Opinião

A prescrição na hipótese de vício do serviço

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31 de janeiro de 2021, 13h15

Recentemente, houve o julgamento do Processo nº 5036122-51.2019.4.04.7100/RS, no qual se afastou o prazo prescricional quinquenal de uma ação de cunho consumerista. No referido caso, a consumidora teve seu cartão de crédito roubado em 2015, sendo que, imediatamente após verificar terem sido realizadas compras com seu cartão, em 27 de junho, no total de R$ 3.795, esta procedeu ao pagamento da primeira parcela da compra, conforme recomendado pelo banco e, ato contínuo, formulou contestação junto à instituição financeira, em 6 de julho do mesmo ano, ao que o valor pago foi restituído. Ocorre que, nos meses seguintes, as demais parcelas foram cobradas de sua fatura e, em virtude da ausência de pagamento, a consumidora teve seu nome inscrito nos órgãos de proteção ao crédito. Houve o ajuizamento de ação judicial, em 11/6/2019, postulando a declaração de inexistência do débito e a condenação da instituição financeira em danos morais.

No caso concreto, o juiz da causa aplicou o artigo 206, §3º, V, do Código Civil, reconhecendo a prescrição trienal ao caso. Em recurso, a parte autora alegou que o prazo prescricional correto seria o de cinco anos, previsto no artigo 27 do Codecon. Contudo, a 5ª Turma Recursal do Rio Grande do Sul manteve inalterada a sentença, reconhecendo ser indubitável que a relação havida entre autora e banco é de consumo, porém, afirmando que o caso não trata de reparação de danos causados por fato do produto ou do serviço, requisito essencial para a incidência do referido dispositivo ao caso.

Com todas as vênias cabíveis, cabe-nos discordar do entendimento do Judiciário gaúcho, uma vez que o núcleo de discussão dos autos era a declaração de nulidade das compras fraudulentas e a indenização pelo fato do serviço, o que evoca a incidência do prazo quinquenal do Codecon, como também, se fosse o caso, aplicar corretamente a teoria do diálogo das fontes para o justo deslinde da quaestio iuris.

1) Do fato do serviço e do dever de indenizar
Muito embora o Codecon diferencie as situações do fato do serviço (os chamados acidentes de consumo) com o vício do serviço (inadequação de qualidade), entendo que especificamente no caso da prestação de serviços, a diferenciação entre ambas as situações é quase nula, na medida em que, além das disposições dos artigos 14 e 20 em muito se assemelharem, na prática, toda situação de vício do serviço acarreta invariavelmente num dano material, moral ou estético ao consumidor.

Vejam, por exemplo, a hipótese de um plano de saúde que nega internação ao seu usuário, ou a situação de empréstimos consignados não contratados pelo correntista, ou mesmo os casos de compras fraudulentas. Em todas essas situações há, de fato, um dano, seja de ordem moral ou econômica, seja de intensidade leve, moderada ou grave. Todo vício de serviço esconde um fato, um acidente de consumo, gerando, assim, o dever de indenizar.

Outrossim, o artigo 14 ao impor a responsabilidade dos fornecedores de serviços decorrente de acidentes de consumo, estabelece que serviço defeituoso é aquele que não oferece a segurança que dele razoavelmente se espera, ou seja, dentro da margem de entendimento do que se espera como razoável. Já o artigo 20, ao tratar do vício do serviço, dispõe que se considera impróprio ao consumo o serviço que se mostra inadequado para os fins que dele razoavelmente se podem esperar, bem como aqueles que não atendam as normas de prestabilidade. Os conceitos de prestabilidade de ambos os dispositivos é, se não idênticos, bem próximos e, portanto, a dicotomia entre fato e vício do serviço acabam por dar ensejar ao mesmo resultado prático: a justa indenização do consumidor.

Nesse sentido, o jurista Zelmo Denari [1], na obra "Código de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto", defende que "a responsabilidade pelo fato do produto ou do serviço decorre da exteriorização de um vício de qualidade, vale dizer, de um defeito, capaz de frustrar a legítima expectativa do consumidor quanto à sua utilização ou fruição. Existe uma tendência doutrinária que sepreocupa em estabelecer uma dicotomia entre vício de qualidade e defeito. A nosso aviso, a dicotomia não existe, pois essas expressões implicam reciprocamente. Tanto posso aludir ao vício de qualidade como um defeito de um produto, como ao defeito como um vício de qualidade do mesmo produto. Entende-se por defeito ou vício de qualidade a qualificação de desvalor atribuída a um produto ou serviço por não corresponder à legítima expectativa do consumidor, quanto à sua utilização ou fruição (falta de adequação), bem como por adicionar riscos à integridade (periculosidade) ou patrimonial (insegurança) do consumidor ou de terceiros".

