Opinião

Os instrumentos de intervenção do Bacen no SFN podem prevenir e mitigar crises?

Autor

  • Felipe Herdem Lima

    é mestre em Direito da Regulação pós-graduado em Direito Empresarial autor dos livros: Liquidação Extrajudicial e seu devido processo administrativo Direito Bancário: Conceitos básicos Sistema Financeiro Nacional Contemporâneo: regulação e desafios; Resolução Bancária: Aspectos controversos e Novas Tendências do Sistema Financeiro Nacional; e sócio do escritório Herdem & Latini Advogados.

28 de janeiro de 2021, 20h35

Após quase 50 anos da promulgação da Lei 6.024/7, parece ser uma boa oportunidade para refletirmos sobre a trajetória da lei e, em especial, sobre sua capacidade de resistir ou não às transformações da sociedade atual. Dessa forma, o presente artigo pretende realizar uma breve reflexão, no que condiz com a capacidade da lei de lidar com a complexidade e dinamicidade dos mercados financeiros contemporâneos.

Como exemplo dessa incapacidade de evitar crises bancárias com os mecanismos existentes merece destaque a crise financeira iniciada no mercado hipotecário subprime norte-americano, que se alastrou por diversos países do mundo, provocando efeitos catastróficos. De acordo com dados do Fundo Monetário Internacional (FMI), as baixas de carteiras de ativos situam-se no patamar de US$ 4 trilhões, dos quais US$ 2,8 trilhões seriam arcados por instituições financeiras [1]. Portanto, as externalidades negativas decorrentes das crises do século passado (em especial a de 1929) e as crises ocorridas recentemente levaram a um avanço da percepção econômica em relação à importância do setor bancário e financeiro, culminando na edição de normas e de aparatos institucionais para prevenção e mitigação de crises do setor para a manutenção do seu equilíbrio.

Entretanto, apesar da existência de um quadro regulatório para o setor, o desafio continua sendo o mesmo para o regulador, ou seja, este se vê diante da necessidade de aprimorar os aparatos regulatórios existentes para que eles se moldem à complexidade e dinamicidade do sistema financeiro atual. Nesse sentido, alguns exemplos nacionais podem representar a complexidade do sistema financeiro atual, como o desafio imposto às autoridades monetárias na regulação da conglomeração das atividades financeiras ("grandes demais para quebrar") e a dificuldade de elaboração de normas que sejam capazes de monitorar e prevenirem o surgimento de riscos sistêmicos, em casos de conglomerados financeiros que operam em diversos países.

Por conseguinte, diante dos novos desafios impostos pela sociedade atual, este artigo se apresenta como de crucial importância, pois se pretende analisar a eficiência do instrumental regulatório à disposição do Bacen para enfrentar todas estas incitações, principalmente de cunho de insolvência e direitos constitucionais. Sobre o tema, merece destaque a imperatividade da aplicação de regimes especiais pelo Bacen, que, apesar de permitir alguma margem de manobra, pode ser objeto de críticas, já que abre possibilidade para situações em que instituições que estejam em situações de insolvência continuem em funcionamento, podendo agravar ainda mais a situação da instituição, aumentando, portanto, o prejuízo para seus credores. Sobre esse ponto, a experiência brasileira é rica em exemplos.

Caso emblemático ocorreu na década de 1980 com o Grupo Coroa Brastel, em que ficou comprovada a existência de documentos preparados pela comissão de sindicância do Bacen que atestavam o conhecimento do Banco Central, desde 1979, da grave situação do grupo, inclusive com um parecer de seus inspetores indicando a existência de "caixa dois", e a emissão de letras de câmbio em duplicidade [2]. Entretanto, mesmo diante de tais constatações, o Bacen só decretou a intervenção da instituição e a consequente liquidação em 1983, causando um prejuízo para cerca de 34 mil investidores do grupo, o que gerou para o Bacen uma ação judicial [3] sob a acusação de omissão em sua supervisão [4].

Já no caso do Banco Econômico, calcula-se que, se o Bacen tivesse agido com maior rapidez, o rombo do banco teria custado menos de R$ 700 milhões no início de março de 1994, ou o dobro disso dois meses após. O prolongamento da situação por cinco meses fez com que o rombo se elevasse para cerca de R$ 3 bilhões no momento da intervenção [5].

