Opinião

STF e STJ vão decidir o futuro do setor imobiliário

Autor

  • Kelly Durazzo

    é advogada sócia do Durazzo & Medeiros Advogados presidente da coordenaria da Comissão de Loteamento da OAB-SP e Ibradim e diretora estadual da Comissão da Reurb SP.

2 de julho de 2021, 9h12

O Superior Tribunal Justiça está prestes a tomar uma decisão que pode reforçar a segurança jurídica necessária para o funcionamento de toda a indústria de crédito imobiliário, incluindo seus vários elos, entre os quais construtoras e incorporadoras, fundos imobiliários, bancos, financeiras e seguradoras, além do reflexo disso no mercado de capitais.

A depender do julgamento, porém, o boom imobiliário iniciado nos anos 2000 pode chegar a um fim trágico, levando ao fechamento de empresas e demissões em massa no setor, além de tornar o "sonho da casa própria" um verdadeiro pesadelo.

A 2ª Turma do STJ estabeleceu o rito de recursos especiais repetitivos no julgamento dos Recursos Especiais (RE) 1.891.498 e 1.894.504, nos quais se discute se o Código de Defesa do Consumidor (CDC) pode ser aplicado na resolução de contrato de compra e venda de imóvel com cláusula de alienação fiduciária em garantia. Ou se as determinações previstas na Lei 9.514/1997 é que devem pautar o encerramento desse tipo contrato.

Com isso, mais de 500 ações apenas dentro do próprio tribunal entram em compasso de espera por essa decisão e todos os processos com o mesmo tema em primeiras e segundas instâncias também tiveram suas tramitações suspensas.

Vale lembrar que a Lei 9.514/1997, que dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário, regulou o mecanismo de alienação fiduciária de bens imóveis com a consequente execução extrajudicial em casos de inadimplência. Ou seja, o financiamento é concedido, mas o imóvel é dado como garantia pelo pagamento da dívida, sendo que o credor fiduciário detém a propriedade resolúvel do imóvel condicionada à quitação do financiamento pelo devedor fiduciante.

Se houver inadimplência, após cumprida uma série de exigências legais, o credor fiduciário pode executar extrajudicialmente o imóvel junto ao registro de imóveis, sem necessidade de movimentar o Judiciário. Isso torna a cobrança muito mais rápida e eficaz, estimulando a concessão de crédito e permitindo, consequentemente, o funcionamento do mercado imobiliário e da construção civil.

A execução extrajudicial, porém, não está em discussão nos recursos especiais sob análise do STJ neste momento. A questão se concentra na forma de devolução dos valores pagos pelo devedor ao longo de um contrato de financiamento de bem imóvel garantido por alienação fiduciária e encerrado por inadimplência. O STJ terá de decidir se nesses casos a solução deve se basear no artigo 53 do CDC ou nas disposições contidas nos artigos 26º e 27º da Lei 9.514/1997.

A situação fica mais clara ao se analisar um exemplo clássico de um contrato de financiamento com alienação fiduciária. Suponha que João comprou um apartamento de R$ 1 milhão, tendo para isso pago uma entrada de R$ 300 mil e financiado o restante dando em garantia o próprio imóvel. Nos primeiros anos do contrato, João pagou um total de R$ 100 mil em prestações do financiamento, mas, após passar por problemas financeiros, não conseguiu mais honrar as parcelas.

A financiadora acionou João extrajudicialmente e, depois de cumpridas todas as burocracias exigidas pela lei, o imóvel foi levado a leilão. A lei estabelece a necessidade de realização de duas tentativas de leilão para arrematação do imóvel, sendo que na primeira delas é considerado o valor do imóvel estipulado no instrumento de venda e compra e na segunda, o valor da dívida e seus acréscimos, conforme parágrafos 1º e 2º do artigo 27 da Lei 9.514/97. Em sendo arrematado no segundo leilão, não sobra valor a ser devolvido ao comprador e aqui começa a discussão no STJ.

