Opinião

Por uma percepção feminista sobre a maternidade no Direito brasileiro

Autor

  • Ezilda Melo

    é advogada professora mestra em Direito Público UFBA especialista em Direito Público historiadora e organizadora da coleção "Direitos das Mulheres" que conta com seis títulos: Feminismos Artes e Direitos das Humanas; Por uma estética artística feminista do Direito; Maternidade e Direito; Advocacia Criminal Feminista publicados pela Editora Tirant lo Blanch Maternidade no Direito Brasileiro: padecer no machismo e Direitos Fundamentais das Mulheres no período pandêmico publicados pela Editora Studio Sala de Aula.

30 de janeiro de 2021, 11h34

"(…) E as brasileiras têm razões de sobra para se opor ao machismo reinante em todas as instituições sociais, pois o patriarcado não abrange apenas a família, mas atravessa a sociedade como um todo. Não obstante o desânimo abater certas feministas lutadoras, quando assistem a determinados comportamentos de mulheres alheias ao sexismo, vale a pena levar esta luta às últimas consequências, a fim de se poder desfrutar de uma verdadeira democracia"
(Heleieth Saffioti)

A coletânea "Maternidade no Direito Brasileiro: padecer no machismo", dividida em quatro capítulos, composta de 22 contribuições teóricas em formato de artigo, escrita por 45 autores, entre pesquisadores, professores, advogadas e ativistas dos direitos das mulheres, propicia uma amostra de como a temática sobre a maternidade no Direito é ampla, complexa e transdisciplinar e merece um olhar mais acurado e cuidadoso.

Na obra "Maternidade no Direito Brasileiro: padecer no machismo", continuidade de "Maternidade e Direito", publicada pela Editora Tirant lo Blanch em 2020, com 27 artigos e 40 autores, novamente um tema importante para o Direito das Famílias é colocado e analisado sob vários enfoques por diversos estudiosos que se dispuseram na construção dessa obra coletiva que chega ao Direito brasileiro com a intenção de contribuir com o debate sobre os direitos das mulheres. Nota-se que a temática da maternidade também se relaciona com a questão criminal, especialmente se as mães são vítimas de violência doméstica, sexual, obstétrica e estrutural do sistema de Justiça.

Nessa obra, no primeiro capítulo tem-se seis artigos que transitaram entre a temática da análise discursiva sobre maternidade e a não estigmatização àquelas que exercem ou querem exercer o direito de não serem mães. Fez-se presente a discussão sobre o direito ao aborto a partir de leituras que legitimam a autonomia da mulher. Debate pertinente e atual, especialmente porque está em consonância com mudança legislativa historicamente conquistada na data de 30 de dezembro de 2020 na Argentina, depois de muitos anos de reivindicações sociais e feministas.

Também no primeiro capítulo foram abordadas a questão do infanticídio indígena e sobre a Síndrome de Edwards e seu tratamento jurídico. No segundo capítulo, as questões principais se deram em torno da construção social da maternidade, a gravidez na adolescência e os impactos na vida das jovens estudantes, a questão dos tabus que envolvem o tema da amamentação, aspectos jurídicos do parto anônimo, a reprodução humana assistida e o reconhecimento da filiação materna, violência obstétrica e erro médico, a lei de alienação parental como forma de violência simbólica contra as mães, as desigualdades nos cuidados parentais, a desproteção salarial no afastamento do trabalho previsto na Lei Maria da Penha.

No capítulo três, o enfoque principal foi a gestação e a banalização dos corpos das mulheres negras e das mulheres com deficiência, como também questões ligadas à maternagem encarcerada.

Diante de tudo que foi pesquisado pelas autoras e autores que compõem esta coletânea, ficou evidente que a temática da maternidade no Direito Brasileiro é sentida, presenciada e decidida, na grande maioria das vezes, através de um filtro machista. Precisa-se, portanto, fazer uma alteração de percepção e o feminismo passar a ser o filtro condutor de entendimento sobre as situações que as mães vivenciam no Judiciário. O feminismo é a luta pelos direitos iguais das mulheres em relação aos homens e, dentro desta perspectiva, portanto, é válido que compreendamos como historicamente o papel da maternidade foi socialmente construído como mais um lugar de exercício de poder sobre os corpos e as vontades de mulheres que vivenciam a gravidez, o parto, a amamentação e os cuidados com os filhos. Para que não seja um lugar de violências, precisa-se reconhecer as vulnerabilidades das mães e filhos e trazer para o debate a importância da paternidade responsável. Essa mudança sistêmica proporcionará uma sociedade melhor.

