Opinião

O cooperativismo às avessas e o risco de decisão impulsiva do Poder Judiciário

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3 de julho de 2021, 11h15

O bom, ou melhor, o prudente artigo de opinião deve ter por fim trazer ideias que possam contribuir para um determinado debate, sem que isso implique exaurir um tema, ou mesmo trazer soluções açodadas sobre um assunto. E é com essa ressalva inicial que vale trazer algumas impressões da prática da advocacia em contraponto a um posicionamento ainda bastante conservador do Judiciário sobre a estabilidade de emprego do dirigente sindical aplicada ao diretor de sociedade cooperativa.

Ocorre que quem milita na Justiça do Trabalho não se surpreende mais ao se deparar com pedidos por nulidades de dispensas se dirigentes de cooperativas, que, apesar de não exercerem quaisquer atividades análogas ou com algum grau de representatividade dos associados perante seus respectivos empregadores, mesmo assim, sustentam fazer jus à garantia de emprego, sem provas firmes sobre as atribuições ou elementos probatórios da plena atividade da cooperativa, mas que logram êxito e acabam sendo reintegrados ao quadro funcional de seus empregadores, na maioria das vezes, liminarmente, isto é, antes da dilação probatória.

Não é possível admitir tantas decisões que se baseiam na mera constituição formal de uma cooperativa, sem buscar a verdade real e se valer da primazia da realidade acerca do seu funcionamento, status, grau de sinergia entre os associados, representatividade perante o empregador, entre outras questões, que devem ser exigidas e observadas para declarar nulo um ato jurídico perfeito como é a rescisão de um contrato de trabalho, cuja tomada de decisão que o antecede, muitas vezes, passa por mais de um departamento dentro de uma empresa, do recursos humanos ao jurídico.

Ou seja, o cuidado que esses departamentos vêm buscando para evitar ou mitigar riscos trabalhistas, ao que parece, não é compartilhado por determinadas decisões proferidas na Justiça trabalhista, que, por sua vez, são menos rigorosas com aqueles empregados que buscam a estabilidade de emprego por serem "dirigentes" de sociedade de cooperativa do que são com empregadas gestantes, por exemplo, que na sua petição inicial devem anexar os exames e relatos médicos, imagens do status da gravidez que possam comprovar quando efetivamente se deu a gravidez: a relação entre o seu estado gravítico e o seu contrato de trabalho.

No caso da estabilidade oriunda de acidente de trabalho, outrossim, exige-se a juntada de exames e relatórios médicos, ou senão de provas inequívocas da relação entre o que faz um empregado com o que resultou seu acidente durante a prestação de serviços e no curso do contrato de trabalho. Além disso, faz-se necessária a chancela da autoridade previdenciária para declaração do status ocupacional de um trabalho e para efeito do código correspondente do benefício previdenciário.

Na prática trabalhista, o que ainda se vê da jurisprudência majoritária é uma análise fria da constituição formal das cooperativas, do número de dirigentes e suplentes, órgãos de controle e fim da instrução processual. Ainda que reste aos patronos das empresas fazer o requerimento para realização de perícias mais específicas, como a atuarial ou contábil, o resultado final mais comum acaba sendo o singelo protesto consignado em ata sob o indeferimento do pleito empresarial.

Aparentemente não se observa a mesma busca acurada pela realidade das cooperativas e seus associados, no dia a dia, como se vê do julgador ao analisar uma reclamatória com pedido de indenização por danos morais, ou ainda, usando como exemplo situações mais atuais, a alegação de nexo causal entre a Covid-19 com o trabalho. Ora, se não basta a mera contaminação enquanto empregado ativo para ver reconhecido o pleito, cabendo a este último demonstrar que o seu empregador deixou de cumprir com normas de saúde e segurança do trabalho, por que, então, não é exigido do empregado que alega gozar de estabilidade análoga aplicada ao dirigente de cooperativa a demonstração de que a sua entidade é definitivamente ativa, promove reuniões as registra em atas, tem projetos em curso ou provas que o valham?

Data máxima vênia, não parece razoável a lenidade de alguns julgadores ao analisarem o pedido de reintegração por um empregado cooperado em comparação à forma com que se lida com o acidente, dano moral e pedidos congêneres.

De fato, o direito estabilitário estabelecido no artigo 55 da lei federal que define a Política Nacional de Cooperativismo e institui o regime jurídico das sociedades cooperativas (5.764/1971) é uma vitória das lutas trabalhistas e de união dos trabalhadores em prol da possibilidade de atingirem um objetivo comum, sem visar o lucro, claro.

