Opinião

Sobre o princípio nemo tenetur se detegere exercido pelo Poder Judiciário

Autor

  • Alan Diniz Moreira Guedes de Ornelas

    é advogado criminalista especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pelo Instituto Brasiliense de Direito Público especialista em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e membro do Grupo Candango de Criminologia da Universidade de Brasília.

29 de janeiro de 2021, 15h26

Muito se fala acerca do controle de legalidade e de constitucionalidade exercido pelos tribunais em situações concretas dos processos sob a égide de análise do Poder Judiciário, situações essas que por densas vezes podem vislumbrar a aplicação da legislação por meio de interpretação que vai além do preceito legal com ampliações de alcance e, muitas vezes, violação do texto da lei.

É o caso, por exemplo, de decisões judiciais que, após a recusa expressa do(a) investigado(a) em fornecer material biológico para a investigação policial que pretende auferir a presença de álcool no sangue, defere medidas cautelares pleiteadas pelo ente investigativo e determina a realização de busca e apreensão de material biológico em instituição hospitalar que o detenha, o que viola diametralmente o princípio nemo tenetur se detegere e impõe o reconhecimento de nulidade daquele decisum.

O prefalado princípio consiste, em linhas objetivas, na inexistência de obrigação de o(a) investigado(a) produzir quaisquer provas contra si mesmo, tratando-se de autodefesa passiva com a proibição do uso de medidas coercitivas ou intimidatórias para que se obtenha confissão ou para que colabore em atos que eventualmente ocasionem condenação (Lima, 2014, p. 69) [1].

Para Callegari, Wermuth e Engelmann (2012, p. 82) [2], o princípio nemo tenetur se detegere garante ao cidadão, além de não poder ser obrigado(a) a prestar qualquer tipo de informação, também coíbe a possibilidade de fornecer, direta ou indiretamente, qualquer tipo de prova que possa ensejar autoincriminação.

Com isso, o ponto de partida repousa no fato de que ao se deferir medidas cautelares de busca e apreensão para a coleta de material biológico, o Estado acaba por violar preceito constitucional e obriga aquele que é investigado a colaborar indiretamente com a investigação. Além disso, o cumprimento da busca e apreensão de material biológico em instituição hospitalar quebra a finalidade precípua, única e direta que é o implemento de medidas hospitalares para o tratamento de saúde daquele que foi posto à sua custódia e observação.

Assim, é absolutamente vedado que o direito à não autoincriminação seja tolhido, na medida em que a violação se consubstancia no ato de forçar indiretamente que o material biológico seja utilizado para a produção da prova pretendida pelo ente investigativo e que foi expressamente recusado por quem sofre investigação.

Tal previsão está em ininterrupta consonância com a disposição do direito e garantia individual do inciso LXIII do artigo 5º da Constituição Federal [3], que disciplina o princípio nemo tenetur se detegere e que está disposto como cláusula pétrea, devendo ser observado, respeitado e aplicado em casos concretos.

De mais a mais, o mencionado princípio se classifica no rol dos direitos de primeira geração, ou seja, se refere aos direitos da liberdade, tornando o indivíduo titular do direito frente ao poder estatal, cuja finalidade básica é "o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana pode ser definido como direitos humanos fundamentais" (Moraes, 2000, p. 39) [4].

Não bastasse, a violação também recai sobre o texto do artigo 9º da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos de 19 de outubro de 2005, pela 33ª Sessão da Conferência Geral da Unesco, que dispõe: "Artigo 9  Privacidade e Confidencialidade: A privacidade dos indivíduos envolvidos e a confidencialidade de suas informações devem ser respeitadas. Com esforço máximo possível de proteção, tais informações não devem ser usadas ou reveladas para outros propósitos que não aqueles para os quais foram coletadas ou consentidas, em consonância com o direito internacional, em particular com a legislação internacional sobre direitos humanos" [5].

Há, portanto, garantia para que o material genético não seja usado ou revelado para propósitos outros que não aqueles para os quais foi coletado ou consentido. Quer dizer, se a instituição hospitalar colheu o sangue de seu paciente com o objetivo de realizar um tratamento médico, não pode o Poder Judiciário determinar a apreensão do material em desacordo com as regras de privacidade, proteção e confidencialidade.

Não é demais lembrar que a coleta de sangue é prova invasiva com o uso de "intervenções corporais que pressupõem penetração no organismo humano, por instrumentos ou substâncias, em cavidades naturais ou não, implicando na utilização (ou extração) de alguma parte dele ou na invasão física do corpo humano, tal como o exame de sangue" (Lima, 2014, p. 76) [6].

