Opinião

A inconstitucional vinculação de lançamento por declaração de IPTU no Rio

Autor

  • Paula Stemberg

    é mestra em Direito do Estado pela UFPR advogada professora universitária licenciada e conselheira na Junta de Recursos Administrativos-Tributários da Prefeitura Municipal de Curitiba (PR).

31 de janeiro de 2021, 15h17

Recentemente nos manifestamos neste canal sobre o famigerado Decreto 48.378 do município do Rio de Janeiro, vigente desde o dia primeiro de janeiro deste ano, e que muito tem preocupado as pessoas contribuintes daquela municipalidade. ("O atípico lançamento tributário de IPTU no município do Rio de Janeiro"  16 de janeiro de 2021 [1])

Naquela oportunidade atentamos para a propositura de uma nova modalidade de lançamento tributário a partir da qual o IPTU deixa de ser constituído pelo lançamento de ofício, realizado pela própria prefeitura, e passa a ser constituído pelo lançamento por declaração, realizado pelo própria contribuinte.

Indicamos a sobrecarga que essa mudança figura ao contribuinte, alertando para a necessidade de um tratamento diferido àqueles que terão dificuldades no cumprimento desse dever instrumental, o que significa a própria dificuldade de acesso a internet, equipamentos eletrônicos e ainda ao próprio preenchimento da Declaração Anual de Dados Cadastrais (DeCAD), que podem, em última análise, conferir penalidades contra esses contribuintes.

Alertamos em linhas finais para a impossibilidade de se admitir constitucionalidade e legalidade a dois aspectos em especial: 1) ao instrumento normativo que vincula a obrigação instrumental; 2) àquilo que denominamos de um eventual enriquecimento ilícito para a Administração Pública.

Dedicaremos este artigo ao primeiro desses tópicos.

É o artigo 113, do CTN, que apresenta dois tipos de obrigação relativamente à tributação:

"A obrigação tributária é principal ou acessória".

A obrigação principal, de acordo com o parágrafo 1º:

"(…) Surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente".

Embora a obrigação principal tenha relação com a hipótese de incidência, ou, na linguagem do CTN, com o fato gerador, é preciso lembrar que ela não surge de imediato contra o contribuinte, mas a partir do momento em que o crédito pertencente ao ente tributante é constituído — ou seja, a partir do lançamento tributário. Do mesmo modo, lembramos que embora o dispositivo expressamente considere a penalidade pecuniária como uma obrigação principal, devido à violação ao conceito impresso no artigo 3º do CTN [2], a penalidade pecuniária não é a obrigação principal do imposto, porque imposto não é sanção de ato ilícito.

O dever instrumental é denominado no código como obrigação acessória, e sobre ele dispõem os parágrafos 2º e 3º, ainda do artigo 113, do CTN:

"§2º. A obrigação acessória decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos.
§3º. A obrigação acessória, pelo simples fato da sua inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente à penalidade pecuniária".

A expressão "obrigação acessória" é indicada pela doutrina como inadequada. De acordo com Paulo de Barros Carvalho [3], a "obrigação" significa a existência de uma relação jurídica que tem como objeto um dever, que remete à relação jurídica cujo objeto é uma prestação de natureza patrimonial, como se sabe, a obrigação acessória não estabelece um dever pecuniário, de natureza patrimonial, mas, sim, um dever de fazer. Indica-se, ainda, como inadequada a expressão ao identificar como obrigação o dever dessa natureza porque não é passível de conversão, quando do descumprimento, em prestação pecuniária. Por isso, a obrigação acessória também é denominada de "dever instrumental", ou "dever formal". Ou ainda — considerando que também se denominam "obrigações" aqueles deveres estabelecidos por normas cogentes, impostas pelo Estado, ainda que determinando um dever moral ou simplesmente não pecuniário, não passível de conversão em prestação pecuniária — "obrigação instrumental".

