Processo Tributário

Ações tributárias: jurisdição, delimitação da causa de recorrer e instrumentalidade

Autor

  • Lázaro Reis Pinheiro Silva

    é assessor de ministro do Superior Tribunal de Justiça procurador do estado de Goiás em Brasília mestre em Direito Constitucional e Processual Tributário pela PUC-SP especialista em Direito Tributário pelo Ibet professor do curso de extensão "Processo Tributário Analítico" do Ibet e pesquisador do grupo de estudos de "Processo Tributário Analítico" do Ibet.

4 de julho de 2021, 8h00

O processo judicial não é um fim em si mesmo: ao contrário, encontra sentido enquanto instrumento destinado à solução de um conflito de interesses que lhe serve de antecedente material [1], constatação que, no âmbito tributário, fica ainda mais evidente quando se tem em conta a relação indissociável entre o estágio do processo de concretização da obrigação tributária e a escolha do instrumento processual adequado à solução do conflito instaurado [2].

Essa instrumentalidade, conquanto assuma diferente roupagem no plano recursal, não deixa de se fazer presente, afinal os recursos são verdadeiros desdobramentos dos direitos de ação e de contradição [3], desenvolvendo-se numa mesma relação jurídica formal (processual) e, por isso, também se destinam à solução de um conflito no plano do Direito material, aqui identificado com a crise de exigibilidade do tributo [4].

Tal afirmação, embora carregada de significativa obviedade à primeira vista, parece encontrar pouca ressonância na prática forense e, sobretudo, na recursal. De fato, aos operadores do Direito que atuam preponderantemente em última instância recursal (perante o STF e o STJ) não causaria estranheza a afirmação de que a noção de instrumentalidade se perde em meio às controvérsias de índole eminentemente formal que, abundantes no plano recursal, acabam por inviabilizar o exame do direito material subjacente.

Ocorre que quaisquer esforços de valorização da instrumentalidade processual em grau recursal têm sua eficácia comprometida quando os próprios operadores do Direito, ao lançar mão dos instrumentos processuais recursais pertinentes, ainda perante as instâncias ordinárias, deixam de situá-la adequadamente, o que acaba por convertê-la em mero adereço retórico.

Em primeiro grau, o exercício da jurisdição tem na petição inicial o ato provocativo capaz de transformar em fato jurídico um dado conflito de Direito material que é, em suma, o próprio antecedente material da relação processual. O conflito de Direito material, convertido na própria razão de existir da relação processual e servindo-lhe como ponto de partida, é ao mesmo tempo seu ponto de chegada, à medida que se busca, por meio do processo, a produção de norma jurídica capaz de solucionar o conflito.

Já em grau recursal, a atividade (re)provocativa do exercício da jurisdição, materializada pela minuta recursal, não está voltada senão mediatamente ao conflito de Direito material, tendo, outrossim, objeto imediato distinto, consistente no produto da atividade jurisdicional anteriormente desenvolvida: a decisão impugnada.

No plano abstrato, pertinente à incidência da regra jurídica, opera-se um incremento objetivo da relação processual, cujo antecedente material, já não mais composto apenas do conflito de Direito material, torna-se cada vez mais complexo à medida que se prolonga a cadeia recursal, em razão do manejo sucessivo dos diversos instrumentos recursais postos pelo sistema de Direito positivo. No plano concreto, o conflito de Direito material torna-se cada vez mais distante enquanto objeto de cognição do órgão jurisdicional competente para o julgamento do recurso.

O fenômeno descrito, para além das considerações dogmáticas, tem importantes consequências práticas. A principal delas, e da qual aqui nos ocupamos, é a necessidade de escorreita distinção entre a causa de pedir aduzida na petição inicial e a causa de pedir veiculada na petição recursal, melhor nominada causa de recorrer [5].

Embora a lei processual deixe evidente em diversas oportunidades que causa de pedir e causa de recorrer não se confundem [6], a experiência demonstra que, no mais das vezes, promove-se verdadeira amálgama de fundamentos nas petições recursais, o que acaba por prejudicar a correta delimitação do objeto dos recursos, e, consequentemente, o adequado exame da pretensão recursal pelo órgão jurisdicional incumbido do seu julgamento, em franco prejuízo à efetiva realização do Direito material.

Assim, quando se focaliza o exercício da jurisdição no plano recursal, é preciso compreender a peculiar forma de manifestação da ideia de instrumentalidade, a reclamar adequado delineamento da causa de recorrer pela parte insurgente (a vencida no processo), capaz de permitir sua correta identificação pelo órgão julgador e, com isso, viabilizar a apreciação efetiva do Direito material controvertido pelo órgão de jurisdição recursal. Significa dizer, por outros termos, que no ato de (re)provocação da jurisdição realizado pela parte recorrente, materializado na petição recursal, portanto, não basta o registro da irresignação, o inconformismo convertido em vernáculo, mas, exige, sobretudo, a precisa indicação dos fundamentos em razão dos quais se pleiteia a anulação ou reforma da decisão atacada.

Tomando-se o conflito tributário como pano de fundo, ao agravo de instrumento interposto contra o indeferimento da tutela provisória cautelar [7] que vise à suspensão da exigibilidade, por exemplo, não basta a afirmação de ilegitimidade de exigência do crédito tributário, sendo necessária ainda a indicação dos equívocos do juízo de primeira instância ao apreciar os fundamentos invocados pela parte para não reconhecer a presença dos requisitos para concessão da tutela provisória reclamada. No mesmo sentido, ao recurso de apelação interposto em face de sentença exarada em ação declaratória ou em mandado de segurança preventivo, não basta a indicação dos vícios que eventualmente maculem a regra-matriz de incidência tributária, reclamando-se ainda a indicação e a impugnação precisa dos fundamentos que sustentam a conclusão a que chegou o juízo de origem.

O que estamos a destacar é que, para o escorreito desenvolvimento da atividade jurisdicional em grau recursal, não basta a mera reiteração dos fundamentos em razão dos quais afirma-se a frustração das pretensões arrecadatórias ou o exercício abusivo da atividade tributante, conforme se cuide de ações exacionais ou antiexacionais [8], respectivamente. Para além disso, a petição recursal deve apontar com clareza os erros de procedimento e de julgamento que maculam a decisão recorrida, entabulando com ela uma relação dialética.

Em suma, a relação de instrumentalidade entre o processo e o conflito de direito material, ao surgir mediada pela decisão impugnada em grau recursal, passa a reclamar adequado posicionamento na crescente complexidade da relação processual, para que, assim compreendida, possa então realizar-se em sua completude.

 


[3] Direito de contradição aqui faz referência ao exercício do direito ao contraditório (defesa) pelo réu quando convocado para compor a relação processual.

[5] BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil – 10 ed. – São Paulo, Saraiva, 2021, p. 610.

[6] É como se colhe de preceitos como o do artigo 1.010, incisos II e III, do CPC/2015 que, ao tratar das razões do recurso de apelação, evidencia a diferença entre a "exposição do fato e do direito" e as "razões do pedido de reforma ou de decretação de nulidade".

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    é procurador do Estado de Goiás em Brasília, mestre em Direito Constitucional e Processual Tributário pela PUC/SP, especialista em Direito Tributário pelo Ibet, professor do Ibet e pesquisador do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.

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