Diário de Classe

A democracia cobra respostas corretas (também) na política

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30 de janeiro de 2021, 8h01

Das possibilidades de organização político-jurídicas surgidas após as revoluções ditas liberais, a História aponta para diferentes modelos de Estado constitucional, ao longo de dois séculos. Do ponto de vista do embasamento teórico, várias foram as correntes da filosofia política que influenciaram o surgimento de tal modelo, com destaque para o posicionamento contratualista, à luz nos séculos 17 e 18. É desse ideário, afinal, que se origina o poder baseado no contrato entre e com a sociedade, fazendo a passagem de um modelo em que o Estado se identifica com a figura do soberano L’État c’est moi  para uma segunda possibilidade, em que o ideário era o da livre iniciativa para a satisfação de liberdades econômicas. Contudo, essa organização estatal, o Estado mínimo, assim como anteriormente o de viés absoluto, também encontrou os seus limites, transitando após a Segunda Grande Guerra para sua conformação social, visando, grosso modo, à igualdade. Daí o acerto em, quando se falar em crise do Estado, pensar não exclusivamente em um viés negativo, mas de transição, de um caminhar para o novo.

O percurso histórico de formação do Welfare State ou seja, da transição entre os modelos liberal e social —, embora vinculado aos movimentos operários, não ficou restrito à classe dos trabalhadores, estendendo-se, por certo, a todos aqueles com vínculo de pertença a determinado Estado. Assim, o Welfare State pode ser compreendido como aquele que garante mínimos existenciais não como caridade, mas como um direito politicamente estabelecido. Ocorre, entretanto, que esse modelo também encontrou, ao longo do tempo, obstáculos que podem enquadrá-lo em um contexto de crise, sobretudo, relacionado a uma espécie de problema de caixa [1].

Diante dessa transição paradigmática, facilmente observada frente a um fio histórico, boa parte da literatura acadêmica, sobremodo a jurídica e a sociológica, observa esses dois modelos como antagônicos entre si. De um lado, o paradigma liberal é, via de regra, retratado como uma espécie de ode ao mercado. De outro, os programas de bem-estar, que permeiam as propostas mais voltadas à diminuição dos sempre presentes gaps sociais, são projetados como um contraponto e, aí, como uma antítese ao modelo liberal.

Para além desse debate acadêmico que polariza a narrativa e, assim, parece engessar novas configurações estatais em dimensões estritamente teóricas , um modelo de Estado regulador, visando ao equilíbrio entre os interesses privados e as indisponíveis necessidades públicas, reconfigura as funções estatais. De provedor, passa esse mesmo Estado às funções de planejamento, regulação e fiscalização, como bem estabelece, no Brasil, em seu artigo 174, a Constituição Federal [2].

Esse reconfigurar de funções estatais, entretanto, não chega a ser uma "novidade" instituída pela Carta Política de 1988. Afinal de contas, tal modelo, também nomeado como "planejador" ou "desenvolvimentista", pode ser verificado em países periféricos já diante de suas tardias necessidades de industrialização.

Assim é que, desde a primeira metade do século 20, sobremodo a partir do primeiro governo de Getúlio Vargas, há estruturas tecnoburocráticas orientadas a essas novas finalidades estatais, que Fernando Henrique Cardoso [3] chamou de "anéis burocráticos". Sucintamente, o esboço de traço acadêmico de FHC encerrava uma nova classe de tecnocratas orientada ao atendimento dos interesses de enraizadas alianças entre economia e política, paradoxalmente, a partir de "critérios meramente técnicos", como "ilhas de racionalidade".

Em apertada síntese, também encerravam em si aquilo que Raymundo Faoro [4] propôs mesmo como a institucionalização dos estamentos que deram forma ao país, oferecendo uma capa de legitimidade decisória à escolha política, não apenas amplamente discricionária, mas, sobremodo, em boa medida também arbitrária. Afinal de contas, essa burocracia estatal planejadora não se estabelecia sobre caminhos possíveis voltados à correção das falhas de mercado, estímulo à concorrência ou desenvolvimento de determinado setor, mas tão-somente como representação dos interesses da anteriormente mencionada aliança entre a economia e a política (autoritária) de Vargas. Esse é o ponto: embora o modelo fosse orientado a uma escolha técnica, bem centrada na também já referida "ilha de racionalidade" que afasta(va) a política caracterizada como um jogo de interesses escusos, o saldo era um endereçamento especificamente tão delimitado que também blindava o princípio por trás da nova finalidade estatal: a regulamentação.

