Segunda leitura

O doce sabor da corrupção e o que se pode fazer para torná-lo amargo

Autor

  • Leonardo Resende Martins

    é juiz federal no Ceará professor do Centro Universitário Farias Brito (FB Uni) e formador judicial na Enfam e na Esmafe (TRF da 5ª Região). Possui MBA em Poder Judiciário pela Fundação Getúlio Vargas e Master em Gestão Integrada do Meio-Ambiente pela Universidade de Pavia na Itália e atualmente está cursando o Mestrado Profissional em Direito e Poder Judiciário da Enfam.

31 de janeiro de 2021, 8h01

O noticiário político da última semana foi sacudido com a divulgação dos gastos realizados pelo Poder Executivo federal para a compra de alimentos no ano de 2020. O espanto foi causado tanto pelos elevadíssimos valores despendidos, como pela peculiaridade de alguns dos itens adquiridos. Dentre todos, o que chamou mais a atenção da população e, imediatamente, gerou uma enxurradas de memes nas redes sociais foi o gasto milionário em leite condensado. A crítica ao Governo foi agravada pelo fato de o Portal da Transparência ter permanecido fora do ar por várias horas, logo após a repercussão das notícias, gerando a suspeita de uma ação intencional para prejudicar o acesso às informações.

A referência ao leite condensado, um dos ingredientes mais apreciados pelo açucarado paladar brasileiro, faz lembrar um escândalo de corrupção, ocorrido na Suécia, envolvendo outro doce. Trata-se do famoso Caso Toblerone, que, no ano de 1995, resultou na renúncia da então Vice-Primeira Ministra, Mona Sahlin. O delito dela: utilizar o cartão corporativo para algumas compras pessoais, dentre elas, duas barras do chocolate Toblerone.

Algo semelhante com o que ocorreu aqui no Brasil com Matilde Ribeiro, ex-Ministra da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Em 2008, acuada por forte pressão da opinião pública, ela renunciou ao cargo após a descoberta de gastos no cartão corporativo da ordem de R$ 171 mil, com aluguel de veículos, hospedagem e compras em free shop. Já o então Ministro dos Esportes, Orlando Silva, flagrado com uma compra de uma tapioca no cartão corporativo em Brasília, devolveu a quantia (R$ 8,30) e conseguiu permanecer no governo na ocasião.

Sobre o episódio mais recente do leite condensado, chicletes, batatinhas e outras guloseimas, não convém fazer aqui uma avaliação conclusiva. Qualquer julgamento, a essa altura, seria precipitado. As informações divulgadas ainda são desencontradas e precisam ser verificadas com cuidado. Os órgãos de controle já foram provocados e — espera-se — farão as investigações devidas, cabendo à sociedade, numa saudável vigilância cidadã, acompanhar toda a apuração e cobrar a responsabilização de quem quer que, porventura (ou desventura), tenha feito mau uso do dinheiro público.

Não se pode, contudo, desperdiçar a oportunidade para refletir sobre a importância do controle social dos gastos públicos e do papel central que a transparência possui na construção de uma política anticorrupção eficiente.

A transparência tem sido muito enaltecida pelos pensadores ao longo da história. Platão, na obra "A República", conta o Mito de Giges, um humilde pastor que, ao encontrar um anel mágico que lhe dava o poder da invisibilidade e, consequentemente, o tornava imune a qualquer punição, perverte todos os seus valores morais, indo ao extremo de matar o rei e ficar com a rainha. A ideia da invisibilidade como fator de poder é reforçada por Jeremy Bentham, filósofo inglês que, no Século XVIII, concebeu o projeto arquitetônico do Panóptico, um modelo de penitenciária em que o vigilante era capaz de visualizar todas as celas, sem ser visto por ninguém, assumindo controle total do ambiente.

Também é muito conhecida a lição de Louis Brandeis, brilhante advogado e juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, para quem “a luz do sol é o melhor desinfetante”, a demonstrar a importância de os negócios públicos acontecerem sob o permanente escrutínio da sociedade. Por sua vez, o escritor norte-americano H. L. Mencken, dono de um estilo ácido em suas críticas sociais, afirmava que “a consciência é aquela voz interior que nos adverte de que alguém pode estar olhando”. A conduta moral correta, portanto, seria sempre justificável publicamente.

Vale recordar, por fim, a lição de Norberto Bobbio, filósofo e jurista italiano, que dizia que, dentre as várias definições de democracia, a sua preferida era a que compreendia a democracia como o "poder em público", abrangendo "todos aqueles expedientes institucionais que obrigam os governantes a tomarem as suas decisões às claras e permitem que os governados ‘vejam’ como e onde as tomam". 1

No direito brasileiro, encontra-se no princípio da publicidade, expresso no artigo 37 da Constituição Federal, o fundamento para a exigência de transparência na Administração Pública. No plano legal, a Lei de Acesso à Informação – LAI (Lei n. 12.527, de 18.11.2011) é o mais poderoso instrumento nas mãos do cidadão para fiscalizar os negócios públicos.

