Opinião

Considerações sobre o mercado de tokenização

Autor

  • Fernando Lopes

    é advogado membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico consultor jurídico do projeto Cyberskies e professor da pós-graduação em Investimentos e Blockchain da EA Banking School.

1 de julho de 2021, 19h04

Introdução
Neste artigo, por um lado, argumenta-se que não há justificativa legal ou lógica para regulamentar o que se convencionou chamar de tokenização; por outro, que os processos de tokenização podem contribuir com a desregulamentação do mercado de valores mobiliários, desde que observados princípios de regulamentação by design  trazidos pelo protocolo do bitcoin [1], a exemplo da publicidade dos dados, do seu não repúdio, de sua integridade e correção.

Em outros termos, os processos de tokenização possuem potencial para concretizar um objetivo fundamental dos mercados de valores mobiliários, inalcançável pelo atual marco regulatório fundado na fiscalização autárquica centralizada, ou seja, os processos de tokenização podem ser o meio para realização dos seguintes princípios da governança corporativa: fairness, accountability, responsibility and transparency.

O objetivo do esclarecimento aqui proposto é contribuir também com o debate atinente à necessidade ou não de regulamentação do mercado de tokenização de bens e direitos, de modo a evitar a criação de normas jurídicas dissociadas da realidade social e econômica.

A estrutura lógica deste artigo é a seguinte: em um primeiro momento, procede-se ao estabelecimento da distinção entre o objeto da tokenização e o processo de tokenização. Posteriormente são expostas as justificativas legais para a atual regulamentação do mercado de valores mobiliários.

O artigo finaliza com diretrizes legislativas que, uma vez observadas, podem contribuir com o desenvolvimento econômico, tecnológico e social, de modo a evitar que lobbies, especialmente por parte de corretoras centralizadas, destruam o mercado de tokens no Brasil, causando mera substituição do oligopólio bancário, por outro de criptoativos.

1) Diferença entre objeto e processo de tokenização
O primeiro princípio epistemológico fundamental para definir os critérios de classificação dos criptoativos é a diferença entre objeto e processo, isto é, tokenização é um processo inconfundível com um objeto que porventura possa vir a ser tokenizado.

Tal distinção não se trata de pedantismo ou idiossincrasia terminológica, mas de algo de extrema importância para a correta contextualização daquilo que está em jogo diante das inúmeras proposições de projetos de lei atinentes ao tema [2].

Com efeito, tokenização é a representação de um objeto em uma estrutura de dados conhecida como blockchain, existente em uma rede distribuída denominada peer-to-peer. Logo, trata-se de um processo eminentemente tecnológico que em nada se relaciona, ao menos não de forma direta, com conceitos jurídicos ou econômicos.

Senão vejamos. Recentemente um par de meias foi tokenizado [3], e muito embora o valor pelo qual esse par tenha sido adquirido possa atribuir conteúdo econômico ao processo de tokenização, o fato é que absolutamente tudo pode ser representado por meio de um token, que é o produto resultante de um processo de tokenização.

Portanto, evidente que a discussão sobre regulamentação da tokenização é um completo nonsense, do mesmo modo que seria um completo absurdo regulamentar o modo como os cidadãos salvam seus arquivos pessoais, ou fazem desenhos para representar algo.

Por outro lado, entre os objetos que podem ser tokenizados, isto é, representados por meio de tokens, certo é que alguns apenas podem ser emitidos ou distribuídos mediante autorização. Tal é o caso, por exemplo, dos valores mobiliários, regulamentados pela Lei 6.385, de 7 de dezembro de 1976, e por normas infralegais emitidas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), autarquia submetida a regime especial.

Porém, no caso da tokenização de objetos cuja comercialização, emissão, distribuição etc., seja regulamentada, a questão muda completamente de perspectiva, e longe de clamar por regulamentação clama por desregulamentação. Explico.

2) O fundamento legal da regulamentação do mercado de valores mobiliários
Toda regulamentação está alicerçada em alguns pressupostos fundamentais, que variam conforme o objeto a ser regulado.

No que se refere à regulamentação do mercado de valores mobiliários, tais justificativas podem ser encontradas especialmente no Projeto de Lei das Sociedades por Ações, elaborado com base nas diretrizes fixadas na Exposição de Motivos CDE nº 14, de 25 de junho de 1974, cujos trechos mais reveladores da teleologia legal são os seguintes:

"4  O projeto visa basicamente a criar a estrutura jurídica necessária ao fortalecimento do mercado de capitais de risco no país, imprescindível à sobrevivência da empresa privada na fase atual da economia brasileira. A mobilização da poupança popular e o seu encaminhamento voluntário para o setor empresarial exigem, contudo, o estabelecimento de uma sistemática que assegure ao acionista minoritário o respeito a regras definidas e equitativas, as quais, sem imobilizar o empresário em suas iniciativas, ofereçam atrativos suficientes de segurança e rentabilidade.
 Com o objetivo anteriormente definido — que, afinal, constitui a base institucional das Sociedades Anônimas
 o Projeto busca elaborar um sistema baseado nos seguintes princípios: (…)" (grifos do autor).