Em dezembro de 2020, foi noticiado amplamente, por meio de um vídeo que viralizou, o caso de um juiz da vara de família de São Paulo que em audiência para definir a guarda e pensão dos filhos menores de idade, na qual também se faziam presentes um promotor de Justiça e os advogados do ex-casal, disse à mulher: "Se tem Lei Maria da Penha contra a mãe, eu não tô nem aí. Uma coisa eu aprendi na vida de juiz: ninguém agride ninguém de graça". O magistrado ainda desdenhou de medidas protetivas e disse: "Não tô nem aí para medida protetiva e tô com raiva já de quem sabe dela. Eu não tô cuidando de medida protetiva". "Qualquer coisinha vira Lei Maria da Penha. É muito chato também, entende? Depõe muito contra quem… Eu já tirei guarda de mãe, e sem o menor constrangimento, que cerceou acesso de pai. Já tirei e posso fazer de novo", disse o magistrado em outro momento da mesma audiência.

Em outra audiência, também gravada e divulgada, o mesmo juiz demonstra uma série de preconceitos machistas, classistas e racistas: "Ganha 1.300 e quis ter dois filhos?". Ou "se não tem como cuidar, então dá para adoção, põe num abrigo"; "quem quis ficar com a guarda foi a mãe, tem que pagar este preço"; "Se ele é mau pai, eu não tenho culpa. Eu vou fazer o quê? Vou pegar este negão e encher ele de tapa? Não é meu trabalho esse".

Essa situação, apesar de emblemática, não é isolada, não é exceção e é praticada por juízas também. É inadmissível que as Varas de Família sejam lugar de (re)produção de mais violências contra as mulheres. Episódios de violência de gênero configuram violação de direitos humanos. O TJ-SP e o CNJ informaram em nota que instauraram procedimento para apurar os fatos noticiados contra o juiz, que em janeiro de 2021 foi designado para Vara de FazendaPráticas de revitimização e estigmatização das mulheres, sejam elas partes ou integrantes do sistema de Justiça, devem ser eliminadas.

Nesse sentido, pergunta-se: capacitações em direitos fundamentais com perspectiva de gênero é um bom início para pensarmos na alteração desse sistema? A iniciativa é recebida com entusiasmo. Não sabemos como essas aulas ocorrerão, que materiais serão utilizados, nem a duração dos cursos. Resta verificar se o profissional que se apropria de discursos discriminatórios conseguirá se desconstruir a ponto de introjetar conhecimentos calcados na proteção dos direitos dos grupos mais vulnerados, como as mulheres, e, mais especificamente, as mães.

Estamos em momento histórico que aponta para novos saberes. Temos diversas mentorias na área de advocacia criminal e familista com perspectiva feminista; temos pós-graduações e cursos em direitos das mulheres; temos defensores, promotores, juízes e servidores públicos engajados na construção e proteção de direitos humanos. Temos sentenças que apontam para uma perspectiva de proteção dos direitos das mulheres e dos demais grupos vulnerados. Temos delegados e policiais que observam, desde a investigação de crimes de feminicídio, as Diretrizes Nacionais de Combate ao Feminicídio. Temos advogados que, mesmo exercendo o direito de defesa em júri, não tripudiam da memória da vítima, nem levantam teses abjetas e ultrapassadas como a da legítima defesa da honra. Temos uma mudança bibliográfica em curso para a área jurídica. São iniciativas que possuem já sua visibilidade e aceitação em quem tem compromisso com um direito humanista, fraterno e social. Portanto, estamos vivenciando mudanças no cenário jurídico e é nessa vibração de romper com estereótipos que "Maternidade no Direito Brasileiro: padecer no machismo" chega. Que seja mais que uma denúncia que começa desde a capa; seja também um material para novas pesquisas e formação de novas mentalidades que pensem em alterar um velho sistema que ainda está muito longe de ser um paraíso para quem dele precisa.

O machismo na sociedade precisa ser sepultado. O machismo no Judiciário também. Que os bons ventos do feminismo adentrem o Judiciário e permitam uma mudança de percepção sobre a situação das mulheres quando as mesmas estiverem num dos polos da lide que envolva seus filhos.

Nas duas obras a abordagem sobre a maternidade se unifica quando permite entrecruzar saberes e poderes sobre um assunto que consubstancia fortemente um lugar social construído e ressignificado por tantas civilizações e que se relaciona com os direitos das crianças e adolescentes. Tratamos todos os temas relacionados à maternidade nessas obras? Não. É um tema que precisa de muito enfrentamento acadêmico ainda. Que possamos reconhecer dentro dos grupos vulnerados, situações que são especificamente do sexo feminino, da maternidade, e que merecem uma acolhida e proteção mais firme do legislativo, executivo e judiciário. Pelo reconhecimento dos direitos das mães e por uma sociedade melhor!

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  • Brave

    é advogada, historiadora, autora, professora de Direito, mestra e especialista em Direito Público pela UFBA e idealizadora do Projeto "Maternidade e Direito Brasileiro".

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