No caso em comento, poderíamos enquadrar o fato das compras fraudulentas com cartão de crédito roubado como sendo um vício do serviço, pelo simples fato deste não ter atendido às justas expectativas da autora e pela ausência prestabilidade quanto ao cancelamento das compras. O banco, após devidamente informado sobre o furto e a ilegitimidade das compras, não adotou de imediato as providências necessárias à proteger sua correntista. De igual modo, o caso também configura num fato (defeito) do serviço bancário, na medida em que houve a caracterização do dano, em decorrência da permissibilidade do banco em manter as cobranças indevidas e, ainda, inscrever o nome da consumidora nos órgãos de proteção ao crédito, causando um prejuízo de ordem material e moral àquela.

O Codecon, em seu artigo 8º, estabelece o dever de segurança das relações consumeristas, a fim de que o consumidor seja protegido dos riscos ditos anormais dos contratos, isto é, quanto àqueles que ultrapassam o limite do razoável.

Os contratos bancários que versem sobre conta corrente ou poupança têm como objeto, justamente, o depósito, a conservação e a segurança dos valores confiados ao banco. Nesse sentido, salientamos o voto do e. ministro Ruy Rosado de Aguiar, nos autos do REsp nº 106.888-PR [2], no qual este leciona que "em suas operações passivas, o banco presta serviços como depositário (…). Além disso, no contrato de depósito, o banco fornece produtos; o principal deles é o rendimento, e acessórios são as outras vantagens, benefícios e preferências que o estabelecimento concede a quem o escolhe para depositário. Essa escolha se dá em típica situação de consumo, na qual o cliente leva em consideração a segurança do negócio, o atendimento que lhe é dispensado, a qualidade da informação e outras vantagens bancárias oferecidas aos titulares das contas" (grifos do autor).

Há, por toda evidência, um dever anexo de agilidade, de efetividade e de segurança que, no caso discutido deveria se ultimar no ato do bloqueio do cartão, obstaculizando qualquer operação fraudulenta. Tal, entretanto, foi negligenciado pelo banco, viabilizando, assim, as compras do estelionatário e, igualmente, as cobranças indevidas contra a consumidora, acarretando-lhe prejuízos. O serviço bancário, portanto, foi nitidamente falho quanto ao dever de prestabilidade e segurança.

Dessa falha nasce o direito à pretensão do consumidor em ver adimplida a prestação do banco e, por sua vez, o dever de ressarcir do fornecedor, conforme estabelecem os artigos 14 e 20 do Codex Consumerista, os quais estabelecem o direito básico à justa indenização. Indenização pressupõe danos. Danos exigem prejuízo. Prejuízo, uma vez comprovado, decorre da configuração de um dos elementos culposos que dão ensejo à reparação. Sem estes, não há pretensão reparatória.

A reparação pecuniária é imprescindível ao justo equilíbrio do contrato e à figura do consumidor, constituindo-se verdadeiramente num direito básico omitido no caso objeto do presente estudo, na medida em que acaba agravando a situação de vulnerabilidade técnico-jurídica do consumidor. Como bem pondera o eminente Silvio de Salvo Venoza [3], "a falta de indenização é elemento de desequilíbrio social". Isto é fato!

2) Da prescrição do Direito quanto ao vício do serviço: aplicação da teoria do diálogo das fontes
Já demonstramos que ambas as decisões — tanto de primeira quanto de segunda instâncias — são equivocadas, na medida em que ignoraram o dano — ou fato do serviço — da consumidora pelas cobranças indevidas e por ignorarem tanto a contestação das compras, quanto o aviso do furto do cartão. Com isso, a demanda atrai a incidência do prazo prescricional previsto no artigo 27 do Codecon.

Inaplicável a incidência da prescrição do artigo 206, §3º, V, do Código Civil, na medida em que esta se refere à chamada responsabilidade aquiliana, não caracterizada, a nosso sentir e s.m.j., na espécie.

Uma vez previsto prazo prescricional específico para a espécie, é dever do órgão judicante o reconhecimento e aplicação deste, uma vez que a Lei nº 8.078/90 se configura numa norma de ordem pública e aplicação cogente. Sua importância para o correto e adequado funcionamento da ordem econômica, visando sempre à existência digna e à justiça social, é incontestável.

Inobstante, ambas as instâncias deveriam ter adotado o princípio da especialidade entre as leis, como também, o princípio do diálogo das fontes, harmonizando as disposições legais aplicáveis simultaneamente ao caso, a fim de conferirem maior proteção à figura do consumidor. A ilustre jurista Cláuda Lima Marques [4] defende que a aplicação do princípio do diálogo das fontes deve ter como escopo uma "aplicação simultânea, coerente e coordenada", visando a "soluções harmonizadas e funcionais".

