Opinião

Exposição à radiação ionizante: medidas legais para a proteção do trabalhador

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31 de janeiro de 2021, 6h05

Entre os vários temas polêmicos debatidos no cotidiano do ambiente de trabalho das empresas, vem ganhando destaque a exposição ocupacional de trabalhadores à radiação ionizante.

A controvérsia veio mais uma vez à tona quando recentemente o Tribunal Superior do Trabalho promoveu audiência pública para ouvir as diferentes opiniões a respeito da eventual periculosidade da exposição à radiação ionizante de trabalhadores que manuseiem unidades móveis de raio-x.

Ao término da audiência pública, e até o fim do julgamento proferido pelo TST em 2019, ficou claro que o uso da radiação ionizante ainda inspira muita divergência no meio científico, na sociedade civil organizada e entre operadores do Direito. É certo que ainda há uma grande distância a se percorrer antes que os setores envolvidos alcancem um consenso quanto ao assunto, o que realmente atrai o papel pacificador do TST de orientação ao meio social.

Uma das principais fontes da divergência em torno do tema reside na dificuldade de se compatibilizar, de um lado, a questão dos riscos da exposição ocupacional à radiação ionizante e, de outro, os inegáveis e volumosos benefícios trazidos pelo uso dessa tecnologia, que é de emprego fundamental para setores da saúde, energia e segurança pública.

Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT) [1], a radiação ionizante é aquela proveniente de raios cósmicos, raios-x e de materiais radioativos. Recebem o nome de radiações "não ionizantes" aquelas emanadas de raios ultravioleta, ondas eletromagnéticas, raios infravermelhos, entre outros. Ambas se diferenciam pela natureza da energia produzida: distinguem-se a partir da análise da frequência causada pela radiação, considerada sob a perspectiva de sua capacidade de gerar ou não rompimento de um átomo em unidades menores (em íons). Daí a origem das duas classificações científicas: "radiação ionizante" e "radiação nãoionizante".

A exposição à radiação pode ocorrer por fontes externas ou internas. Em se tratando de exposição externa, não há contato propriamente dito entre o indivíduo e o material radioativo. Existe somente uma irradiação de energia produzida que é depositada no corpo humano ao alcançá-lo. A exposição interna, a seu turno, ocorre mediante a ingestão, inalação, injeção ou absorção de materiais radioativos pelo indivíduo. Tanto uma como outra forma de exposição podem gerar efeitos sobre o corpo inteiro ou apenas parte dele.

Em decorrência do amplo emprego da radiação ionizante como insumo de atividades específicas, estima-se que o risco de exposição ocupacional é maior em profissionais que atuem nas áreas da radiografia, mamografia, tomografia, radioterapia, medicina nuclear, braquiterapia, energia nuclear e armamento nuclear. O efeito geral causado pela exposição à radiação é o depósito de energia nos tecidos do corpo humano, o que, por sua vez, pode levar à destruição ou a deformidades das células [2]. Entre os principais resultados causados pela absorção de radiação ionizante está a propensão a moléstias relacionadas a cânceres.

Segundo o Instituto Nacional do Câncer (Inca) [3], o risco de desenvolvimento da doença é acentuado à medida que crescem os níveis de exposição ao material radioativo (dose e duração). Outros fatores relacionados à idade do indivíduo e à sensibilidade do tecido humano também se somam à equação para avaliar qual o grau de propensão de desenvolvimento da doença após a concretização da exposição. Para controlar esse risco, recomenda-se o gerenciamento dos elementos: tempo, distância e blindagem [4].

Desde o primeiro experimento com o uso das bombas atômicas e posteriores acidentes no curso da exploração nuclear das décadas passadas, os efeitos da exposição humana a radiações ionizantes são foco de intensa preocupação no âmbito global. Para garantir o uso proveitoso e seguro da radiação ionizante, existem mais de 26 organizações ao redor do mundo comprometidas com o tema da radioproteção [5].

De acordo com a OIT, o objetivo a ser seguido no uso das variadas formas de radiação consiste em viabilizar níveis adequados de proteção para humanos sem que isso induza à limitação excessiva dos benefícios que se pode extrair da radiação [6]. Pretendendo prevenir doenças e acidentes relacionados a materiais radioativos, a OIT há décadas atua conjuntamente com outras instituições na vanguarda da criação de medidas e parâmetros de segurança na exploração das atividades que envolvam o uso de radiação.

