Segunda leitura

Não existe dever de fidelidade do magistrado a quem o nomeou

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

4 de julho de 2021, 8h01

Bem além de mera suposição, vem crescendo a errônea crença de que quem indica o magistrado para uma Corte Superior ou o escolhe em lista tríplice para um Tribunal Regional ou de Justiça, este no âmbito estadual, terá no Tribunal um fiel seguidor de seus desejos.

Spacca" data-GUID="vladimir_passos_freitas1.jpeg">A partir desta precipitada conclusão, surgem sugestões de outras formas de escolha, algumas razoáveis, outras flagrantemente inadequadas. Porém, o fato é que o problema, se eventualmente existente, está nas pessoas e não no sistema, como aqui se verá.

No Supremo Tribunal Federal, a nomeação de um ministro passa pela indicação pelo Presidente da República e aprovação pelo Senado Federal. Obviamente, o chefe do Poder Executivo apontará alguém que, além de portador de sólida cultura e reputação inatacável, tenha afinidade com o seu pensamento.

Assim foi desde a proclamação da República e assim será sempre. Por exemplo, durante o período de regime militar, os indicados eram pessoas politicamente conservadoras, conformes ao sistema de governo da época. Em um governo politicamente de esquerda, por óbvio, as indicações recairão sobre alguém que, durante a sua vida, tenha demonstrado preocupações predominantemente sociais, não sendo necessário que tenha sido militante partidário.

No entanto, mostram os registros históricos que nem por isso os indicados comportam-se como marionetes do Presidente da República. Roberto Rosas, citando Recondo, lembra que:

A mesma fidelidade sempre é lembrada, muitas não correspondidas. O presidente Lula nomeou três ministros: Peluso, Carlos Britto e Joaquim Barbosa. Esses três votaram contra os correligionários e amigos do presidente (Mensalão — Ação Penal 470). O ministro Carlos Velloso foi nomeado pelo presidente Collor, mas votou pela sua condenação. Já no governo Dilma, foram nomeados três ministros de altíssima qualidade: Teori, Fux e Barroso, que nunca seguiram (cegamente) o governo.[1]

Estes significativos exemplos dão bem a mostra do erro na crença de que o nomeado nada mais é do que um vassalo a cumprir ordens do seu padrinho. Evidente que aqui ou ali poderá haver exceção a esta regra, mas daí o problema é outro, está no nomeado.

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, as escolhas são oriundas de classes diversas e não se tem notícias de votos de gratidão de ministros ao presidente da República que os escolheu em lista tríplice. Da mesma forma, no Tribunal Superior do Trabalho e no Superior Tribunal Militar.

No Tribunal Superior Eleitoral atuam sete membros, sendo que três deles são do STF, dois do STJ e dois indicados pelo presidente da República. Evidentemente, nesta Corte, por suas próprias características, o risco é maior. Os julgamentos políticos são sempre acompanhados de paixão e desconfiança e isto pode influir na credibilidade do magistrado indicado. No entanto, é preciso que a desconfiança tenha fundamento em fatos concretos, não devendo ser presumida tão somente pela indicação originária.

Nos Tribunais de Justiça, Regionais Federais ou do Trabalho, vigora o sistema do quinto constitucional, ou seja, a cada quatro magistrados de carreira o quinto deverá ser da advocacia ou do Ministério Público.

A suposição poderá dar-se em relação ao órgão que indicou originariamente (OAB ou MP) ou ao chefe do Poder Executivo que fez a escolha em lista tríplice (Governador de Estado ou Presidente da República).

Uma vez mais, o problema estará no nomeado e não no sistema. Por óbvio, nenhum dever tem o desembargador de decidir a favor de quem o ajudou na campanha para conseguir ser o escolhido ou de quem o nomeou. Se ele assim procede, o faz por conta própria, por fraqueza ou desvio de caráter.

Com efeito, é totalmente errado um magistrado oriundo da advocacia decidir todas as questões que envolvam o exercício da advocacia com os olhos postos na sua classe de origem. A partir do momento em que ele assina o termo de posse no cargo público, passa a ser absolutamente independente para julgar conforme a sua consciência, a Constituição e as leis de seu país.

