, porque apontaram e vão apontar para avanços.

Uma de suas decisões mais polêmicas foi a de suspender a possibilidade de prisão após condenação em segunda instância. Era a primeira vez, em 2019, que a corte deliberara sobre a matéria, tendo restado decidido pelo então Plenário que o artigo 284 do Código de Processo Penal (CPP) era constitucional: "Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. A questão causa até hoje controvérsia acalorada e discussões sobre sua constitucionalidade", afirma.

Ao longo de sua trajetória no Supremo, sempre proferiu votos emblemáticos, a demonstrar seus conhecimentos jurídicos e seu olhar arguto e sensível, forjado no exercício da advocacia, quando chefiou o Departamento de Assistência Jurídica e Judiciária do Conselho Federal dos Representantes Comerciais e o Departamento de Assistência Jurídica e Judiciária do Conselho Regional dos Representantes Comerciais no Estado do Rio de Janeiro, sendo também advogado da Federação dos Agentes Autônomos do Comércio do antigo estado da Guanabara.

Extremamente atento, nunca deixou passar um detalhe importante nos julgamentos desde sua condução ao Supremo Tribunal Federal, em 1990, e sempre enfrentou com galhardia e elegância as constantes divergências de seu voto. Para o ministro Marco Aurélio, o fato de os ministros atuarem em um colegiado não significa dizer que devam caminhar todos sempre juntos, no mesmo sentido, mas antes, devem, sim, buscar um novo ângulo na decisão, não sem a elegância e o equilíbrio de quem com valentia invulgar acatou e respeitou a decisão da maioria.

Marco Aurélio esteve à frente da 1° Turma do Supremo, com uma invejável produtividade, com mais de cem mil acórdãos enquanto foi integrante desse colegiado, tendo sido relator de 173 acórdãos. Uma de suas características é não passar seus votos aos colegas pelo fato de votar de improviso, embora seja uma peculiaridade do ministro falar em ritmo como se estivesse lendo, com seu invulgar estilo e observância ao vernáculo.

Pouca gente sabe, mas o projeto da TV Justiça, criado em 2002, foi obra sua quando presidia a Egrégia Corte. Por muitos considerado um projeto ousado, porquanto traz total transparência aos julgamentos do STF, sofreu resistência dentro do próprio Poder Judiciário, que não queria uma espécie de controle externo popular, por soi-disant, expor os ministros. O então decano na época, o respeitadíssimo ministro Moreira Alves, foi um dos que resistiram ao projeto.

Marco Aurélio participou de decisões importantes do STF, como da APDF 54, que trata do aborto para gravidez no caso de feto anencéfalo, e da ADC 19 e da ADI 4.424, acerca da constitucionalidade da Lei Maria da Penha, instrumento fundamental de combate à violência contra a mulher. Um de seus últimos votos diz respeito ao fato de o chefe do Poder Executivo poder ou não bloquear perfis em redes sociais. No seu entendimento, a liberdade de expressão deve ser protegida e "não cabe, ao presidente da República, avocar o papel de censor de declarações em mídia social, bloqueando o perfil do impetrante, no que revela precedente perigoso".

O caso concreto era de um usuário que foi impedido de visualizar publicações do presidente depois de tecer críticas ao chefe do Executivo federal.

Paralelamente ao trabalho de magistrado, Marco Aurélio exerceu de forma contínua a cátedra de professor universitário desde 1982, na Universidade de Brasília e no Centro Universitário de Brasília, além de ter ministrado incontáveis aulas magnas, palestras e cursos em universidade de todo o país, sempre pregando que o Direito é uma ciência, na qual o ordenamento posto deve e precisa ser respeitado.

Outro voto importante de Marco Aurélio como relator nesse período de adeus ao Supremo concerne à possibilidade de revisão dos benefícios de aposentados e pensionistas do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) no julgamento chamado "revisão da vida toda", na qual o ministro defendeu regra que mais beneficia o trabalhador, qual seja, que possam eles considerar a média de todos os salários de contribuições durante suas vidas produtivas e não aplicar a regra de transição, criada pela Lei da reforma da Previdência (Lei 9.876/99).

Para a opinião pública, o ministro tomou duas decisões equivocadas. Em 2000, quando determinou a soltura do banqueiro Salvatore Caciciola, acusado de fraude contra o sistema financeiro, que aproveitou o Habeas Corpus para fugir do país. Sobraram críticas, mas Marco Aurélio quedou-se impassível, amparado pela sua consciência, pela letra fria da lei e dos direitos fundamentais. E, recentemente, também ao ordenar a soltura da cadeia de segurança máxima do traficante André do Rap, que posteriormente desapareceu.

Na verdade, tal fuga não rechaça seu direito à liberdade, porque não se havia concluído a revisão da prisão preventiva, ignorando o clamor social.

Dedicado à causa pública, tornou-se um crítico da chamada modulação, por entender que se acabaria fomentando a edição de leis inconstitucionais.

Marco Aurélio Mendes de Farias Mello é vocacionado, independente e sempre respeitou a separação dos poderes. Igualmente lutou pelos direitos fundamentais do cidadão e honrou a toga que envergou por mais de um quarto de século no Supremo Tribunal Federal.

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    é advogada militante, especialista em Direito Empresarial pela USP, membro do IASP, Academia Paulista de Letras Jurídicas, Academia Paulista de Direito do Trabalho e conselheira da AAT-SP, integra o Conjur (Conselho Superior de Altos Estudos Jurídicos) e o Cort (Conselho de Relações do Trabalho) da Fiesp e foi conselheira OAB-SP.

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