Essa percepção da gênese do Estado regulador no Brasil, embora sujeita à crítica acadêmica que a põe como uma narrativa essencialmente ensaísta e opinativa, pode ser sustentada no argumento historicamente verificável que localiza (e associa) o próprio momento seminal do Estado regulador a incipientes processos de industrialização, por sua vez, alinhados ao Estado autoritário de Vargas. Não havia política, compreendida como o ambiente de aproximação entre o demos e o poder [5], condição estendida, posteriormente, com o enfraquecimento de partidos políticos por boa parte da segunda metade do século passado.

Essa condição (política) é modificada, todavia, com a redemocratização. Como resposta técnica (e econômica) à crise fiscal do Estado, na década de 1990, surge um "novo" modelo regulador, compreendido, também, como um movimento político de transformação do funcionamento da burocracia estatal. Ocorre, entretanto, que mais que uma vantagem democrática, que em tese afastaria a institucionalização dos estamentos de Faoro para finalmente instituir uma burocracia impessoalizante às disputas, o novo modelo regulador muito mais projetou nas agências regulatórias uma nova arena política. E elas, sem desconhecer seus quadros técnicos, não são imunes a uma arbitrária discricionariedade, podendo servir a interesses muito específicos, aos quais se submete o loteamento desses mesmos espaços públicos em nosso presidencialismo de coalizão [6].

Sem sombra de dúvida, como discutido com os colegas de Dasein [7], sobremodo Clarissa Tassinari e Maicon Crestani, a complexidade do Estado diante de suas funções contemporâneas não admite (ou, prescritivamente, não deveria admitir, ao menos) essa espécie de feudalização do espaço público, como se fosse possível fatiar o "reino" entre "duques e condes". Embora a política seja o lugar da discricionariedade, a contemporaneidade democrática cobra sempre novos contornos de clareza e eficiência à Administração Pública, limitando, assim, o catálogo de discricionariedade nas escolhas políticas.

Esse desejável estado de coisas é imposto compreende-se pelos limites alicerçados pelo Direito, considerado aqui um todo coerente, que diz os limites da discricionariedade "também" política.

Esse é o ponto de partida "político", mas que aqui figura como o desfecho dessa pequena reflexão. No mesmo sentido do complexo argumento de Lenio Streck para concluir a necessidade de "respostas corretas" em sede de decisão judicial [8], fazendo do Direito efetiva linguagem pública que dissipa a insegurança jurídica advinda do decisionismo judicial, entende-se que os processos legislativo e regulatório também são, frente a essas novas funções estatais, responsivos à mesma necessidade em termos de intersubjetividade democrática: é preciso clareza não apenas para julgar, mas para instituir a norma ou regular setores. Afinal de contas, o grau de complexidade dos problemas enfrentados pelo Estado diante de suas atuais funções e de responsabilidade de seus atores não pode admitir as frequentes confusões epistêmico-administrativas que a cotidianidade pública teima ainda em nos apresentar. A pandemia da Covid-19 e seus desdobramentos (políticos) é pródiga em revelar essa ululante necessidade. Ou não?

 


[1] Por todos, ver ROSANVALLON, Pierre. A crise do estado-providência. Tradução de Joel Pimentel de Ulhôa. Goiânia: UFG, 1997.

[2] "Art. 174 – Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o Setor Público e indicativo para o Setor Privado".

[3] CARDOSO, Fernando Henrique. O modelo político brasileiro e outros ensaios. 2a ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1973.

[4] FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Formação do Patronato político brasileiro. 5a ed. São Paulo: Globo, 2012.

[5] WOLFF, Francis. A invenção da política. In: NOVAES, Adauto (Org.). A crise do Estado-nação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

[6] ABRANCHES, Sérgio. Presidencialismo de coalizão. Raízes e evolução do moderno político brasileiro. São Paulo: Cia. das Letras, 2018. Ver, também, NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento: Da abertura democrática ao governo Dilma. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

[7] Núcleo de Estudos Hermenêuticos, coordenado pelo professor Lenio Streck.

[8] A proposta teórica de Lenio Luiz Streck e sua Crítica Hermenêutica do Direito, assentada “entre dois grandes paradigmas filosóficos: o objetivismo e o subjetivismo”, visa o estabelecimento das “condições para a construção de uma teoria da decisão, fechando, assim, um gap existente na teoria e nas práticas cotidianas dos juízes”. STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica. Quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2017, p. 11.

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