Prática Trabalhista

A recusa do empregado em tomar vacina e a possibilidade de dispensa por justa causa

Autores

  • Ricardo Calcini

    é professor advogado parecerista e consultor trabalhista. Atuação estratégica e especializada nos Tribunais (TRTs TST e STF). Coordenador trabalhista da Editora Mizuno. Membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (Getrab-USP) do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.

  • Leandro Bocchi de Moraes

    é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito (EPD) pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) pós-graduado em Diretos Humanos e Governança Econômica pela Universidade de Castilla-La Mancha pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos (IGC/Ius Gentium Coninbrigae) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito do Trabalho da Universidade de São Paulo (NTADT/USP).

1 de julho de 2021, 8h02

Em tempos de pandemia retorna à discussão um assunto sensível referente à extinção do contrato de trabalho do empregado que se recusa a tomar vacina. Neste caso, o trabalhador poderia ser dispensado por justa causa ou não? E, mais, a vacinação seria obrigatória ao empregado?

A matéria é, de fato, polêmica!

Primeiramente, importante entender o conceito de justa causa. O professor Maurício Godinho Delgado[1] nos ensina que "para o Direito brasileiro, justa causa é o motivo relevante, previsto legalmente, que autoriza a resolução do contrato de trabalho por culpa do sujeito comitente da infração – no caso, o empregado. Trata-se, pois, da conduta tipificada em lei que autoriza a resolução do contrato de trabalho por culpa do trabalhador".

Dito isso, impende frisar que no dia 6/2/2020 foi editada a Lei nº 13.979, a qual dispõe sobre as medidas para enfrentamento de emergência da saúde pública de importância internacional para o combate ao coronavírus, de forma que o espírito da lei foi criar uma política para combater a pandemia e proteger os interesses da coletividade.

A mencionada lei preceitua em seu artigo 3º, inciso III, alínea "d", que uma das medidas autorizadas para o enfrentamento e combate da emergência de saúde pública seria justamente a vacinação. O parágrafo 1º do referido dispositivo legal estabelece que "as medidas previstas neste artigo somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública".

Indubitavelmente, é de conhecimento público e notório que o número de mortes no Brasil já ultrapassou a triste marca de 512 mil mortes[2], assim como já infectou mais de 18 milhões de pessoas, de modo que nos parece ser claro e incontroverso o dever de todos em colaborar para que seja evitado o contágio do vírus assim como a sua propagação.

Nesse prumo, pautada na análise ao referido dispositivo legal, verifica-se a possibilidade de exigência compulsória para a realização de exames médicos; testes laboratoriais; coleta de amostras clínicas; vacinação e outras medidas profiláticas ou tratamentos médicos específicos.

Entrementes, neste contexto surge o debate se tais medidas seriam capazes de afrontar própria vida privada, a intimidade, as convicções individuais, filosóficas e religiosas do trabalhador.

Frise-se, por oportuno, que o Supremo Tribunal Federal já foi provocado para emitir um juízo de valor a respeito da vacinação compulsória para o combate da Covid-19, qual seja, se seria ou não constitucional esta exigência[3], assim como se haveria ofensa à privacidade, a intimidade, a honra ou a dignidade do trabalhador.

Na ocasião, o entendimento da Suprema Corte foi no sentido de que, inobstante a Constituição assegure a proteção aos direitos dos trabalhadores, dentre eles as suas concepções morais, espirituais e pessoais, o interesse coletivo supera as predileções individuais, ainda mais em se tratando de uma medida que tem o intuito de erradicar a doença.

Se é verdade que nenhum direito pode ser considerado absoluto, de igual relevância é importante que ocorra a ponderação entre a liberdade individual consistente entre as optações particulares com os demais direitos e garantias constitucionais, tais como tutela a vida e a saúde.

Lado outro, o Ministério Público do Trabalho também se manifestou quanto a temática, de sorte que, em janeiro de 2021, fora publicado um guia técnico interno sobre a vacinação da Covid-19[4], disciplinando no item II sobre a compulsoriedade da vacinação.

O referido guia técnico, após referenciar a Lei nº 6.259/75, que dispõe sobre a organização das ações de vigilância epidemiológica e o programa nacional de imunização, além de citar a Lei nº 13.979/2020, delibera que "diante desse cenário legal e jurisprudencial, é de se concluir que a vacinação, conquanto seja um direito subjetivo dos cidadãos, é também um dever, tendo em vista o caráter transindividual desse direito e as interrelações que os cidadãos desenvolvem na vida em sociedade. Neste sentido, o direito à vacinação também pode constituir um dever nas hipóteses em que envolve questões de saúde pública, como nos casos de epidemias e pandemias. Por isso, o direito-dever à vacinação, como uma das prestações compreendidas no direito à saúde, tem, do mesmo modo, eficácias vertical e horizontal, obrigando, a um só tempo, tanto o Poder Público a realizar as ações para efetivá-lo, quanto os particulares a realizarem medidas para a sua concretização, e, ainda, submeterem-se ao comando compulsório de vacinação".

