Opinião

As recomendações da OCDE quanto ao crédito do consumidor e o PL 1805/21

Autores

  • Claudia Lima Marques

    é professora e diretora da Faculdade de Direito da UFRGS doutora pela Universidade de Heidelberg mestre em Direito pela Universidade de Tübingen (Alemanha) advogada relatora-geral da Comissão de Juristas e ex-presidente do Brasilcon.

  • Fernando Rodrigues Martins

    é professor da graduação e da pós-graduação da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) mestre e doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) membro do Ministério Público do Estado de Minas Gerais e presidente do Brasilcon.

1 de julho de 2021, 17h47

Em 2019, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) referendou a Recomendação do Conselho de Proteção ao Consumidor na área do crédito ao consumo (Recommendation of the Council on Consumer Protection in the field of Consumer Credit  OCDE/Legal/0453), substituindo a anterior manifestação de 1977 sobre o mesmo tema. O documento fixa diretrizes de boas práticas a fim de que todos aderentes tomem medidas relacionadas à proteção dos consumidores em relação às transações que envolvam crédito ao consumo. Trata-se de significativa deliberação coletiva de nível internacional cuidando dos consumidores de crédito, somando-se aquelas já conhecidas do Banco Mundial em 2012.

Pretendemos aqui apontar a ampla convergência das linhas centrais sugeridas pela OCDE com aquelas definidas no Projeto de Lei (PL) 1805/21 (que dispõe sobre a prevenção e o tratamento ao superendividamento), justamente para instituir no Brasil práticas de crédito responsável, em dois momentos distintos, a saber: os motivos da iniciativa e as soluções propostas.

Entre as causas subjacentes da mencionada recomendação sobre crédito responsável alinham-se: a importância do crédito ao consumidor para financiamento de compras de bens e serviços; a verificação da crescente ausência de informações claras e suficientes ao consumidor sobre os termos e condições dos contratos de crédito, geralmente levados à celebração mediante publicidade enganosa ou omissiva; a necessidade em melhorar a qualidade dessas informações, como também promover a proteção contratual contra práticas e cláusulas abusivas para garantir a economia dos consumidores.

Mas não só. O documento ainda expressamente se refere à adoção de práticas responsáveis de crédito para evitar problemas de reembolso e o superendividamento dos consumidores, expressando a óbvia indispensabilidade de serem observados os direitos fundamentais de privacidade dos consumidores e a boa-fé e lealdade nas concessões do crédito ao consumo. Por fim, nas questões relativas ao crédito ainda chama a atenção para os consumidores com vulnerabilidade agravada considerando as características pessoais (deficiência, idade, sexo, baixa renda ou escolaridade, educação formal e financeira), preconceitos comportamentais (excesso de confiança, impulsividade, limitações cognitivas) e condições de mercado (desemprego, redução de renda, falhas do mercado etc.).

Se observamos o PL 1805/21, que agora aguarda a sanção do presidente da República, veremos que essas mesmas preocupações ocuparam não apenas os pesquisadores do grupo de pesquisa do programa de pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) nos idos de 2003, responsável por trabalho empírico e pioneiro sobre o superendividamento, mas também o próprio Senado Federal, por seus membros e pela comissão de juristas formada em 2012, quando ainda PLS 283.

A aderência temática é nos seguintes pontos: ampla assimetria de informação nos contratos de crédito (boa-fé); situação de extrema fragilidade dos consumidores endividados, especialmente considerando os acidentes da vida, tais como desemprego, divórcio, óbito etc. (vulnerabilidade/hipervulnerabilidade); avanço na proteção contratual dos consumidores (imunização às práticas e cláusulas abusivas e desleais); necessidade de proteção suficiente aos direitos fundamentais dos consumidores (privacidade e dados pessoais); garantia da esfera econômica dos consumidores (mínimo existencial); inserção de políticas públicas para aqueles que não conseguem adimplir os inúmeros débitos assumidos de boa-fé sem prejuízo dos víveres mais básicos (superendividamento).

Na perspectiva das soluções propostas, a recomendação da OCDE aborda dez eixos princiológicos e distribuídos, aconselhando aos países aderentes a introdução de legislação e regulação interna aos contratos de crédito ao consumo; deveres de proteção do Estado; direitos do consumidor de crédito; transparência na concessão, na execução e no momento posterior do crédito; educação financeira; adoção de programas de integridade e compliance; prevenção a fraudes; tutela de dados pessoais e privacidade; direito de petição dos consumidores; e, por fim, concorrência para melhoria das condições de escolha do consumidor.