Em 1960, a OIT editou a Convenção nº 115, cujo conteúdo promulga diretrizes gerais para proteção dos trabalhadores das indústrias nucleares, como padrões de doses máximas, idade mínima para desempenho de trabalhos envolvendo radiação ionizante, sinalização etc. Mais tarde, em 1988, a OIT editou a Recomendação nº 175, que, em meio a instruções de segurança aplicáveis ao setor da construção, disciplina que "normas de segurança deverão ser elaboradas e colocadas em prática (…) no que concerne aos trabalhadores envolvidos na manutenção, renovação, demolição ou desmonte de quaisquer edificações em que haja risco de exposição a radiações ionizantes, em especial em indústria de energia nuclear". Ambas foram ratificadas e aprovadas pelo Congresso Nacional brasileiro.

No Brasil, a competência para planejamento, orientação, regulação, supervisão e fiscalização das atividades que envolvam o uso de radiação é atribuída à Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), autarquia federal criada em 1956. Além de cumprir suas típicas atribuições autárquicas, a CNEN dedica-se ao estudo e investimento em pesquisa na área de radioproteção e segurança.


 

Além da atuação regulatória da CNEN, a União também desempenha o papel de controle sobre a exploração econômica da cadeia produtiva do urânio, da qual detém monopólio no país. Essa função é atribuída às Indústrias Nucleares do Brasil (INB), sociedade de economia mista cujo controle acionário é exercido pela CNEN, que ostenta 99,9968% de participação no capital social da empresa [7].

 

Para cumprir as obrigações legislativas e atender ao anseio pelo uso seguro da radiação ionizante, as atividades da INB submetem-se à supervisão e ao controle de órgãos públicos domésticos, como a CNEN e o Ibama, bem como à fiscalização da Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea), ligada à ONU. Por conta desse arranjo, além de obedecer à legislação brasileira, a INB deve também observar os protocolos de segurança praticados pela Aiea.

Pretendendo garantir a segurança dos empreendimentos brasileiros dedicados a explorar elementos radioativos, a CNEN editou e fiscaliza o cumprimento de sua norma CNEN-NN-3.01 [8], que tem por objeto estabelecer as "diretrizes básicas de proteção radiológica".

Esse documento é responsável por promover três requisitos básicos em matéria de proteção radiológica, a serem observados em todas as atividades que explorem a tecnologia: 1) o requisito da justificação, pelo qual se entende que a opção pelo uso de agentes radioativos em detrimento de outras fontes deve ser justificado em face dos benefícios sociais e econômicos que resultem da escolha; 2) o requisito da limitação de dose individual, segundo o qual é vedada a exposição de trabalhadores e do público em geral a doses que excedam os limites legais; e 3) o requisito da otimização, que fixa a meta de esforço contínuo para que o nível de exposição seja tão reduzido quanto possível.

Além de impor tais requisitos/princípios fundamentais, a CNEN-NN-3.01 também procura garantir a segurança das atividades nucleares impondo ao empregador o dever de elaborar o Plano de Proteção Radiológica e submetê-lo à aprovação da CNEN. Trata-se de documento que almeja mapear as possíveis fontes de risco e desenvolver medidas de gestão e controle. O Plano de Proteção Radiológica deve integrar o PPRA (ou PGR, a partir de agosto de 2021) do empreendimento, quando aplicável. Suas principais características estão ligadas à necessidade de identificação da equipe e dos equipamentos dedicados aos serviços de proteção radiológica. Também relaciona deveres de indicação das fontes de radiação e dos sistemas de controle e segurança, de descrição do controle médico e treinamentos oferecidos aos indivíduos ocupacionalmente expostos. Ainda prevê planejamentos de respostas a situações de emergência, programas de saúde ocupacional, manutenção de registros de exposição individuais, entre outros.

A mesma norma CNEN-NN-3.01 fixa em seu item 5.4.2 as balizas para as doses individuais máximas de exposição aos trabalhadores. Para atender à norma, é necessário que os empregadores garantam que a dose efetiva (avaliada no corpo inteiro) não ultrapasse a média anual de 20 mSv durante o período de cinco anos e, simultaneamente, que exposição à dose equivalente (avaliada na pele e membros das extremidades) não exceda 50 mSv em qualquer ano. Os registros de exposição devem ser armazenados por um período mínimo de 30 anos após o término do vínculo e serão mantidos até que o trabalhador complete 75 anos. Somando-se às exigências de controle médico definidas pela CNEN, o Ministério da Economia exige que os trabalhadores expostos a radiações ionizantes sejam semestralmente submetidos a exames de hemograma completo e contagem de plaquetas (Quadro II da NR 7).

