Olhar econômico

Preservação do contrato, segurança jurídica e integridade do ambiente negocial

Autor

  • João Grandino Rodas

    é presidente e coordenador da Comissão de Pós Graduação Stricto Sensu do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes) e Sócio do Grandino Rodas Advogados. Desembargador Federal aposentado do TRF-3 e ex-reitor da USP. Professor Titular da Faculdade de Direito da USP da qual foi diretor mestre em Direito pela Harvard Law School mestre em Diplomacia pela The Fletcher School e Mestre em Ciências Político-Econômicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

1 de julho de 2021, 8h01

Pacta sunt servanda é, sem dúvida uma das máximas jurídicas mais conhecidas e empregadas. Embora cunhada pelos canonistas medievais, representa princípio que já vinha sendo corporificado, juntamente com a própria ideia de contrato, desde tempos antigos. O direito sem o obrigatório cumprimento, não passaria de uma ficção!

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Hodiernamente, os conceitos de normalidade e de estabilidade estão sendo guerreados, enquanto pari passu exacerbam-se sinais de individualismo e de interesse coletivo. Tal estado de coisas sacode o ordenamento jurídico, instrumento de tutela das relações humanas.

Desde o primeiro trimestre de 2020, a crise econômica no Brasil fruto da redução da atividade econômica, o êxodo do capital externo e a redução da taxa básica de juros, aliada à desvalorização do real frente ao dólar norte-americano[1], incentivaram corrida ao Judiciário com o intuito de obter a revisão e, em alguns casos, até mesmo autorização para descumprimento de contratos entre particulares, sem que houvesse legítimo fundamento, o que repugna ao Direito.

Um dos argumentos preferidos pelos candidatos ao descumprimento contratual é a Lei  14.010/2020, que dispõe sobre o regime jurídico emergencial e transitório nas relações jurídicas de direito privado, durante o período  pandêmico da Covid-19.  Tal, inobstante estar expresso, no artigo 7º dessa norma, não serem fatos imprevisíveis, para os fins de revisão dos contratos, o aumento da inflação, a variação cambial, assim como a desvalorização da moeda[2].

Embora o Direito contemple hipóteses em que é possível revisão contratual, como regra, é imperiosa a preservação dos contratos a termo, nos exatos moldes de sua celebração. Buscar, em Juízo, a resolução ou a revisão de contratos, de maneira especulativa, sem fundamentação real e amparada em mero oportunismo é tentar destruir estrutura jurídica, formada no cadinho dos tempos e que resguarda relações de direito, além de lastrear e garantir todo o sistema econômico.

Os seguintes artigos do Código Civil são pertinentes. O artigo 422 estabelece que os contratantes devem observar o princípio da boa-fé contratual durante a execução e conclusão do contrato. O artigo 421, parágrafo único, determina que, nas relações privadas, o Estado deve intervir minimamente na vontade das partes, sendo exceção a revisão contratual. Por fim o artigo. 421-A, incisos II e III, dispõe que a alocação de riscos definida pelas partes em um contrato deve ser respeitada e observada, assim como a revisão contratual deve ser feita de maneira excepcional[3]. Nesse sentido, cifre-se o acertado entendimento do Conselho da Justiça Federal, em seu Enunciado 366, verbis: "O fato extraordinário e imprevisível causador de onerosidade excessiva é aquele que não está coberto objetivamente pelos riscos próprios da contratação". (não há grifo no original)

Tenha-se em mente serem estritas as próprias circunstâncias autorizadoras de revisão das bases contratuais, consoante dicção do art. 478[4] do Código Civil, que define os requisitos, obrigatoriamente cumulativos, para que seja legítima a resolução contratual:

  1. o contrato deve ser de execução continuada ou diferida;
  2. deve ocorrer um desequilíbrio contratual em razão de eventos extraordinários e imprevisíveis;
  3. a prestação de uma das partes deve se tornar extremamente onerosa; e
  4. deve ser comprovada extrema vantagem para a outra parte.

Ora, partindo do princípio da liberdade e capacidade das partes para contratar, assim entendido como o legítimo exercício de vontade, a celebração de um contrato evidencia um alinhamento de vontades entre partes capazes e conhecedoras dos seus negócios, buscando um equilíbrio entre ganhos e concessões.

Assim, no momento em que um contratante firma um compromisso, ele ex vi dessa avença, de um lado, obtém uma segurança relacionada aos respectivos termos contratados; mas de outro, assume o risco ao se comprometer com os mesmos termos contratados. Tomando-se como base um contrato a termo[5], se um vendedor optou por não correr os riscos de uma oscilação para valor menor, estabelecendo um preço para sua mercadoria, também não pode querer se beneficiar dos ganhos em caso de haver uma oscilação a maior.