Valem alguns desdobramentos em separado dessa recomendação nesses aspectos. A introdução de legislação, regulação e supervisão acerca do crédito de consumo deve permitir revisões periódicas para suprir lacunas e intensificar a melhoria na análise de riscos. A instituição de órgãos públicos supervisores qualifica-se com poderes de sanção para fiscalização do mercado de crédito e proteção dos consumidores. O tratamento equitativo e justo aos direitos dos consumidores se faz mediante princípios que versem sobre aconselhamento, inadimplemento, remuneração, fixação de prazo de reflexão e arrependimento quanto ao crédito ao consumo contratado, bem como com regras proibitivas às práticas e cláusulas abusivas, discriminações por critérios pessoais e sociais, custos de cobrança, vantagem excessiva em encargos etc.

O capítulo sobre transparência e divulgação acerca do crédito é caudaloso, em especial quanto à informação obrigatória sobre taxas, encargos, penalidades e principais riscos, em todas as fases contratuais, exigindo clareza nas tomadas de decisões, com amplo esclarecimento a respeito do custo do crédito, e um dever de avaliação do crédito para aquele consumidor em especial.

Destarte, os planos estrutural e funcional do PL 1805/21 agregam-se no que respeitam às soluções encaminhadas, totalmente às diretrizes da recomendação da OCDE. Senão vejamos. Na parte geral, fixa entre as políticas públicas a prevenção e tratamento ao superendividamento (artigo 4º), institui mecanismos e núcleos extrajudiciais para execução dessas políticas (artigo 5º), insere entre os direitos básicos a prática do crédito responsável, a "garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento" e a "preservação do mínimo existencial" inclusive na "concessão de crédito" (artigo 6º).

A parte dispositiva material do PL 1805/21 contou com coerente prevenção ao fenômeno do superendividamento, já que além da conceituação decorrer de texto legal (artigo 54-A), exigindo-se boa-fé por parte do vulnerável, ainda dispôs sobre as informações essenciais e cabais sobre o crédito (artigo 54-B), vedando a prática de oferta hiperbólica (artigo 54-C), bem como disciplinando a avaliação do risco do crédito (artigo 54-D), os limites responsáveis ao crédito consignado e o direito de arrependimento por sete dias nesse tipo de crédito (artigo 54-E), os contratos coligados e a solidariedade da cadeia de fornecedores (artigo 54-F) e a inserção de práticas abusivas relativas ao crédito (artigo 54-G).

Já a parte dispositiva processual do PL 1805/21, para possibilitar a exata proporcionalidade entre deveres de prestação do Estado com os direitos fundamentais dos consumidores (e reflexamente aos fornecedores), estabeleceu a cultura pelo adimplemento, contudo na medida do consumidor superendividado, de forma solidária, permitindo-se a conciliação extrajudicial e com escalonamento dos débitos do devedor de boa-fé, mediante plano discutido com todos os credores, mas sem perdão de dívidas.

Revela, por isso, a sobriedade do PL 1805/21 porque contém igualmente forte proposta de desjudicialização na medida em que convoca os órgãos legalmente membros do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor a presidir as conciliações, sem a necessidade de impactar o Poder Judiciário.

Visível que não há diferenças de conteúdo entre a proposição nacional e a recomendação da OCDE justamente sobre crédito ao consumo. Aliás, em termos de preocupação também com o mercado a iniciativa interna, como já frisado, cuidou de forma muito clara, debatida e transparente em estabelecer entre as diretrizes fundantes: 1) a boa-fé do consumidor superendividado; e 2) a exigência do pagamento.

As demais diretrizes  prevenção aos riscos do superendividamento; vedação às ofertas hiperbólicas de crédito; acesso ao crédito responsável como direito básico; proteção e regulação do mínimo existencial; proibição de assédio ao consumidor; possibilidade de tratamento do superendividamento especialmente por modelo de desjudicialização  se afinam sem reduções à iniciativa internacional.

Há razões de sobra para a sanção integral do PL 1805/21.

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    é professora e diretora da Faculdade de Direito da UFRGS, doutora pela Universidade de Heidelberg, mestre em Direito pela Universidade de Tübingen (Alemanha), advogada, relatora-geral da comissão de juristas e ex-presidente do Brasilcon.

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    é professor da graduação e da pós-graduação da Universidade Federal de Uberlândia, mestre e doutor em Direito pela PUC-SP, membro do Ministério Público do Estado de Minas Gerais e presidente do Brasilcon (2021-2023).

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