Opinião

Afinal, quem tem medo de acordo?

Autor

  • Pedro Scuro Neto

    é sociólogo MSocSc (Praga) e PhD (Leeds) diretor da Sociedade Internacional de Criminologia e do International Forum on Crime and Criminal Law in the Global Era autor de Sociologia Geral e Jurídica (oitava edição A Era do Direito Cativo 2019) e Direito do Conflito (2021) todos pela Saraiva.

29 de janeiro de 2021, 6h33

Entra ano, sai ano, nossos magistrados repetem esse mantra e se desculpam com outro ("é preciso uma mudança de mentalidade"), sempre na contracorrente dos lugares em que até mais de 90% dos casos são resolvidos por acordo. Aqui é diferente. Em 2019, houve conciliação somente em 12,5% dos processos — apesar do espetacular aumento, na Justiça estadual, do número de Centros Judiciários de Resolução de Conflitos e Cidadania: de 362 (2014) para 1.284 unidades em 2019 ("Justiça em Números", CNJ, 2020).

"Na execução, os índices são ainda menores e alcançam 4,1%. No 2º grau, a conciliação é praticamente inexistente: as sentenças homologatórias de acordo representam apenas 0,3% dos processos julgados. A tendência [no entanto] é que estes percentuais aumentem, tendo em vista o novo Código de Processo Civil, que prevê audiência prévia de conciliação e mediação como etapa obrigatória, anterior à formação da lide, como regra geral para todos os processos cíveis" ("Justiça em Números", 2016).

Conciliação obrigatória existe há mais de dez anos na Colômbia, onde gera economia de tempo (11 meses) e de despesas (40-50%) [1]. Aqui, só otimismo. Na área penal inclusive, sobretudo quando tramita na Câmara dos Deputados alguma PL exótica, como a 882/2019, que agredia o devido processo legal, mas anunciava "vantagens" do tipo "dispensar testemunhas" ou "abreviar o julgamento de processos criminais que, no Brasil, atingem muitos anos" [2]. Importada dos Estados Unidos, onde a própria Suprema Corte admite que esses "acordos" não têm base legal nem constitucional, mas do ponto de vista de juízes e procuradores são "o único recurso que resta entre o sistema e o completo caos" (Brady vs. United States, 1970).

"Sem acordo, nos Estados Unidos não há solução para o excessivo volume de processos penais. Com os instrumentos que dispomos, se alguém hoje for acusado de crime, sério ou não, vai esperar um quarto de século por uma decisão. A negociação de culpa, por exemplo, elimina a incerteza para a acusação e para a defesa, excluindo a possibilidade de pena severa mesmo para crimes mais graves. O problema é negociação demais, que está levando certas infrações à descriminalização — por exemplo, reduzindo a maioria das penas por crimes de drogas a um ano de prisão ou menos" [3].

Não importa o país, na verdade, nem o terreno institucional ou a gravidade do caso, pois as evidências mostram que não são exatamente as pessoas que não querem acordo. Bastaria que os direitos dos envolvidos em conflitos e as suas expectativas em relação à Justiça e às autoridades fossem respeitados. Razão pela qual, de 1997 a 1999, duas turmas de pesquisadores desenvolveram, no Brasil e nos Estados Unidos, um formato de múltiplas vertentes [4] para lidar com anomia, violência e eventualmente criminalidade em dezenas de escolas. Conceberam-se cinco componentes ("vacinas") e quatro "fatores de imunidade" (mudanças no ambiente escolar, conscientização da comunidade, promoção de uma cultura de justiça, e elevação da capacidade de intervenção do poder público) em um contexto de compartilhamento de responsabilidades e avaliação permanente:

— 98% dos participantes sentiram plena liberdade de expressão;

— 98% sentiram que foram levados a sério;

— 95% sentira que foram tratados com respeito;

— 94% entenderam tudo que estava se passando;

— 81% sentiram um clima de compreensão e entendimento;

— 91% disseram que os procedimentos foram bem conduzidos e que a experiência valeu a pena;

— 92% firmaram que os procedimentos mudaram sua forma de pensar e agir;

— 87% gostaram do modo como os acordos foram obtidos;

— 94% sentiram-se mais dispostos a procurar a escola para resolver problemas daí para frente;

— 81% dos infratores sentiram remorso;

— 98% deles se sentiram mais aceitos, atendidos e ligados às outras pessoas;

— 80% se sentiram aptos a "começar de novo";

— 89% das vítimas tiveram suas necessidades atendidas;

— 91% delas consideraram os termos do acordo satisfatórios;

— 94% se sentiram mais seguras e confiantes;

— 77% verificaram melhoria de conduta da parte dos infratores;

— 85% dos funcionários melhoraram seu relacionamento com todos na escola;

Uma dessas "vacinas" — "câmaras restaurativas", desenvolvidas por Margaret Thorsborne, consultora australiana — cativou magistrados de vanguarda, deu ensejo a três experimentos da Secretaria de Reforma do Judiciário, à Resolução nº 225/2016 do CNP e agora a uma "política nacional de justiça restaurativa" focada na resolução de conflitos de um "modo estruturado". Daí a formação de milhares de facilitadores de "círculos de pacificação de conflitos", um bosquejo de abordagens autocompositivas [5]. Do primeiro experimento restaram as reações dos magistrados ao mise-em-scène e à dinâmica do único componente que os atraiu.