Ocorre que essa vitória de outrora não pode representar ou justificar, como hoje ocorre, um remédio fácil, fadado ao insucesso, que visa assegurar aos trabalhadores associados uma garantia no emprego, sem a necessidade da prova efetiva de funcionamento.

Os casos mais comuns na Justiça do Trabalho são de cooperativas de consumo, crédito, habitacional, educacional etc., cujos dirigentes fazem pedidos de reintegração baseados no artigo 55 da lei supracitada, numa parca análise constitucional e na juntada de documentos meramente formais, ou seja, como se o mero protocolo de um estatuto social perante a junta comercial do Estado da federação automaticamente já lhe torna detentor de direito, sem que tenha de se preocupar com suas obrigações.

Não obstante isso, por uma busca rápida junto aos Tribunais Regionais do Trabalho, nota-se que as decisões permanecem ignorando a pré-existência de um sindicato na mesma base territorial da cooperativa, sem que haja pronunciamento jurisdicional sobre se isso fere ou não o princípio da unicidade sindical.

Da mesma forma, a limitação da estabilidade para cooperativas de trabalho, ou também a limitação para cooperativas em que o objeto social da cooperativa possa conflitar com a atividade principal do empregador, também são ignoradas; e, o mais importante, há decisões que não entendem que a inexistência de uma função de representação do diretor de uma cooperativa, assim como ocorre com o dirigente sindical, por si só, seria motivo para não conceder a mesma estabilidade para ambas as hipóteses.

Sem que adentremos na alteração do texto legal, considerando que há projetos de lei em trâmite no Congresso Nacional, buscando a alteração da redação do aludido artigo 55, o que se pretende com esse artigo é promover o debate sobre a falta de interesse, notadamente dos juízes de primeiro grau, de investigar a real condição das cooperativas, e se estas não passam de uma entidade de fachada.

Assim como a intepretação mais ampla do artigo 55 causa insegurança jurídica às empresas, a recusa do Poder Judiciário em permitir a dilação probatória mais robusta a fim de buscar a realidade das cooperativas, também o provoca, além de violar ao artigo 369 do Código de Processo Civil (CPC), pois cerceia o direito constitucional da ampla defesa ao não permitir o emprego de todos os meios de prova moralmente legítimos.

Situação semelhante sofrem também algumas entidades de classe empresariais que buscaram instaurar inquéritos civis em determinadas localidades para apurar irregularidades desde a constituição até ao funcionamento de algumas cooperativas. Observou-se que a prática do Ministério Público do Trabalho foi a mesma de alguns julgadores ao apenas requisitar às cooperativas denunciadas os atos constitucionais e as prestações de contas, e só.

Repita-se, o artigo visa  achamar a atenção para alguns equívocos cometidos ou interpretações extensivas sobre esse tema, por vezes equiparando as Leis 5.764/71 (artigo 4º) e 12.690/12 (artigo 2º). De toda sorte, revela-se importante mencionar julgado da 12ª Vara do Trabalho de Natal, processo nº 0000180-84.2017.5.210042, que julgou improcedente ação movida por um dos cooperados da Cohaprovern, que, por sua vez, é cooperativa habitacional que desde a sua constituição, em 2010, até 2018, quando se deu a sentença citada, encabeçou apenas um único projeto, qual seja para aquisição de um terreno para a construção de um imóvel.

Observe-se que a existência de um único projeto em quase dez anos de uma cooperativa só reforça a inexistência de representatividade que se exige para constituição de uma cooperativa, inclusive quando há a mesma localidade da atuação o sindicato para esse fim.

Outro exemplo bastante comum é o da cooperativa de consumo e, em caso idêntico analisado pelo Tribunal Superior do Trabalho, vale colacionar o entendimento da turma julgadora ao relembrar o espírito da Lei nº 5.764/71.

Em resumo, o acórdão se pautou no seguinte fundamento: "A proteção legal ao dirigente visa a assegurar o empregado que defende a coletividade, muitas vezes em nítido confronto com o empregador, evitando, assim, a interferência nas decisões e na luta dos interesses coletivos. Logo, a garantia prevista no artigo 55 da Lei do Cooperativismo visa à devida proteção daqueles que, por ocuparem posições de poder e tomada de decisão nessas sociedades, acabam se expondo aos empregadores, por vezes, como resultado da defesa dos interesses da categoria econômica ou classe de empregados. Nesse contexto, se o objeto social da cooperativa não conflita com a atividade principal do empregador, ou seja, se a cooperativa não possui interação ou conflito com os empregadores ou seus diretores, não há embasamento para o usufruto de benesse da estabilidade aos dirigentes de cooperativa de consumo. (…) Recurso de revista conhecido e provido"  (RR-1721-39.2015.5.17.0009, 7ª Turma, ministro Claudio Mascarenhas Brandao, DEJT 29/5/2020).

