Áureos Tempos

Flecha de Lima conta detalhes do resgate de brasileiros no Iraque, em 1990

Autor

27 de janeiro de 2021, 11h27

Ao longo de décadas, a diplomacia brasileira vinha concebendo uma fórmula nacional para lidar com as complexas questões relacionadas às relações exteriores. O Brasil conquistou, assim, um lugar de prestígio no concerto das nações. Nos últimos meses, contudo, o longo trabalho passou a ser desconstruído. Atritos com o maior parceiro comercial — a China — e aposta em um único aliado internacional — segundo a qual a única parceria relevante seria com o ex-presidente Donald Trump — compõem o quadro de isolamento no qual o país se encontra hoje. A dificuldade para conseguir os insumos necessários à produção de vacinas contra a Covid-19 é o capítulo mais recente desse desmonte.

Reprodução/Itamaraty
Flecha de Lima conduziu a negociação que permitiu o resgate de 450 brasileiros que estavam no Iraque às vésperas da eclosão da Guerra do Golfo
Reprodução/Itamaraty

Nem sempre foi assim. O embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima — um dos diplomatas brasileiros mais importantes da segunda metade do século 20 — é um dos principais nomes dessa tradição de excelência. Imune à mediocridade e à incompetência, Flecha de Lima protagonizou o desenlace de um dos episódios mais delicados da história recente do país: o resgate de cerca de 450 brasileiros feitos reféns pelo ditador Saddam Hussein às vésperas da eclosão da Guerra do Golfo.

Saddam usaria brasileiros trabalhadores da construtora Mendes Júnior como escudos humanos no caso de um bombardeio norte-americano — desde os anos 1980, uma cooperação bilateral entre os dois países vinha engordando a pauta de exportações brasileiras, como a venda do lançador de foguetes Astros, da Avibras, e de veículos Passat, da Volkswagen, além da ida de construtoras brasileiras ao Iraque para a construção de estradas e outras obras de infra-estrutura.

Para relembrar a olímpica atuação do hábil diplomata, o jornalista Marcelo Tognozzi publicou no portal Poder 360, no último sábado (23/1), uma conversa que teve com Flecha de Lima em 2003. À época da negociação, ele era embaixador em Londres e deixara suas férias no sul da França para rumar a Bagdá. Segundo Tognozzi, o relato é "uma aula de diplomacia, ousadia, coragem, solidariedade humana e profissionalismo". "Tudo o que se espera de um embaixador de verdade e que hoje se tornou artigo raro", diz.

Flecha de Lima conta que seu arsenal inicial para debelar a crise era uma carta do então presidente Collor a Saddam, para ser usada em caso de necessidade. Sua estratégia era manter a pressão com o grande número de brasileiros, pois a ideia era que todos deixassem o país juntos, "como forma de pressionar o governo do Iraque".

Mas um funcionário do SNI (antigo Serviço Nacional de Informações) aconselhou Itamar Franco — que estava interinamente na presidência — a deixar partir os brasileiros que já tivessem visto. Flecha de Lima, contudo, recusou-se a cumprir a ordem, pois era "uma instrução suicida". Se um brasileiro ficasse para trás, a operação fracassaria e perderia o poder de pressão.

"Começou-se a criar um fermento de insatisfação no acampamento da Mendes Júnior. O pessoal estava muito revoltado e fui lá. O Rosental Calmon Alves, do Jornal do Brasil, tremendo gozador, disse que eu não conseguia me comunicar com os operários, porque falava difícil. No dia seguinte mudei o discurso. Um gerente da Mendes Júnior não me queria no acampamento, apavorado com a possibilidade de eu ser sequestrado. O clima era esse. Fiz um discurso bem pedestre na linguagem. Nessa altura a Lúcia [mulher de Paulo Tarso] decidiu vir para Bagdá, mesmo contrariando minha orientação e a do Itamaraty. Usei isso como trunfo: 'Olha aqui, quero dar uma prova de que a coisa está se normalizando, tanto que mandei vir minha patroa'. Esse troço rendeu, porque usei a expressão patroa e os jornalistas me gozaram pra burro. Mas surtiu efeito", conta Flecha de Lima.