A imprensa, sobretudo, tem feito uso frequente das ferramentas previstas na LAI para assegurar o acesso a informações de interesse público. Ao assim proceder, o jornalismo investigativo cumpre um papel de máxima relevância para a democracia, jogando luzes sobre possíveis falhas na gestão da coisa pública e constrangendo as instituições responsáveis pelo controle da máquina administrativa a tomarem medidas para prevenir e reprimir os desajustes que, por desonestidade ou inabilidade gerencial, sangram os cofres públicos.

Uma análise comparativa entre o Índice de Percepção da Corrupção (Transparência Internacional — TI), o Índice de Desenvolvimento Humano (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento — PNUD), o Ranking Mundial da Qualidade da Educação (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico — OCDE) e o Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa (Repórteres Sem Fronteiras – RSF) revela uma correlação direta entre liberdade de imprensa, combate à corrupção e desenvolvimento. Em geral, um país ocupa posição similar em cada um desses rankings. Aqueles que respeitam a liberdade de imprensa e investem em educação e na qualidade de vida do seu povo são os que apresentam melhores desempenhos em termos de integridade pública. No outro extremo, as ditaduras, que tentam blindar o conhecimento sobre como funcionam suas entranhas, estão sempre classificadas entre as nações mais corruptas. É difícil estabelecer o que é causa e o que é consequência, mas é evidente essa interdependência de fatores.

É bem verdade que há um largo espaço para a imprensa aperfeiçoar a cobertura que faz sobre esse tema. O orçamento é um terreno árido, de difícil compreensão pelo leigo. Muitas matérias acabam sendo publicadas repletas de imprecisões, pois, de regra, o jornalista não é familiarizado com conceitos do direito financeiro, nem com o funcionamento rotineiro das engrenagens administrativas. Acaba-se confundindo despesa empenhada com despesa liquidada, item registrado em ata com item efetivamente adquirido, apenas para citar alguns dos equívocos mais comuns. Há também situações em que parece que o objetivo da reportagem é apenas o de fazer alarde, dentro de um disputado jogo de narrativas político-partidárias, e não o de informar adequadamente e propiciar o controle social.

Ainda assim, apesar de todos os seus defeitos, uma imprensa livre é condição indispensável para o desenvolvimento de qualquer nação que se pretenda democrática. Merece, pois, o mais elevado respeito das autoridades e a efetiva proteção das instituições contra os furiosos ataques promovidos por quem quer que, julgando-se inatingível, se sinta contrariado.

Além da transparência, da imprensa livre e de instituições fortes e independentes, a tecnologia pode funcionar como mais uma aliada no enfrentamento à corrupção. Com os avanços no campo da inteligência artificial e do Big Data, vêm sendo desenvolvidos sistemas informatizados de detecção precoce de práticas ilícitas, mediante pesquisa de padrões inadequados de gastos públicos, de transações financeiras suspeitas ou de concessões indevidas de benefícios.

Um exemplo de ferramenta tecnológica anticorrupção é a robô Alice, fruto de uma parceria entre a Controladoria-Geral da União (CGU) e o Tribunal de Contas da União (TCU). A Alice — um acrônimo para "análise de licitações e editais" — utiliza técnicas de mineração de textos e de análise de dados e faz uma varredura automatizada de editais de licitação publicados no ComprasNet, o portal eletrônico de compras do Governo Federal, gerando alertas para potenciais inconsistências que poderiam vir a ensejar prejuízos no futuro.

E se é para falar de doces e de controle social, não se poderia deixar de fazer referência à "operação Serenata de Amor", assim batizada em homenagem ao conhecido chocolate e também em alusão ao já mencionado Caso Toblerone. Trata-se de uma iniciativa da sociedade civil que, valendo-se de recursos de inteligência artificial, criou a robô Rosie, que vasculha os gastos reembolsados pela Cota para Exercício da Atividade Parlamentar (CEAP) de deputados federais e senadores, apontando possíveis irregularidades, que são divulgadas em um perfil no Twitter (@RosieDaSerenata), e estimulando a população a aprofundar a investigação.

Se o gosto da corrupção é saborosamente doce para quem dela se beneficia, cabe à sociedade civil organizada, à imprensa e às instituições democráticas trabalharem, de forma articulada e com inteligência, para fazer com que os agentes corruptos sintam o amargor da punição por seus atos.


1 Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Tradução de Daniela B. Versiani. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 386-387.

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  • é juiz federal no Ceará, professor do Centro Universitário Farias Brito (FB Uni) e formador judicial na Enfam e na Esmafe (TRF da 5ª Região). Possui MBA em Poder Judiciário pela Fundação Getúlio Vargas e Master em Gestão Integrada do Meio-Ambiente pela Universidade de Pavia, na Itália, e atualmente está cursando o Mestrado Profissional em Direito e Poder Judiciário da Enfam.

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