Note-se que, ao falarmos da recusa do trabalhador em tomar a vacina, e, portanto, apta a ensejar a justa causa, relaciona-se àquela feita de forma injustificada, pois, do contrário, comportando justo motivo, parece óbvio que o caso demandaria uma atenção e cuidado especiais, sobretudo para se evitar qualquer tipo de arbitrariedade ou abuso de direito.

Imaginemos a situação em que o trabalhador tenha problemas de saúde que poderão ser agravados ou causar riscos à vida após a aplicação da vacina. Nessa hipótese, é totalmente pertinente e justificável a recusa. Via de consequência, não haveria que se falar de dispensa por justa causa.

Frise-se, no mais, que a Consolidação das Leis do Trabalho preceitua que compete as empresas cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho, devendo adotar as medidas cabíveis[5]. De igual modo, nos termos do artigo 158, inciso II[6], cabe ao empregado colaborar para seja efetivamente aplicada as normas de segurança e medicina do trabalho.

Nesse desiderato, vale lembrar que compete a todos empregar esforços para a proteção do meio ambiente laboral, cabendo ao empregador aplicar as medidas necessárias a fim de que sejam elididos os riscos inerentes ao trabalho. Ademais, a Convenção n. 155 da Organização Internacional do Trabalho[7], ratificada pelo Brasil, aborda justamente nos artigos 16 a 19 tal questão.

Deste modo, dentre outras medidas de proteção e de saúde pública, a vacinação se mostra como um dos meios seguros e eficazes de controle a pandemia.

Por tal razão, vale dizer que neste momento de pandemia todos devem tentar agir com razoabilidade para que a vida seja protegida, e, nesse sentido, a priorização da proteção da saúde da coletividade prevalece ao direito individual de cada um dos trabalhadores.

Em final conclusão, nada obstante o tema seja polêmico, se, porventura, o empregado não possuir um justificativa plausível para a recusa em tomar a vacina, e, considerando o dever do empregador em proteger o meio ambiente laboral, pode-se entender perfeitamente crível este se valer do seu poder diretivo para, neste caso, proceder com a dispensa do trabalhador por justa causa, dada a gravidade da situação enfrentada.


[1] Delgado, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho – 15.ed. – São Paulo: LTr, 2016. Página 1.320.

[2] G1 – O portal de notícias da Globo. Disponível em: <www.g1.globo.com >. Acesso em 27.06.2021.

[3] ADI 6586, 6587 e Recurso Extraordinário com Agravo (ARE)n1267879.

[5] Art. 157 – Cabe às empresas: I – cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho;II – instruir os empregados, através de ordens de serviço, quanto às precauções a tomar no sentido de evitar acidentes do trabalho ou doenças ocupacionais; III – adotar as medidas que lhes sejam determinadas pelo órgão regional competente; IV – facilitar o exercício da fiscalização pela autoridade competente.

[6] Art. 158 – Cabe aos empregados: I – observar as normas de segurança e medicina do trabalho, inclusive as instruções de que trata o item II do artigo anterior; Il – colaborar com a empresa na aplicação dos dispositivos deste Capítulo. Parágrafo único – Constitui ato faltoso do empregado a recusa injustificada:a) à observância das instruções expedidas pelo empregador na forma do item II do artigo anterior; b) ao uso dos equipamentos de proteção individual fornecidos pela empresa.

[7] Organização Internacional do Trabalho. Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_236163/lang–pt/index.htm . Acesso em 27.06.2021.

Autores

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    é mestre em Direito pela PUC-SP, professor de Direito do Trabalho da FMU, coordenador trabalhista da Editora Mizuno, membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária, palestrante e instrutor de eventos corporativos pela empresa Ricardo Calcini | Cursos e Treinamentos, e membro e pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (Getrab-USP).

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    é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito (EPD), pós-graduando lato sensu em Direito Contratual pela PUC-SP, auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô, membro da Comissão Especial de Direito do Trabalho da OAB-SP e pesquisador do Núcleo "Trabalho Além do Direito do Trabalho" da Universidade de São Paulo – NTADT/USP.

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