Por sua vez, a relação da Comissão de Valores Mobiliários com a lei em comento fica evidente na exposição de motivos da Lei 6.385/76, que dispõe sobre o mercado de valores mobiliários e cria a Comissão de Valores Mobiliários:

"3  O projeto de lei das sociedades por ações pressupõe a existência de novo órgão federal  a Comissão de Valores Mobiliários  com poderes para disciplinar e fiscalizar o mercado de valores mobiliários e as companhias abertas" (grifo do autor).

Portanto, resta claro não só que a Comissão de Valores Mobiliários foi criada em função da lei das sociedades por ações, Lei 6404/76, mas também que seu âmbito de atuação está circunscrito ao fortalecimento do mercado de capitais de risco, bem como ao oferecimento de atrativos suficientes de segurança e rentabilidade aos acionistas minoritários que, em regra, possuem menor poder de fiscalização em relação aos majoritários.

Sendo assim, um dos cernes da questão é saber se os processos de tokenização podem, em alguma medida, fortalecer o mercado de capitais de risco, ou oferecer atrativos de segurança e rentabilidade aos minoritários, de modo a diminuir ou até mesmo eliminar a regulamentação autárquica centralizada, em prol de um novo marco regulatório, by design, e capaz de contribuir com o desenvolvimento econômico, social, e tecnológico do Brasil.

3) Diretrizes legislativas para a desregulamentação dos mercados com base nos princípios de descentralização dos criptoativos
Conforme se observou, a discussão envolvendo questões legais atinentes ao mercado de criptoativos, especialmente de tokenização de bens e direitos, deveria residir mais em prol de uma desregulamentação do que de regulamentação, vistos os benefícios by design oferecidos pela blockchain.

Situação onde, prima facie, seria possível verificar tal regulamentação by design no âmbito do mercado de capitais de risco seriam alguns protocolos das chamadas finanças descentralizadas, onde todo o processo de administração do capital é disciplinado por regras constantes de smarContracts, passíveis de conhecimento e auditoria por qualquer interessado.

Logo, propõe-se como diretrizes legislativas a análise diferenciada de ao menos três casos. O primeiro é o chamado caso das finanças descentralizadas (DeFi), mercado recente, mas onde já é possível encontrar protocolos que cumprem, by design e de forma descentralizada as funções hoje relegadas e mal cumpridas por autarquias centralizadas. Nesse primeiro caso, nada haveria para ser regulamentado, devendo o legislador apenas procurar aprender com essas novas formas de regulamentação, características da quarta Revolução Industrial.

O segundo caso seria analisar em que medida a inclusão de elementos tecnológicos voltados à descentralização em mercados centralizados como o de valores mobiliários poderia eliminar a atuação da CVM, dada a realização de suas funções por meios mais eficientes.

As chamadas sandboxes hoje promovidas pela autarquia podem contribuir sobremaneira para a elucidação desse segundo tipo de casos.

Enfim, caso que demanda atenção das autoridades é o das corretoras centralizadas. Tais corretoras atuam de forma similar aos bancos e os casos de desvios de recursos no Brasil ocorreram no âmbito dessas corretoras, que ainda hoje dominam o mercado de criptoativos no Brasil.

Conclusão
A tokenização não é algo para ser regulamentado, mas um processo com aptidão para promover regulamentação de inúmeros setores centralizados, em prol de uma regulamentação descentralizada by design, como as constantes de alguns protocolos defi.

Ademais, não se pode confundir objetos com processos, não havendo, ao menos até o momento, qualquer necessidade de regulamentar processos de tokenização, devendo-se observar apenas, caso a caso, se o objeto a ser tokenizado (leia-se: objeto de tokenização) já possui sua emissão ou distribuição regulada por alguma lei específica, ou ainda se eventual processo de tokenização teria o condão de afastar a necessidade de regulamentação, caso a ser analisado, inclusive, com base na declaração de direitos de liberdade econômica, Lei 13.874 de 2019.

 


[1] Cf. Department for Digital, Culture, Media & SportCollection (UK): Secure by design: Resources and information relating to the government’s Secure by Design agenda for securing consumer smart devices. Disponível em: https://www.gov.uk/government/collections/secure-by-design. Acesso em 2/8/2020.

[2] Exemplo de projeto que visa regulamentar o mercado de criptoativos, sem maiores debates com a sociedade é o de n° 2140/2021 proposto pelo Deputado Alexandre Frota PSDB/SP, que "dá 180 dias para que o Banco Central e os demais órgãos de controle financeiro, regulamentem as transações em moedas virtuais e dá outras providências". Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node01s1tzawj61unc1a0kege0or1lq18696396.node0?codteor=2025931&filename=PL+2140/2021 acesso em 25/06/2021

[3] Par de meias vira token e já vale quase R$ 1 milhão ao valorizar 1.324.000%. Disponível em: https://br.investing.com/news/cryptocurrency-news/par-de-meias-vira-token-e-ja-vale-quase-r-1-milhao-ao-valorizar-1324000-838340. Acesso em 20/06/2021.

Autores

  • Brave

    é advogado, especialista em processos de tokenização, com graduação tecnológica em internet das coisas, associado fundador do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico, autor do livro fundamentos jurídicos, políticos e econômicos da primeira criptomoeda mundial indígena transcultural, editora Tirant Lo Blanch, 2021, dentre outros, pela mesma e outras editoras.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!