Por tudo isso, não se pode perder de vista que a estabilidade provisória se configura como uma excepcionalidade no Direito do Trabalho, construída para proteger o trabalhador que, no exercício de suas funções, pode entrar em atrito com o empregador. Da mesma forma, faz-se necessária a interpretação restritiva.

Em que pese o posicionamento de alguns tribunais ainda ser muito raso na análise das provas, por óbvio, oriundo de um juízo de primeira instância, restringindo-se à prova documental e meramente formal para efeito de constituição da cooperativa, é interessante notar também que há decisões progressistas, que conseguem fugir dos limites que nos referimos antes e vão à fundo na análise do caso concreto.

Essa é a hipótese de uma sentença também oriunda de uma Vara do Trabalho de Natal, nos autos do processo nº 0000361-94.2020.5.21.0005, que ao analisar o pedido de reintegração feito pelo vice-presidente de cooperativa educacional da região, assim se posicionou de forma brilhante:

"(…) Em audiência instrutória presencial, coletou-se o depoimento do autor, do qual destaco: '… que participou da constituição da cooperativa, que tem por finalidade promover a educação nas áreas primárias, secundárias, técnico e superior, esportiva, cultural, através de convênios, tanto aos membros quanto aos dependentes; que até o momento não há qualquer convênio celebrado, (…);que atualmente ainda não estão se reunindo; que estão tratando de alguns convênios com universidades e escolas, como por exemplo, Fanec, Escola Dom Marcolino, dentre outros; que os benefícios dos convênios seriam descontos em mensalidades tanto para os membros quanto para os dependentes; (…) que o sindicato também possui alguns convênios para educação mediante descontos; (…) que chegaram a ter reuniões por telefonia, via chamadas coletivas, mas não houve ata de tais reuniões; que a cooperativa possui uma sede física, no Alecrim; que a sua região de atuação para a ré é RN/PB e a região de atuação da cooperativa é RN/PB/PE; que atualmente há 22 membros na cooperativa, como fundadores/diretores; que todos os 22 membros foram eleitos na constituição da cooperativa; que atualmente não há nenhum cooperado, pois não houve tempo hábil para divulgação e atividades, conforme já relatado; (…)".

Convém destacar, ainda, o lúcido fundamento do juízo de Natal ao comparar a sua própria atividade judicante com a dos cooperados, no sentido de que a pandemia não permitiu que reuniões e assembleias sejam realizadas:

"(…) A alegação de dificuldades em razão da pandemia não prospera, seja porque as atividades no Estado já retornaram há algum tempo, e as atividades em época de pandemia tem se desenvolvido de forma virtual, telepresencial, por telefone, não havendo qualquer impeditivo para as atividades da cooperativa, inclusive para a celebração de convênios. Apenas à guisa de exemplo, este Tribunal Regional do Trabalho Rio Grande do Norte (TRT/RN), por exemplo, desde março/abril de 2020 já perfaz suas atividades de forma telepresencial, por e telefone, inclusive notificando partes, Whatsappp fazendo reuniões etc. A necessidade de efetiva atuação da Cooperativa avulta ainda mais quando seus membros, desde o início do ano, enviam notificação a seus empregadores nominando-se como estáveis. É questão de boa-fé, ética e moral! Não bastasse a sua inefetividade, a sua própria razão de existir é duvidosa. (…) Não podem os dirigentes da Cooperativa serem beneficiados pela própria torpeza, não funcionando efetivamente e estando a atuar em área já atendida pelo Sindicato da categoria, de forma a dar funcionamento à entidade apenas para alcançar estabilidade de maior número de empregados. (…)".

Nesse sentido, decisões como a colacionada acima devem servir de norte para os operadores do Direito, particularmente aqueles que militam na Justiça do Trabalho, que, por dever de ofício ou senão por compromisso a um dos princípios basilares do Direito do Trabalho, o da primazia da realidade.

E mais, esses não devem se furtar à "luta" pela verdade real ou se omitir em face de decisões liminares ou de mérito, que de tão apegadas a questões meramente constitutivas, passam ao largo de questões mais importantes, como o efetivo funcionamento, e claro, a representação da cooperativa em nome de seus associados, empregando todos os meios de prova admitidos em lei, sob pena de vingar no Brasil o cooperativismo às avessas, que ignora o aspecto coletivo da sua origem em detrimento de um papel de mero coadjuvante da entidade cooperativa visando a permitir aos seus associados ardilosamente a estabilidade de emprego.

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