Defesa da concorrência

Cloroquina concorrencial nas decisões do Cade

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5 de julho de 2021, 8h01

Em outubro de 2014, já sob a vigência da Lei 12.529, que estabeleceu o regime de análise prévia de atos de concentração, o Cade aprovou a compra da Innova, uma planta de poliestireno (e outros produtos) da Petrobras, pela Videolar, empresa do grupo de Lírio Parisoto no mesmo mercado. A operação criava um duopólio do produto no Brasil, e a aprovação foi condicionada a remédios comportamentais, nome que a comunidade antitruste dá a uma obrigação de fazer ou deixar de fazer, em contraste a obrigações de alienação de ativos (remédios estruturais).

ConJur
Em síntese, as principais obrigações comportamentais assumidas pela Videolar foram: (i) manter patamar mínimo de produção do poliestireno, (ii) conceder licença gratuita de suas patentes, (iii) não se aproveitar de benefícios tributários adicionais concentrando a produção na sua planta da ZFM, (iv) investir percentual do faturamento no desenvolvimento de produtos de maior qualidade, (v) repassar eficiências para os compradores.

Em junho de 2019, cinco anos após a aprovação do duopólio, a Superintendência Geral do Cade concluiu que o item (i) acima foi descumprido reiteradamente, e que ainda não tinha elementos para avaliar se os demais condicionantes haviam sido cumpridos, concluindo que "verifica-se a preocupante situação em que a maioria dos compromissos não são passíveis de ateste de cumprimento sem instrução específica". Em abril passado, o Tribunal do Cade decidiu, em rara unanimidade, voltar atrás e forçar a reversão da operação, sete anos após sua aprovação original.

Remédios comportamentais envolvem ou alguma obrigação de não fazer, que normalmente já é vedada pela legislação, agregando muito pouco efeito à decisão, ou alguma obrigação de fazer, cujos detalhes operacionais a autoridade desconhece, e onde reside a brecha para que empesas contornem o compromisso assumido. Ainda que esse tipo de compromisso seja normalmente monitorado por empresas terceiras (trustes), essas sofrem de conflito de interesse por serem contratadas pelas interessadas (ainda que aprovadas pela PFE-Cade) e sofrem, também, de assimetria de informação semelhante à da autoridade. Por fim, remédios comportamentais têm prazo de validade. Por não ser um regulador setorial, a autoridade da concorrência não é capaz de ficar ad eternum controlando o comportamento de firmas e, geralmente, opta por imposições com duração entre cinco e dez anos. Assim, mesmo na hipótese de o remédio comportamental funcionar, tem prazo de validade.

Nas melhores práticas internacionais, refletidas em guias de organismos como OCDE e ICN, ou na maioria das jurisdições mundiais, inclusive no Brasil, remédios comportamentais são vistos como uma solução de duvidosa eficácia. Nas diretrizes gerais do Guia de Remédios do Cade, a primeira orientação apontada é a preferência por remédios estruturais, porque, na aplicação de remédios comportamentais "podem surgir problemas de risco moral, que podem comprometer a efetividade desse tipo de remédio". Dentre os quatro princípios de aplicação de remédios antitruste listados na Seção 2.1, um é a verificabilidade, ou seja, a capacidade de monitorar seu cumprimento, algo bem mais difícil de ser feito em remédios comportamentais. Por fim, também nas diretrizes gerais (Remédios que Requerem Cautela), o Guia alerta para o risco de remédios que exigem ou impedem investimentos: "Um exemplo seria a imposição de investimentos em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) com intuito de suprir deficiências do país em inovação tecnológica, o que transcende os objetivos precípuos da atuação de uma autoridade antitruste". Tudo bastante aplicável ao caso em tela.

Em teoria, não há especialista, inclusive no Cade, que discorde dessas afirmações. E quando é possível aplicar um remédio estrutural em um ato de concentração com risco concorrencial decorrente de sobreposição horizontal, assim o faz a autoridade brasileira. Quando, no entanto, remédios estruturais não são possíveis (como no caso em análise, pois havia apenas duas plantas, uma de cada empresa, e mandar vender uma significaria reprovar a operação), ou quando a concentração gera sobreposição vertical, o "buraco é mais embaixo", e a prática foge da teoria. A autoridade muitas vezes se vê diante do dilema de aplicar uma solução comportamental para salvar a operação, ou reprová-la por completo.  