Exatamente o mesmo deve ocorrer com um membro do Ministério Público que assuma as funções em um Tribunal. Um desembargador nomeado na vaga do quinto constitucional do Ministério Público não está perpetuamente atrelado às teses de sua instituição originária. E isto, dele, não pode ser cobrado, sob pena de total desvirtuamento da função de julgar e da imparcialidade que devem todos os juízes ostentar.

Este saudável afastamento não pode ser visto, de forma alguma, como ingratidão. Este raciocínio é o adotado pelos que entram em organizações criminosas e não no Poder Judiciário. No "Cosa Nostra", que é a máfia siciliana, a lealdade é jurada em meio a um pacto de sangue. Isto nada tem a ver com quem assume cargo público em um Tribunal.

A equivocada gratidão dos que se tornam magistrados não se confunde com a cordial atenção que devem eles dispensar aos que colaboraram para a sua nomeação ou mesmo ao seu órgão de origem. Assim, nada há de errado em atenderem representante da classe, ouvirem suas ponderações, adotá-las se for o caso. Isto tudo está dentro de um padrão de normalidade e a ninguém deve surpreender.

Na verdade, atrelado à desconfiança sobre o magistrado nomeado está o receio da quebra da imparcialidade. Esta não é virtude, é simples requisito essencial da função de julgar. Está na Bíblia que o apóstolo Paulo instruiu Timóteo, a agir desta maneira: "Conjuro-te, perante Deus, e Cristo Jesus, e os anjos eleitos, que guardes estes conselhos, sem prevenção, nada fazendo com parcialidade".[2]

Nos Princípios de Bangalore de Conduta Judicial, documento da Organização das Nações Unidas sobre integridade judiciária, a imparcialidade é colocada logo após a independência do juiz e muito antes da competência. No Código de Ética da Magistratura Nacional, editado pelo Conselho Nacional de Justiça, a imparcialidade vem expressa no artigo 1º, seguindo o adotado nos Princípios de Bangalore.[3]

Para as hipóteses de suspeita de parcialidade, o Código de Processo Civil (artigo 146) e o Código de Processo Penal (artigos 252 e 254) preveem as possibilidades de afastamento do magistrado por suspeição ou impedimento. Evidentemente, elas devem estar baseadas em fatos concretos bem definidos, pois há sempre o risco de a exceção estar sendo usada para afastar o magistrado em razão de ser desfavorável à tese da parte que o rejeita.

Mais complexa é a arguição de suspeição perante o Supremo Tribunal Federal. Dos juízes supremos espera-se que tal hipótese nem seja cogitada. Isabella Caroline Cristino promoveu estudo em nome da Sociedade Brasileira de Direito Público, demonstrando um grande número de arguições, via de regra fruto de declarações, fixando a pesquisa apenas no ano de 2017 e salientando que o trabalho "é um passo inicial para fomentar futuras análises sobre a fiscalização da imparcialidade do STF".[4]

Em suma, é possível concluir que juízes parciais, pelas mais diversas razões, existem, porque isto é próprio da falibilidade do ser humano. Todavia, tal condição é exceção e não regra. Ademais, além do magistrado nomeado não ter dever algum de fidelidade com a pessoa ou instituição que auxiliou na nomeação, deve conscientizar-se de que, ao vestir a toga, tem o dever ético e legal de atuar com imparcialidade e independência, honrando o cargo e cumprindo o dever assumido junto à coletividade.


[1] ROSAS, Roberto. Lembranças do Mundo Jurídico. Rio de Janeiro: GZ Ed., 2021, p. 171.

[2] Bíblia, Novo Testamento,  1 Timóteo 5:21.

[3] CÓDIGO DE ÉTICA DA MAGISTRATURA NACIONAL. Disponível em: https://www.oas.org/juridico/PDFs/mesicic4_bra_STF_codigo.pdf. Acesso em 2/7/2021.

[4] CRISTINO, Isabella Caroline. Disponível em: http://sbdp.org.br/wp/wp-content/uploads/2019/03/IsabellaCristino.pdf . Acesso em 2/7/2021.

Autores

  • Brave

    é ex-secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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