O parágrafo 3º sinaliza para uma "transmutação" ou "conversão" da obrigação instrumental à obrigação principal, no caso de sua inobservância pelo contribuinte. No mesmo sentido, não é possível imaginar que a penalidade pecuniária decorrente do não cumprimento da obrigação originária se transmute em obrigação tributária, principal, pelo qual evocamos, novamente, o artigo 3º do próprio CTN, que define o tributo a partir da exclusão da hipótese de que ato ilícito seja o seu fato gerador. Ademais, o dever jurídico tributário não cumprido é o fato gerador da sanção, mais uma vez, não o é do tributo.

Confere-se também, retornando ao parágrafo 2º do artigo 113, do CTN, que outra expressão foi adotada de forma não ajustada pelo legislador. Diz-se que a obrigação instrumental decorre da "legislação tributária". Mas o que seria esta legislação tributária? Uma lei, complementar, orgânica, decorrente da atividade do legislativo, ou um ato normativo, decorrente da atividade do executivo, da Administração Pública?

Parece-nos que, em que pese o próprio CTN identifique como legislação tributária as leis, tratados, convenções internacionais, decretos e normas complementares que versem em todo ou parte sobre tributos e relações jurídicas a ela pertinentes, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso II, positivador do princípio da legalidade, impede que qualquer vinculação de obrigação acessória (ou outra qualquer) ocorra, senão mediante lei, ao determinar que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer senão em virtude de lei. E é nesse sentido que marcantes pensadores da doutrina tributária nacional já se manifestaram: "O fato gerador da obrigação acessória também decorre de lei" [4]; "(…)a obrigação acessória constitui uma obrigação positiva ou negativa (de fazer ou não fazer), que só pode ser imposta mediante previsão legal" [5]; "Por força do princípio da legalidade, (…), também os deveres instrumentais tributários só podem advir de lei (lato sensu) [6], ou seja, não só a que emana do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas, das Câmaras Municipais e da Câmara Legislativa (lei stricto sensu), como também, as leis delegadas e as medidas provisórias (…)" [7].

Portanto, apenas a lei pode vincular o dever instrumental, que é, nesse caso, o dever de apresentar na data estipulada pelo município, a Declaração Anual de Dados Cadastrais (DeCAD) relativamente ao IPTU.

Porém, ainda que o Código Tributário Municipal do Município do Rio de Janeiro estabeleça a possibilidade de que o lançamento por declaração seja uma das formas possíveis de constituição do crédito tributário (artigo 63, §2º, 4), os artigos 68 e 69 da mesma lei dispõem sobre um lançamento que é notificado pela municipalidade aos contribuintes, ou seja, não vincula mediante a lei o dever instrumental de o próprio contribuinte apresentar a declaração.

Ainda que a recente Lei nº 6.810/2020 tenha instituído a forma de atuação por parte da Administração Pública no sentido de disponibilizar informações para esclarecer sobre a legislação tributária do IPTU, por meio de um portal de transparência, a Lei indica que este portal se destina à disponibilização de informações para "garantir ao cidadão as informações necessárias para que possa exercer seu direito à contestação do tributo lançado". Também nesta legislação não fica instituído o dever da contribuinte de apresentar a DeCAD, mas tão somente, a nova forma de apresentação dos dados sobre os lançamentos de ofício realizados pelo município — forma essa que já está sendo utilizada neste ano.

Em resumo, há, aparentemente, apenas um instrumento normativo que objetiva instituir o dever de declaração anual às pessoas físicas e jurídicas contribuintes do município do Rio de Janeiro: o Decreto 48.378. Esse decreto não é hábil para tal finalidade, configurando-se norma frontalmente violadora do princípio da legalidade, que carece de imperativa atuação do próprio Executivo municipal no sentido de sua revogação, ou do Judiciário, para que se impeça a permanência de vigência dessa norma inconstitucional.

 


[2] Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.

[3] Curso de Direito Tributário. 2017, p.310.

[4] DERZI, Misabel; BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 1998, p.708.

[5] BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários ao código tributário nacional. 1998, p.147.

[6] CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 2017, p.379.

[7] Ibdem, p.382.

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