Temos provas "científicas", no entanto, de que remédios comportamentais não são apenas indesejados; são piores que aprovações sem restrições. Kwoka (2015)[1], a partir de meta-análise[2] de estudos retrospectivos dos efeitos de atos de concentração, demonstra que, quando existe um risco concorrencial, os aumentos de preços decorrentes de fusões e aquisições são, em média, maiores quando a autoridade aplica um remédio comportamental que quando a operação é aprovada sem restrições.

Esse resultado empírico é contraintuitivo. Como é possível que um remédio gere efeitos piores que a reprovação? A explicação provavelmente se deve ao fato de que os casos estudados são aqueles que já atingiram um estágio avançado de análise (como em um tribunal para julgamento) e, portanto, mais problemáticos. Nesses casos, o ideal seria reprovar ou aplicar um remédio estrutural, mas na ausência dessas opções (por impossibilidade técnica ou política), as autoridades aplicam um remédio comportamental que provavelmente não vai resolver o problema, mas que dará à sociedade a impressão de que algo foi feito.

O AC Videolar Innova não é o primeiro nem o último na jurisprudência pátria a apresentar problemas póstumos. Um caso bastante emblemático foi o de arrendamento de unidades industriais de abate bovino envolvendo a JBS e Rodopa. O ato de concentração foi aprovado pelo Tribunal em agosto de 2014 com obrigações comportamentais, também exigindo-se a manutenção do nível mínimo de produção em um frigorífico. O Cade descobriu, ao final de 2016, que esse remédio era inexequível em razão de restrições ambientais vigentes antes mesmo da notificação e, portanto, de conhecimento da empresa, mas não da autoridade. A assimetria de informação, nesse caso, combinada com a má-fé das Requerentes, fez com que o remédio fosse inefetivo (se quer foi aplicado). O caso virou um dor de cabeça e, após três flexibilizações, o Cade aplicou multa por descumprimento e a empresa desistiu da operação[3].

No caso ALL-Rumo, o remédio foi um tentativa indireta de regulação de preços, outra prática desaconselhada pelo Guia. Estabeleceu-se uma fórmula paramétrica para definir qual deveria ser o valor cobrado de concorrentes pelo acesso à infraestrutura com base em variáveis relevantes. O resultado foi uma representação, um ano depois da aprovação, por descumprimento de ACC, e que hoje ainda tramita no órgão[4].

A autorização para que Connectcar e Semparar compartilhassem infraestrutura desde que permitissem a entrada de terceiros em condições isonômicas rendeu uma Medida Preventiva do Cade contra as empresas, derrubada pelo poder judiciário. O caso também ainda tramita no Tribunal Administrativo[5].

Todas as decisões citadas precedem a publicação do Guia de Remédios, no segundo semestre de 2016. É natural que a autoridade aprenda com os erros e evolua com o tempo, e a análise prévia de atos de concentração, que está por completar dez anos, ainda é relativamente nova no Brasil.

Isso posto, assim como no caso JBS Rodopa, por mais dura e ousada que tenha sido a decisão do Tribunal Administrativo de reverter a operação Videolar Innova, ela demonstra uma importante evolução institucional. Passa a mensagem clara de que compromissos assumidos não podem ser ignorados, contornados, adiados ou esquivados sob o argumento de que a operação não gerou os danos concorrenciais previstos. É a reputação do órgão que está em jogo, afinal.

Sabemos que a operação Videolar Innova não será revertida, pois a decisão será judicializada. O caso Nestlé-Garoto, outra eterna pedra no sapato do Cade[6], mostra bem as dificuldades que a PFE-Cade tem para reverter no judiciário um ato de concentração já consumado.

Para além da manutenção da decisão[7], é preciso ter mais rigor em atos de concentração. Remédios comportamentais devem complementar remédios estruturais, ou devem ser aplicados em conjunto com uma autoridade regulatória setorial (quando existente) capaz de monitorar e de manter seus efeitos para além do prazo de validade da decisão do Cade. Raramente um remédio comportamental é uma solução em si.  

O plenário atual do Tribunal parece ter entendido isso. Como dito, a decisão foi unânime, e o relator destacou a importância de ser mais rigoroso em relação à aplicação do §6º do art. 88 da Lei 12.529. Apesar de amarga, a decisão revela evolução institucional, e deve ser celebrada.

[2] Termo que caiu no uso popular após a odisseia científica em torno de tratamentos para a Covid-19.

[3] PA 08700.010688/2013-83

[4] PA 08700.005778/2016-03

[5] AC 08700.007192/2015-94, de relatoria deste autor.

[7] Ainda se discutem os embargos declaratórios.

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