Essa lógica financeira do exercício da vontade de contratar deve ser respeitada, nos termos do ar. 421-A do Código Civil, sob pena de desequilibrar não só os parâmetros da relação estabelecida no contrato, mas também todo um sistema econômico-produtivo em que se insere aquele contrato, afetando diretamente todos os segmentos subsequentes da cadeia de produção.

É como entende o C. Superior Tribunal de Justiça:

"Direito empresarial. Contratos. Compra e venda de coisa futura (soja). Teoria da imprevisão. Onerosidade excessiva. Inaplicabilidade. 1. Contratos empresariais não devem ser tratados da mesma forma que contratos cíveis em geral ou contratos de consumo. Nestes admite-se o dirigismo contratual. Naqueles devem prevalecer os princípios da autonomia da vontade e da força obrigatória das avenças. 2. Direito Civil e Direito Empresarial, ainda que ramos do Direito Privado, submetem-se a regras e princípios próprios. O fato de o Código Civil de 2002 ter submetido os contratos cíveis e empresariais às mesmas regras gerais não significa que estes contratos sejam essencialmente iguais. 3. O caso dos autos tem peculiaridades que impedem a aplicação da teoria da imprevisão, de que trata o artigo 478 do CC/2002: (i) os contratos em discussão não são de execução continuada ou diferida, mas contratos de compra e venda de coisa futura, a preço fixo; (ii) a alta do preço da soja não tornou a prestação de uma das partes excessivamente onerosa, mas apenas reduziu o lucro esperado pelo produtor rural; (iii) a variação cambial que alterou a cotação da soja não configurou um acontecimento extraordinário e imprevisível, porque ambas as partes contratantes conhecem o mercado em que atuam, pois são profissionais do ramo e sabem que tais flutuações são possíveis. 5. Recurso especial conhecido e provido.”[7]

E nem poderia ser diferente. O Poder Judiciário define padrões de conduta para a sociedade e, ao assim fazer, impacta diretamente na Economia.

  1. sobremaneira no seio de um Estado Democrático de Direito e uma sociedade estável a previsibilidade dos padrões de conduta, bem como um Poder Judiciário consistente e coerente em suas decisões[8], de modo a garantir a pacificação social e a segurança jurídica.

 Especificamente sobre a perspectiva da segurança jurídica nas decisões, o Exmo. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva trouxe importante lição quando do julgamento do Recurso Especial 1.811.953 – MT (2019/0129908-0), ao dedicar um capítulo do voto ao tema, demonstrando que a insegurança jurídica pode gerar efeitos em cadeia, desestruturando todo o sistema de produção e elevando encargos de forma generalizada[9].

A estabilidade econômica e política, a existência de garantias e de segurança jurídica contribuem, quer para o aumento do número e do valor das transações econômicas, quer para atrair novos investimentos. Disso deriva o crescimento da Economia de um país e o bem estar de seu povo.  O Poder Judiciário, ao garantir o respeito à lei e o cumprimento das obrigações e dos negócios jurídicos firmados de boa-fé, estará cooperando grandemente para tal desiderato.


[2] Art. 7º. Não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos arts. 317, 478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou a substituição do padrão monetário.

[3]Art. 421-A.  Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que:  

I – as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução;  

II – a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e 

III – a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada

[4]Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação

[5] O contrato de compra e venda a termo elide, portanto, os riscos inerentes à oscilação de preço do produto a que o vendedor está exposto. A prefixação dos preços traz maior previsibilidade e segurança ao vendedor, que não mais se sujeita às variações do mercado. Através desse tipo de contrato, o vendedor transfere o risco da oscilação do preço ao comprador, exceto se, igualmente ao vendedor, já de antemão travar a revenda do produto no futuro, já a um preço predeterminado, restando caracterizado o efeito em cadeia desse tipo de contratação.

[6]REsp 803.481/GO, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 28/06/2007 – grifos do autor

[7] REsp 936.741/GO, Rel. Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 03/11/2011 – grifos do autor

[8] Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.

§ 1º Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante.

§ 2º Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.

[9] REsp 1.811.953/MT, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 06/10/2020

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  • é presidente e coordenador da Comissão de Pós Graduação Stricto Sensu do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes) e Sócio do Grandino Rodas Advogados. Desembargador Federal aposentado do TRF-3 e ex-reitor da USP. Professor Titular da Faculdade de Direito da USP, da qual foi diretor, mestre em Direito pela Harvard Law School, mestre em Diplomacia pela The Fletcher School e Mestre em Ciências Político-Econômicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

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