A intervenção ocorrida no Banco Santos, em novembro de 2004, também foi objeto de críticas. Nesse caso, a degradação financeira da instituição já vinha sendo noticiada pela mídia desde 2001, com a suspeita de operações de "maquiagem" em suas contas [6], além de documentos do próprio Bacen indicando a suspeita de existência de operações consideradas "não usuais" por parte do banco desde 2002, quando a autoridade monetária enviou técnicos à sua sede. Todos esses relatos foram confirmados pelo rebaixamento do rating do Banco Santos pela agência Fitch, em dezembro de 2003, em virtude da preocupação com a deterioração de sua carteira de crédito, seguido pelo rebaixamento do rating do banco em janeiro de 2004 pela Standard&Poors por razões semelhantes [7]. Assim, utilizando como referência a data de 31 de março de 2004, em que o Bacen apontou que o patrimônio líquido exigido do banco acusava um déficit de R$ 463,69 milhões, e os 226 dias decorridos entre esse apontamento e a consequente intervenção, o déficit na instituição quase dobrou, aumentando consideravelmente os prejuízos para os seus investidores [8], não sendo o caso do então presidente do Senado, José Sarney, que um dia antes da intervenção realizou saque de R$ 2,2 milhões de investimentos no banco.

Já concluindo, é importante frisar que a ineficiência do aparato regulatório aqui tratado foi reconhecida pelo Bacen no final do ano passado, quando este encaminhou o Projeto de Lei n° 281/2019 visando a substituir a Lei nº 6.024/74, implantando novas diretrizes regulatórias, muitas das quais influenciadas pela literatura estrangeria, objetivando gerar uma maior eficiência aos regimes atuais.

 


[1] FMI. Global Financial stability report: responding to the financial crisis and measuring systemic risk. Washington: International Monetary Fund, 2008, pp. 30-31.

[2] Sobre o tema, é oportuna a transcrição de uma parte do relatório da sindicância interna realizada pelo BACEN, disponível nos autos do AC 89.01.00426-7/MG, TRF 1.ª Região, fls. 281 e 203. “Em 19.03.80 […] o então chefe da Refim/RJ, Sr. Devanildo de Oliveira, comunicava ao Defim a gravidade das irregularidades constatadas na Coroa S.A Crédito, Financeiro e Investimento, ao encaminhar o relatório da inspeção realizada naquela financeira. Meses depois, um expediente datado de 28.11.80 e dirigido à Chefia da REFIM/RJ […] o auditor desta Autarquia, Sr. José Carlos Batista, fazia referência às mesmas irregularidades, assinalando que “ o íntimo relacionamento entre as empresas do grupo ignorava os mais elementares princípios administrativo e contábeis, em razão do que firmava a sua convicção de que só uma inspeção integrada poderia alcançar resultados mais consistentes. Relatório de inspeção de 30.06.81 constatou ineficiência de capital de giro para bancar o total de seu financiamento e de sua responsabilidade perante seus investidores em Letras de Câmbio. Descobriu-se, em maio/82, pela fiscalização do Bacen a conta bancária n.º 623-160128, junto à agência 1º de março do Banco Nacional S.A, conhecida pelo codinome “caixa 2”, por não registrada na contabilidade da empresa Coroa S.A – Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários […]”.

[3] AC 95.01.26055-0/DF, TRF 1.ª Região, Rel. Juiz Fernando Gonçalves, j. 25.03.96 que condenou o BACEN por sua omissão quanto às irregularidades verificadas. Entretanto, a decisão foi revertida pelo STJ, no REsp 44500/MG, Rel. Min. Eliana Calmon, j. 28.11.00, que destacou que fiscalizar não significa atuar, e pela inexistência de nexo de causalidade entre a ação ou omissão do Estado e o dano sofrido.

[4] PINTO, Gustavo Mathias Alves. Op.cit., p. 138.

[5] Dados de Ronaldo Brasiliense na reportagem que lhe rendeu o prêmio Esso de jornalismo em 1998, ver: ISTO É. A conta do Proer, 29 jul. 1998, p. 108 e ss.

[6] FOLHA DE SÃO PAULO. BC via problemas no Banco Santos desde 2001, 26 dez. 2004, p. B3.

[7] FOLHA DE SÃO PAULO. Banco Santos põe em dúvida agências de risco, 28 nov. 2004, p. B17.

[8] FOLHA DE SÃO PAULO. BC Via problemas no Banco Santos desde 2001, 26 dez. 2004, p. B3.

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    é sócio do escritório GFX Advogados, professor do FGV Law Program, doutorando em Direito Público na Universidade de Coimbra e mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio.

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