Opinião

QR code em produtos de higiene, perfumes e cosméticos tem efetividade nula

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3 de julho de 2021, 6h03

No final de 2020, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicou a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 432/20, que obriga a descrição da composição química em português na rotulagem de produtos de higiene pessoal, cosméticos e perfumes. Em junho, a Anvisa optou por alterar a RDC 432/20 para, principalmente, possibilitar a inserção de código por leitura de dispositivo móvel (QR Code) da referida composição. Por um lado, há a atitude da Anvisa em modernizar as suas normas; por outro, a modernização andou a passos largos, podendo a sua efetividade ser nula.

A RDC 432/20 tem origem na Ação Civil Pública nº 0028713-35.2008.4.02.5101/RJ, promovida pelo Ministério Público Federal (MPF), objetivando: 1) a declaração de ilegalidade da RDC 211/05 quanto à desnecessidade de descrição em português dos componentes de produtos de higiene pessoal, cosméticos e perfumes; e 2) a edição de norma, ou adição de dispositivo na RDC 211/05, que obrigue ao uso do português na descrição da composição dos produtos, cabendo à Anvisa fiscalizar o setor regulado e impor punições por descumprimento.

O pano de fundo da ação civil pública é fazer valer o direito à informação dos consumidores, previsto na Constituição Federal (artigo 5º, XXXII) e no Código de Defesa do Consumidor (CDC ou artigo 4º, I, artigo 6º, III, e artigo 31). Tal direito também é conhecido como dever de informar pelo fornecedor, que, aliado ao princípio da transparência, obriga o fornecedor a informar o consumidor sobre todas as características de seus produtos que estão disponíveis no mercado. Na visão do MPF, utilizar o português seria componente indissociável ao dever de informar, inclusive sendo regra de ordem pública.

Em primeira instância, a ação civil pública foi julgada improcedente. Por sua vez, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região proveu a apelação e o reexame necessário para determinar à Anvisa editar norma sobre a obrigatoriedade de utilização do português na descrição dos componentes químicos dos produtos de higiene pessoal, cosméticos e perfumes, entendendo que o segundo pedido (referente à fiscalização) seria consequência da obrigatoriedade de descrição dos componentes em português. Os recursos interpostos aos tribunais superiores foram improvidos, sendo que atualmente a discussão se encontra em andamento no Supremo Tribunal Federal.

Para cumprir o que foi determinado na ação civil pública, a Anvisa editou a RDC 432/20 para obrigar o setor regulado a informar em português a composição química dos produtos de higiene pessoal, cosméticos e perfumes. Originalmente, a RDC 432/20 previa a possibilidade de a composição química constar em etiqueta complementar ao rótulo original do produto (artigo 2º, §2º).

Na reunião ordinária pública de 26/5/21, em decorrência de proposta interna, a diretoria colegiada da Anvisa (Dicol) decidiu, por unanimidade: 1) abrir processo regulatório, com excepcionalidades (a saber, dispensa de análise de impacto regulatório e dispensa de consulta pública); e 2) na mesma sessão, aprovar norma alterando a RDC 432/20 para possibilitar o uso de QR Code para informar o consumidor sobre a composição química em português dos referidos produtos [1].

A decisão da Dicol teve por base o voto da relatora, diretora Cristiane Jourdan [2]. A diretora relata que a possibilidade de QR Code na rotulagem já teria sido discutida anteriormente para minimizar os impactos de adequação da rotulagem, especialmente dos produtos que possuem embalagens pequenas. Na época, considerou-se prudente que a norma fosse aprovada sem a permissão e que o questionamento sobre a possibilidade de uso do QR Code fosse levada ao juízo da ação civil pública. Como o Judiciário se manifestou favorável à proposta, então, a Anvisa adotou procedimentos internos para alterar a RDC 432/20, prevendo o uso de QR Code, com o propósito de mitigar o impacto o setor regulado.

Eis que surgiu a RDC 499/21 para acrescentar o parágrafo 3º ao artigo 2º da RDC 432/20, permitindo o uso do QR Code nos seguintes termos: "A composição química em língua portuguesa poderá ser apresentada em formato digital, a partir da leitura de código constante no rótulo por meio de dispositivo móvel, que dê acesso direto à essa composição e cujo código esteja precedido da frase 'Composição (português):' ou 'Ingredientes (português)".

Porém, ao contrário do que alega a Anvisa e o Judiciário, o uso de QR Code para informar, em português, a composição química dos produtos de higiene pessoal, cosméticos e perfumes, não parece efetivo.

Escanear um QR Code para acessar informações sobre a composição química dos produtos seria obstáculo ao direito à informação do consumidor, protegido constitucionalmente e pelo CDC. Ao menos pode ser vista como medida discriminatória aos menos afortunados, idosos, população rural e minorias, porque são menos propensos a possuir dispositivos móveis capazes de escanear o código. Adicionalmente, a maioria dos consumidores não está familiarizada com os QR Codes e não saberia escanear para obter maiores informações sobre o produto.

Em outros termos, ao invés de o fornecedor ser transparente, utilizar a tecnologia do QR Code equivaleria a permitir as empresas "esconder" a informação sobre a composição química dos produtos. O objetivo do ordenamento jurídico é distinto: ele vai no sentido de preferir informações claras na embalagem dos produtos, combatendo medidas que as impossibilitem.

Vale ainda analisar a questão sob a perspectiva de que os fabricantes desses produtos controlariam/escolheriam qual o método de rotulagem que eles adotariam, a partir das possibilidades da norma (ao menos, verificam-se três: 1) informação clara e direta no rótulo do produto; 2) informação via etiqueta complementar; e 3) informação via QR Code).

Isso quer dizer que existem chances possíveis de produtos comparáveis de diferentes fabricantes possuírem rotulagem distintas. Ou, até mesmo, diferentes produtos, de um mesmo fabricante, apresentarem rotulagens distintas. Isto é, perde-se a uniformidade da rotulagem dos produtos de higiene pessoal, cosméticos e perfumes, o que também dificulta a avaliação do consumidor.

A partir das considerações acima, tem-se que as medidas adotadas pela Anvisa e aprovadas pelo Judiciário, sobretudo a possibilidade de informar a composição química em português de produtos de higiene pessoal, cosméticos e perfumes, via QR Code, apenas aproveita o setor regulado. A efetividade da medida pode ser zero, nula, considerando a heterogeneidade da população brasileira, destacando-se a dificuldade de acesso às tecnologias, bem como, a parcela que possui acesso às tecnologias, não possuiria capacidade e conhecimento para utilizá-la. Ao final, o direito à informação protegido pela Constituição Federal e pelo CDC acabou por ser violado, impondo-se, em sentido contrário ao ordenamento, obstáculos para a sua observância e aplicação.

 

Autores

  • Brave

    é mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e especialista em Direito Sanitário e Direito Administrativo, atuando nas áreas desde 2014.

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