Como já defendemos, o caso demanda a aplicação do prazo quinquenal, diante da configuração patente de um acidente de consumo, o qual ocasiona inegavelmente danos ao consumidor.

Entretanto, fosse o caso de errar, que se erre acertando, adotando um prazo prescricional adequado para a hipótese do vício do serviço. Assim, uma vez devidamente formalizada a reclamação dentro do prazo decadencial do artigo 26 do Codecon e ocorrendo omissão na resposta do fornecedor, dever-se-ia adotar, como norma subsidiária, o artigo 205 do Código Civil, a fim de fixarmos um prazo prescricional para o ingresso da ação reparatória. Isso porque os fatos discutidos nos autos trazem à baila a responsabilidade eivada de inadimplemento contratual, ainda que parcial, qual seja: da falha de segurança configurada pela falta de bloqueio célere e efetivo do cartão furtado, a manutenção das cobranças e a inscrição indevida [5] do nome da consumidora, fazendo surgir, portanto, um direito de cunho eminentemente pessoal, inclusive já reconhecido pelo próprio Superior Tribunal de Justiça, conforme precedente insculpido no REsp nº 234.725-RJ de relatoria do e. ministro Waldemar Zveiter.

Importante pontuarmos que a Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro, em seu artigo 5º, estabelece que, ao aplicar a lei, o intérprete da lei deve obrigatoriamente levar em consideração os fins sociais a que ela se destina e as exigências do bem comum. De igual sorte, ignorar referida determinação é deixar à míngua milhares de consumidores, criando perigoso precedente contra legem, relegando os consumidores ao papel de meros coadjuvantes nas relações de consumo, quando estes deveriam ser seus protagonistas.

Fere-se expressa disposição no sentido da proteção não apenas do equilíbrio do contrato, mas também da segurança e dos legítimos interesses sócio-econômicos dos consumidores, criando margem a que os bancos sejam escusados do dever de responsabilidade, com base em prazo mais exíguo que o previsto em lei.

3) Conclusão
Por fim, importante termos em mente que a Constituição Federal de 1988 estabelece, como direito fundamental, a proteção do consumidor no plano econômico, sendo o Codecon e outras normas subsidiárias e com ele compatíveis, como o Código Civil e a LINDB, importante meio de concretização desta garantia constitucionalmente estabelecida.

A Lei Magna, adotando um viés sócio-intervencionista nas relações privadas, de modo a trazer maior objetividade à boa-fé contratual, a dar realce ao chamado fim social do contrato, a equidade e segurança entre as partes, tem como um dos agentes executores da política pública de proteção do consumidor, estabelecida no artigo 4º e 5º do Codecon, o próprio Poder Judiciário, o qual tem a atribuição de rever, revisar e (re)equilibrar as relações, sempre visando o bem-estar, o atendimento aos fins sociais da norma, às justas expectativas do consumidor, sua segurança e o equilíbrio das relações de consumo.

Concluímos, portanto, que as decisões que aplicaram prazo mais exíguo e prejudicial ao consumidor, não só se configuram em erros in judicando, pervertendo a política pública protecionista estatuída pelo Codecon, como acabam por fazer pender a balança da justiça muito mais em benefício do fornecedor, engrandecendo-o perigosamente nas relações de consumo, do que servindo de contrapeso ao poderio econômico dos bancos em comparação à vulnerabilidade múltipla (técnica, jurídica, econômica e social) do consumidor.

 


[1] GRINOVER, Ada Pellegrini [et al.]. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR COMENTADO PELOS AUTORES DO ANTEPROJETO. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, Pág. 183.

[2] REsp 106.888/PR, Rel. Ministro CESAR ASFOR ROCHA, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 28/03/2001, DJ 05/08/2002, p. 196

[3] VENOSA, Silvio de Salvo. DIREITO CIVIL: TEORIA DAS OBRIGAÇÕES E TEORIA GERAL DOS CONTRATOS. 5ª ED. São Paulo: Atlas, 2005, pág. 508.

[4] MARQUES, Cláudia Lima. CONTRATOS NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR: O NOVO REGIME DAS RELAÇÕES CONTRATUAIS. 5ª Ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, pág. 664.

[5] A jurisprudência pátria já possui entendimento consolidado quanto a incidência de dano in re ipsa, nos casos de inscrição indevida do nome do consumidor, conforme diversos precedentes do E. STJ, a saber: REsp 1.647.795-RO, AgInt no AREsp 896.102-RJ, AgRg no AREsp 737.063-RS, AgRg no AREsp 460.972-RS, AgRg no AREsp 479.011-SP.

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