Os compradores se sustentam no artigo 53 do CDC, que estabelece que é nula cláusula contratual que estipule perda total das prestações pagas pelo devedor e, dessa forma, exigem a devolução parcial dos valores pagos.

Já os bancos e as financeiras argumentam que a Lei 9.514/1997 foi criada especificamente para normatizar a compra e venda de imóveis com garantia de alienação fiduciária, e por isso, seus artigos 26 e 27 devem se sobrepor ao CDC ao estabelecerem as regras da retomada do imóvel em caso de inadimplência do devedor fiduciante.

É preciso que o STJ julgue e decida de uma vez por todas a supremacia da Lei 9.514/97 sobre o CDC, já que se trata de regra especial. Existe uma enormidade de processos judiciais tratando dessa matéria e sobrecarregando o Judiciário com decisões contraditórias entre si, valendo consignar que há tempos atrás a grande maioria, principalmente decisões em primeiro grau, se rendia aos pedidos dos consumidores, mas atualmente isso é menos frequente, sendo que as recentes decisões privilegiam aplicação da Lei 9.514.

Nesse sentido, o próprio STJ já se posicionou:

"Direito civil. Ação de rescisão contratual cumulada com restituição de valores pagos e reparação de danos materiais. Prequestionamento. Ausência. Súmula 282/stf. Contrato de compra e venda de imóvel. Alienação fiduciária em garantia. Código de defesa do consumidor, art. 53. Não incidência. 1. Ação de rescisão contratual cumulada com restituição de valores pagos e reparação de danos materiais, em virtude de contrato de compra e venda de imóvel garantido por alienação fiduciária firmado entre as partes. 2. A ausência de decisão acerca dos argumentos invocados pelos recorrentes em suas razões recursais impede o conhecimento do recurso especial. 3. A Lei nº 9.514/1997, que instituiu a alienação fiduciária de bens imóveis, é norma especial e posterior ao Código de Defesa do Consumidor – CDC. Em tais circunstâncias, o inadimplemento do devedor fiduciante enseja a aplicação da regra prevista nos artigos 26 e 27 da lei especial. 4. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, não provido, com majoração de honorários. Recurso especial nº 1871911 – sp (2020/0096453-1)".

Vale lembrar que a decisão do STJ não é a única a ameaçar a sobrevivência de toda a cadeia de crédito imobiliário. Se essa decisão refere-se apenas à forma de resolução do contrato, no Supremo Tribunal Federal a própria execução extrajudicial está sendo questionada.

O ministro Luiz Fux já reconheceu a repercussão geral no RE 860.631, que discute a constitucionalidade da execução extrajudicial nos contratos de financiamento imobiliário, com cláusula de alienação fiduciária, de acordo com a Lei 9.514/1997. Segundo o devedor, a execução extrajudicial atentaria contra os princípios do devido processo legal, a inafastabilidade da jurisdição e a ampla defesa e do contraditório, o que tornaria o procedimento inconstitucional.

A tese de inconstitucionalidade acima apontada, porém, é natimorta e não deve prosperar, pois existe um longo caminho a ser percorrido para a execução do bem, onde estão previstos e protegidos todos os direitos constitucionais da Carta Magna.

O Brasil tem de se ajudar. Somos um país com mais de 77 milhões de processos judiciais, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ou seja, praticamente a cada três cidadãos um deles possui ação judicial, e as contradições de julgados, além de sobrecarregar o Judiciário, transbordam a insegurança jurídica do país afastando investimentos estrangeiros. A Lei 9.514/1997 é lei especial e se sobrepõe ao CDC.

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    é sócia do Durazzo & Medeiros Advogados, membro da Comissão Direito Imobiliário OAB/SP e do Conselho Jurídico da Associação das Empresas de Loteamento (Aelo), diretora SP da Comissão de Regularização Fundiária Urbana (Reurb) e docente da Universidade Secovi.

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