"Na zona rural do Distrito Federal, dois vizinhos que brigavam por limites de terra ajuizaram um processo que foi resolvido na vara cível e confirmado no tribunal. No entanto, continuaram a brigar desta vez pelos limites das águas de uma mina. Conflito que resultou em ameaças e até na morte de alguns animais de uma das chácaras, supostamente por um dos vizinhos. A equipe 'Programa Justiça Restaurativa' do TJDFT resolveu assumir o caso e chamou para participar a Agência Nacional de Águas e uma ONG ambiental, a WWF, que sugeriu um programa de 'apadrinhamento de minas'. Os confrontantes, plenamente satisfeitos com a solução, terminaram fazendo um acordo de proteção pela mina. O conflito ficara na Justiça por mais de dez anos e, embora a solução já transitada em julgado encaminhava-se para um desfecho trágico. A Justiça tradicional resolvera somente o jurídico, um espectro da questão, deixando as demais questões em aberto, que seguiram se acumulando, até que foi feito um acordo restaurativo" [6].

De fato, fazer justiça do ponto de vista restaurativo amplia horizontes, dá um senso de propósito aos operadores do Direito e se constitui talvez no principal motivador do trabalho no sistema de Justiça.

"Fazer justiça do ponto de vista restaurativo significa dar resposta sistemática às infrações e suas consequências, enfatizando a cura das feridas sofridas pela sensibilidade, pela dignidade ou reputação, destacando a dor, a mágoa, o dano, a ofensa, o agravo causados pelo malfeito, contando para isso com a participação de todos os envolvidos (vítima, infrator, comunidade) na resolução dos problemas (conflitos) criados por determinados incidentes. Práticas de justiça com objetivos restaurativos identificam os males infligidos e influem na sua reparação, envolvendo as pessoas e transformando suas atitudes e perspectivas em relação convencional com sistema de justiça, significando, assim, trabalhar para restaurar, reconstituir, reconstruir; de sorte que todos os envolvidos e afetados por um crime ou ofensa devem ter, se desejarem, a oportunidade de participar do processo" [7].

Mesmo assim, Justiça restaurativa (JR) continua a ser uma "prática em busca de conceito", ainda vago e muito contestado. Em particular por conta de frases de efeito que expressam negação, desacordo ou recusa em relação à Justiça: JR "não tem como objeto principal o perdão ou a reconciliação", "não é mediação", "não pretende reduzir reincidência ou ofensas em série", "não é um programa ou projeto específico", "não é uma alternativa ao processo penal", "não é alternativa ao encarceramento", "não se contrapõe à Justiça penal" [8]. Rigidez negacionista que prejudica o foco dos procedimentos, a confiabilidade e a durabilidade dos resultados. Daí a necessidade de: 1) regras para prevenir impasses decorrentes de relatos incongruentes; 2) equacionamento, antes que as partes se encontrem, da maioria das emoções potencialmente explosivas; 3) prévia discussão, para gerenciar adequadamente os resultados e as expectativas das partes; 4) mediação na hora de discutir os detalhes da reparação de danos, inclusive para evitar "revitimização" [9].

Malgrado a sua incipiência teórica, a JR, se aplicada judiciosamente, de forma consistente e em conjunto com outros componentes, sempre dá certo. Em comparação com a Justiça penal, por exemplo, ajuda a: 1) reduzir substancialmente a reincidência de determinadas categorias de infratores; 2) dobrar (ou mais) o número de infratores trazidos à Justiça; 3) diminuir os sintomas traumáticos das vítimas, assim como os custos decorrentes; 4) propiciar às vítimas assim como aos infratores maior satisfação com o processo judicial; 5) abater o desejo de vingança violenta contra o agressor; 6) diminuir reincidência, mais em comparação com o encarceramento (adultos) e tanto quanto o internamento (adolescentes) [10].

A questão é que boas práticas têm contra si o fato da JR não ser um movimento coerente nem unificado, diluído algumas vezes em agendas estabelecidas em gabinetes distantes e a portas fechadas. No Brasil, por exemplo, onde vigora "busca por uniformidade" para "evitar disparidades de orientação e ação", a agenda já está definida, assim como o protagonista — o Judiciário, cujas "especificidades" são prioritárias, obnubilando o papel das legítimas "estrelas": vítimas, ofensores, comunidades, e sobretudo os milhares de facilitadores, de quem o CNJ só sabe que são mão-de-obra precária (voluntários) ou remunerada (servidores) [11].