Para continuar as negociações, Flecha de Lima identificou uma peça chave: Wissan Zhawyi, o subsecretário de relações exteriores do Iraque, muito influente sobre as decisões de Bagdá. "E o acesso a ele obtivemos usando o diplomata René Loncan, seu amigo. A Lúcia fez um jantar para ele na embaixada. Foi aquela luta, porque não havia mais gêneros em Bagdá. Mas o motorista da embaixada conseguiu comprar um carneiro e o cozinheiro fez um carneiro ótimo. Só que Wissan Zhawyi era vegetariano. Então foi uma decepção danada. Mas ele me ajudou, porque era parte da máquina permanente do Ministério do Exterior", relata.

Identificando a maneira como o desenlace da crise poderia ser alcançado, Flecha de Lima nem precisou contatar diretamente Saddam Hussein. Contou, por exemplo, com a intermediação de Tariq Aziz [ministro dos Negócios Estrangeiros] e Yasser Arafat.

"O Arafat eu já conhecia e o procurei. Ele tinha uma casa em Bagdá e era muito meu camarada. Era fascinado pelo Brasil e, coitado, levou um cano aqui. Ele era empreiteiro no Oriente Médio, quando começou a construção de Brasília. Um vigarista vendeu para ele um lote apregoando qualidades excelsas para este lote e ele nunca conseguiu achar o diabo do lote. Eu ajudei a procurar também, mas nunca achei. Ele contava isso com muita graça", diz Flecha de Lima.

Antes de ir a Bagdá, o diplomata passou pela Jordânia, onde conseguiu uma audiência com o rei Hussein. "Pedi para ele dar uma palavra com o Saddam e de fato ele deu. E o Arafat a mesma coisa. Eu o procurei e disse: 'Chairman — ele era conhecido como chairman Arafat — precisamos de uma ajuda sua aí com o Saddam, faça ver a ele que é um erro histórico que está cometendo. Isso vai dificultar no futuro uma possível cooperação entre o Brasil e o Iraque'. O Arafat concordou e prometeu intervir junto ao Saddam. Foram duas ajudas políticas", revela.

Mas quando tudo parecia bem encaminhado — prossegue Flecha de Lima —, o presidente Collor teve uma reunião com George Bush, presidente dos Estados Unidos. "Os americanos redigiram um comunicado à imprensa dizendo o seguinte: 'O presidente Collor e o presidente Bush conversaram sobre a situação do Oriente Médio e convieram ambos que Saddam Hussein é um bandido'. Uma coisa desse gênero. E eu com mais de 400 brasileiros lá", conta.

Convocado a dar explicação a Nezar Hamdoum [homem forte do Ministério do Exterior e encarregado da propaganda no Iraque], Flecha de Lima desconversou, afirmando que a informação ainda precisaria ser confirmada. "Então mandei um telegrama para o Rezek [Francisco Rezek, ministro das Relações Exteriores], dizendo que a situação estava muito crítica, porque houve este problema do comunicado e isso poderia ser atenuado, caso ele concordasse em mandar um telegrama para o ministro do Exterior do Iraque. Preparei a minuta do telegrama. Telefonei para o Rezek e falei que a solução era essa e que ele mandasse o telegrama. Você pensa que mandou? Não mandou. Estava a fim de me queimar mesmo".

Para resolver o impasse — mesmo sem o comunicado oficial do governo brasileiro —, Flecha de Lima convenceu Nezar Hamdoum de que Collor havia sido citado fora de contexto e de que, na hora de produzirem a nota, penderam o texto para a posição americana. 

O diplomata revela também que a ele foi sugerido que deixasse o Iraque, mesmo sem o resgate dos brasileiros. Mas ele respondeu dizendo que só sairia depois de o último brasileiro retornar.

A operação logística também teve detalhes interessantes. "A Varig não quis desviar um avião da Europa para buscar o pessoal. Então fretei aviões da Iraq Airways. E foi uma coisa chata, porque o tesouro americano já tinha bloqueado as contas dos iraquianos. Acertamos o pagamento do avião e o banco Manufactures Hannover Trust não quis transferir o dinheiro, atrasando a operação. Não tive dúvida: botei a boca no trombone, dizendo que a culpa era do Manufactures Hannover, que não quis transferir o dinheiro".

"Cheguei aqui [Brasil] em 12 de outubro de 1990, dia de Nossa Senhora Aparecida. Acho que foi a primeira vez que um diplomata brasileiro chegou no Brasil e dez mil pessoas estavam no aeroporto".

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!