Nada obstante a ampla regulação imposta pela CNEN, as atividades de saúde que façam o uso de radiação ionizante também estão sujeitas às exigências das normas regulamentadoras. Entre outras obrigações que complementam ou reforçam as previsões da CNEN-NN-3.01, a NR-32 do atual Ministério da Economia também define exigências quanto às instalações (e.g., revestimento impermeável, pisos com cantos arredondados, cobertura de bancadas com plástico, sistemas de exaustão, pias sem controle manual etc.) e regras de higiene ocupacional.

Por fim, de acordo com a interpretação consolidada na OJ nº 345 da Subseção I Especializada em Dissídios Individuais do TST, a exposição do empregado à radiação ionizante ou à substância radioativa é considerada atividade perigosa pelas Portarias 3.393/1987 e 518/2003 do atual Ministério da Economia e, portanto, atrai o dever do empregador de efetuar o pagamento de adicional de periculosidade na proporção definida em lei em favor do trabalhador. Quando os limites de exposição excedem os parâmetros normativos da CNEN-NN-3.01, a atividade também é considerada insalubre, em grau máximo.

O detido acompanhamento pelo poder público e o alto nível de regulamentação da atividade não deixam dúvida de que, como ocorre com muitos dos agentes considerados nocivos, o uso das fontes radioativas, apesar dos riscos envolvidos, é tecnologia imprescindível para a saúde pública e também para a sustentabilidade. Como anota Maria Vera Cruz de Oliveira Castellano, "as fontes radioativas são essenciais e imprescindíveis, e o uso das radiações ionizantes representa um grande avanço em várias áreas da medicina com papel fundamental no diagnóstico e tratamento" [9]. Estudo patrocinado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), por sua vez, menciona que "os benefícios advindos do uso das radiações ionizantes são incontáveis, sendo os principais a cura de tumores através da radioterapia, e a detecção precoce de doenças através do diagnóstico" [10].

Logo, o equilíbrio entre ônus e bônus parece estar em assumir uma postura em prol do reforço e do desenvolvimento contínuo das noções de proteção radiológica, cuidando para que eventuais exposições à radiação ionizante ocorram dentro do mínimo limiar possível e desde que asseguradas pelas medidas protetivas adequadas.

A despeito das complexas e diversas discussões que se originam do assunto, atualmente a agenda relacionada à radiação ionizante concentra-se na discussão sobre a Portaria nº 595/2015 do MTE, que afastou o dever de pagamento a adicional de periculosidade para trabalhadores expostos a aparelhos móveis de raio-x. Em recentíssimo julgamento realizado em 1º.8.2019 pela SDI, por maioria de votos, o TST debruçou-se sobre a relevante questão no julgamento do recurso repetitivo nº IRR-1325-18.2012.5.04.0013, cujo objeto questionava a validade da citada portaria. Decidiu-se por emprestar juridicidade e legalidade à portaria, via reconhecimento de que não é devido o adicional de periculosidade a trabalhador que, sem operar o equipamento móvel de raio-s, permaneça eventualmente nas áreas de seu uso [11].


 

Respeitadas as vozes divergentes, parece ter sido decisão correta e abalizada na melhor técnica e orientação emanada da CNEN, que diferencia áreas livres, supervisionadas e controladas, além de retratar o que internacionalmente é sabido: que não há área isenta por completo de radiação [12].

 

Em seu papel de pacificador das agruras, espera-se que o Poder Judiciário siga a inspirar-se em informações isentas e técnicas, consoante orientação da CNEN, para solucionar questões tão polêmicas e complexas.

 


[2] Ionizing Radiation Fact Book. United States Environmental Protection Agency. March, 2007. Disponível em https://static.compliancetrainingonline.com/docs/IonizingRadiationFactBook.pdf.

[9] Energia Nuclear: Saúde e Direito dos Trabalhadores. In Direito Ambiental do Trabalho: apontamentos para um teoria geral. v. 4. Guilherme Guimarães Feliciano, Paulo Lemgruber Ebert, coordenadores. São Paulo: LTr, 2018, p. 140.

[11] Íntegra do acórdão ainda não foi divulgada

[12] Na doutrina, vide interessantíssima obra de Robert Peter Gale e Eric Lax, “Radiation. What it is, what you need to know”, infelizmente ainda sem versão em português.

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