Nos primeiros experimentos os pesquisadores cuidaram que os envolvidos se encontrassem e que ficassem "satisfeitos". O que já foi bem mais do que a Justiça convencional consegue, porém pouco em relação ao que a JR pode fazer se devidamente aplicada. A experiência internacional na reforma de sistemas de Justiça comprova a importância de adaptar à realidade social e jurídica procedimentos conscientes do devido processo legal, das regras constitucionais e dos abusos do Estado, e de suas próprias imperfeições. Algo que desde a década de 1940 o precursor das técnicas alternativas Frank E. A. Sander (1927-2018) acentuava lembrando que o progresso desse novo campo depende de pesquisa e experimentação constantes, bem como do aprofundamento conceitual. Para tanto não basta "educar mais e melhor a população acerca dos benefícios dos modos alternativos", mas envolver as instituições de pesquisa e ensino (jurídico, em particular) e o sistema político. "Os benefícios potenciais", concluía o professor e reitor da Universidade de Harvard, "são grandes demais para que nos recusemos a enfrentar tais desafios" [12] — que o CNJ e seu Comitê de Justiça Restaurativa não devem continuar ignorando.

Docentes dos melhores cursos jurídicos não raro fazem carreira e prestígio acoimando o nosso sistema jurídico de "primitivo", e afirmando que a nossa tradição jurídica foi derrotada pela dos países avançados e notadamente pelas normas, ritos e mecanismos de solução de controvérsias da "economia transnacionalizada".

"Nonadas.
O Direito está enraizado na cultura, e dentro de limites culturais responde às demandas específicas da sociedade em determinado tempo e lugar. Ele é, em última análise, um processo historicamente condicionado, através do qual percebemos, formulamos e resolvemos problemas sociais concretos. Substituir uma tradição jurídica por outra não é possível nem desejável"
 [13].

Costumo dizer que o Direito e a Justiça são a maior obra de engenharia social da humanidade e a mais poderosa referência da vida civilizada, graças à sua autonomia, suas corporações e associações profissionais, suas instituições e seu sistema de ensino. Seus mandarins é que, sem visão de futuro, tornam-se pessimistas, olham sempre para trás em busca de um sinal, e temem ser avaliados — quando "de fato estão sob avaliação em um número enorme de situações". Algo muito alarmante, até porque "os ganhos serão muito mais limitados se o tratamento for iniciado tardiamente" [14].

 


[1] Banco Mundial. “Settling out of court”, ViewPoint, 2011.

[2] Vladimir Passos de Freitas, “O acordo no processo criminal é um caminho sem volta”, Consultor Jurídico, 30 jun. 2019.

[3] James A. Inciardi (1996). Criminal Justice. Harcourt Brace College Publishers, p. 350.

[4] Denise C. Gottfredson (1997). “School-based crime prevention”, Preventing Crime: What Works, What Doesn’t, What’s Promising (L.W. Sherman et al., org.), Office of Justice Programs/U.S. Department of Justice; Pedro Scuro Neto (1999). “Justiça nas escolas. A função das câmaras restaurativas”, O Direito é Aprender (L. N. Brancher, M. Marques Rodrigues, e A. Gonçalves Vieira, org.), Ministério da Educação/Projeto Nordeste/Fundescola.

[5] Estão excluídas técnicas heterocompositivas, eficazes, previstas em lei (9.307/1996), mas sem vinculo com o judiciário, ocupando no “cenário jurídico nacional espaço tímido, quase insignificante”. Gilson Jacobsen, “Brasil x EUA. Análise comparativa dos sistemas judiciários”, Consultor Jurídico, 4 jul. 2009.

[6] Asiel H. de Sousa, “Justiça restaurativa: o que é e como funciona”, Conselho Nacional de Justiça, http://www.cnj.jus.br, 24 de nov. 2014.

[7] Pedro Scuro Neto e Renato Tardelli Pereira (2000). “A Justiça como fator de transformação de conflitos: princípios e implementação”, Simpósio Internacional da Iniciativa Privada para a Prevenção da Criminalidade. Câmara de Comércio e Indústria Brasil-Alemanha.

[8] Howard Zehr (2012). Justiça Restaurativa. Palas Athena, p. 18.

[9] Charlotte Culkin. “Restorative justice and mediation: is there a difference?”, why-me.org, 20 set, 2016.

[10] Lawrence W. Sherman e Heather Strang (2007). Restorative Justice: The Evidence. Smith Institute.

[11] Conselho Nacional de Justiça (2019). Mapeamento dos programas de justiça restaurativa.

[12] Pedro Scuro Neto (2019). “Ser ou não ser justiça restaurativa. O que ainda falta (vinte anos depois) para desabrochar”, Revista Sociologia Jurídica, 29.

[13] John H. Merryman (1985). The Civil Law Tradition. Stanford University Press, p. 149.

Autores

  • é membro do conselho deliberativo da Sociedade Internacional de Criminologia, foi o precursor da Justiça Restaurativa no Brasil, introduziu o georreferenciamento aplicada ao policiamento urbano e escreveu "Sociologia Geral e Jurídica", cuja oitava edição ("A Era do Direito Cativo") foi publicada pela Saraiva.

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