Nessa toada, o que se afirma é que o ônus de provar o que se alega incumbe a quem o fizer, sendo certo que se houver suspeita acerca de eventual estado alcoólico de quem é investigado, caberia ao ente investigativo, por outros meios, evidenciar ou não tal prova, especialmente após recusa expressa de disponibilização voluntária de material biológico.

Outrossim, Moraes (2000, p. 41) [7] esclarece que o "importante é realçar que os direitos humanos fundamentais relacionam-se diretamente com a garantia de não ingerência do Estado na esfera individual e a consagração da dignidade humana, tendo um universal reconhecimento por parte da maioria dos Estados, seja em nível constitucional, infraconstitucional, seja em nível de direito consuetudinário ou mesmo por tratados e convenções internacionais".

Aliás, em julgamento histórico, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 99289 [8], rechaçou qualquer ato por parte do poder estatal que configure ofensa ao direitos de quem sofre persecução penal, instaurada pelo Estado, em não ser obrigado, coagido ou forçado a produzir elementos de incriminação contra si próprio; em não ser constrangido a apresentar provas que lhe comprometam a defesa e o direito de se recusar — ativa ou passivamente — de qualquer procedimento probatório que lhe possa afetar a esfera jurídica, de modo que não se autoincriminar é inteiramente oponível a qualquer autoridade ou agente do Estado que, por sua vez, são diametralmente proibidos de adotar medidas que afetem a esfera jurídica daquele contra quem se instaurou a persecução penal.

Não subsistem dúvidas de que a não autoincriminação é um direito fundamental de quem é investigado ou processado criminalmente, tendo por finalidade a proteção do indivíduo na persecução penal em razão de sua clara hipossuficiência quando comparado aos aparatos estatais, justamente para evitar excessos e resguardar qualquer violência de ordem física ou moral, especialmente nos casos cuja finalidade é obrigar o cidadão a contribuir com a investigação.

Nessa lógica, são as lições de Lopes Júnior (apud Gesu, 2010, p. 50) [9]: "O princípio da não autoincriminação decorre não só de poder calar no interrogatório, como também do fato de o imputado não poder ser compelido a participar de acareações, de reconhecimentos, de reconstituições, de fornecer material para exames periciais, tais como exame de sangue, de DNA ou de escrita, incumbindo à acusação desincumbir-se do ônus ou carga probatória de outra forma".

Seguindo nessa mesma linha de interpretação, o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o REsp 1111566 DF [10], sedimentou a assertiva de que o aplicador da lei não pode se equivocar em ferir direitos fundamentais do cidadão em decorrência de inaceitável exigência ou possibilidade não prevista em lei e transformá-lo em réu, em processo criminal, o que ocasiona causa de constrangimento ilegal, justamente para se resguardar o princípio da reserva legal preconizado no artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal [11].

Assim, o ato de se determinar a busca e apreensão da coleta de sangue deve ser visto como uma manobra de interpretação do texto da lei, na hipótese em que, especialmente quando há recusa expressa por parte de quem é investigado, o direito fundamental é violado diante do constrangimento ilegal causado por decisão judicial desamparada por qualquer fundamento legal.

O que se deve evitar, com isso, é que o aplicador da norma jurídica fragilize um direito previsto como cláusula pétrea, em aparente desconformidade com o garantismo penal, por meio da elasticidade de preceitos legais que viola direitos fundamentais constitucionais.

 


 

[1] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. v. único. 2. ed. São Paulo: Editora Juspodivm, 2014, p. 69.

[2] CALLEGARI, André Luís; WERMUTH, Maiquel Angelo Dezordi; ENGELMANN, Wilson. DNA e investigação criminal no Brasil. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2012, p. 82.

[3] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 20 jan. 2021.

[4] MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Atlas, 3ª edição, 2000, p. 39.

[5] BRASIL. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_univ_bioetica_dir_hum.pdf. Acesso em: 21 jan. 2021.

[6] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. v. único. 2. ed. São Paulo: Editora Juspodivm, 2014, p. 76.

[7] MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Atlas, 3ª edição, 2000, p. 41.

[8] STF. HC 99289, Relator(a): CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 23/06/2009, DJe 04/08/2011.

[9] Lopes Junior, Aury. Direito processual penal / Aury Lopes Junior. – 17. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2020, p. 50.

[10] STJ. REsp 1.111.566 DF, Relator: MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Terceira Seção, julgado em 28/03/2012, DJe 04/09/2012.

[11] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 21 jan. 2021.

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    é advogado criminalista, especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, especialista em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e membro do Grupo Candango de Criminologia da Universidade de Brasília.

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