Opinião

A nova Lei de Licitações e os pressupostos de fato na consideração jurídica

Autores

  • Vanessa Cerqueira Reis de Carvalho

    é procuradora do Estado do Rio de Janeiro sócia do escritório Medina Osório Advogados e doutoranda em Direito Financeiro e Econômico Global pela Universidade de Lisboa.

  • Thaís Marçal

    é advogada corregedora Suplente de Controle Externo da Secretaria de Fazenda do Estado do Rio de Janeiro mestre em Direito pela UERJ e coordenadora acadêmica da Escola Superior de Advocacia da OABRJ.

24 de janeiro de 2021, 6h04

A nova Lei de Licitações traz em seu texto acréscimos valiosos sobre a atuação jurídica no processo licitatório, inclusive, como correção legislativa com a positivação da responsabilidade pessoal do parecerista, somente nos casos de dolo ou fraude.

No entanto, para o momento, o que interessa são os requisitos que deverão ser observados na elaboração do parecer, conforme disposto no artigo 52, §1º, que dispõe:

"Na elaboração do parecer jurídico, o órgão de assessoramento jurídico da Administração deverá:
I – apreciar o processo licitatório conforme critérios objetivos prévios de atribuição de prioridade;
II – redigir sua manifestação em linguagem simples e compreensível e de forma clara e objetiva, com apreciação de todos os elementos indispensáveis à contratação e com exposição dos pressupostos de fato e de direito levados em consideração na análise jurídica;

III – dar especial atenção à conclusão, que deverá ser apartada da fundamentação, ter uniformidade com os seus entendimentos prévios, ser apresentada em tópicos, com orientações específicas para cada recomendação, a fim permitir à autoridade consulente sua fácil compreensão e atendimento, e, se constatada ilegalidade, apresentar posicionamento conclusivo quanto à impossibilidade de continuidade da contratação nos termos analisados, com sugestão de medidas que possam ser adotadas para adequá-la à legislação aplicável".

O inciso I inaugura uma importante garantia para as assessorias jurídicas, que pode ser interpretada como norma de prudência, em que é possível disciplinar a nível interno quais são os critérios objetivos para atribuição de prioridade, que devem coincidir com as necessidades públicas prioritárias e não com a falta de diligência do administrador em enviar o documento para análise em momento tardio. Portanto, mesmo que inovadora e ainda sujeita a interpretações variadas, a atribuição de prioridade deve ser determinada pelo administrador, de forma escrita e objetiva, o que não impede que a própria assessoria jurídica discipline utilizando balizas constantes na própria lei de critérios objetivos que definam prioridade.

O inciso II trata que a redação do parecer deve ter uma linguagem simples, clara e objetiva e atesta que a apreciação deve ser realizada de todos os elementos indispensáveis a contratação, devendo o parecerista expor não só os pressupostos de direito levados em consideração, como os pressupostos de fato.

No mesmo sentido, mesmo em questões predominantemente técnicas, a linguagem de todo o processo licitatório deve ser simples, clara e objetiva. Dessa forma, o pressuposto de fato a ser levado em consideração não deverá ser compreendido somente como o check list dos documentos juntados aos autos. Como, juntamente com os pressupostos de direito, as questões de fato passam a integrar a motivação, seja pela possibilidade ou não do certame.

Portanto, havendo dúvida fática do parecerista, esse pode e deve levar em consideração com o mesmo peso que as questões de Direito. O esclarecimento vincula o administrador, mas o pressuposto fático agora compõe as razões de decidir.

Por exemplo, no caso de dúvida sobre os valores e tabelas de preço utilizadas, sobre o projeto ou mesmo sobre as razões de uma contratação direta todos os fatos devem ser esclarecidos, uma vez que, se os fatos são levados em consideração na análise jurídica, sobre os mesmos não devem pairar dúvidas.

A própria lei concede, igualmente, a solução para a tal avaliação no artigo 5º, em que preconiza que serão observados os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da eficiência, do interesse público, da probidade administrativa, da igualdade, do planejamento, da transparência, da eficácia, da segregação de funções, da motivação, da vinculação ao edital, do julgamento objetivo, da segurança jurídica, da razoabilidade, da competitividade, da proporcionalidade, da celeridade, da economicidade e do desenvolvimento nacional sustentável, assim como as disposições do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).

A esse respeito, vale destacar que o Tribunal de Contas da União (à guisa exemplificativa, leia-se o Acórdão 13.375/2020) tem sua jurisprudência orientada a reconhecer, atualmente, que o parecerista jurídico pode ser responsabilizado de erro grosseiro consistente em violar a jurisprudência da corte. Juliana Palma tece críticas a tal orientação, assim como Lademir Rocha [1]. Em apertadíssima síntese, a lição propositiva da mencionada doutrinadora parece digna de destaque: "Ônus de dizer a jurisprudência pacífica não pode ser transferido ao particular e nem aos advogados públicos, que jamais poderão ser responsabilizados por deixar de reconhecê-la ou desconsiderá-la (tipificação assim fere a reserva de lei)".

Em outras palavras, relegar a definição de um conceito jurídico aberto, como é o caso do erro grosseiro, a concepção da escolha acertada do homem médio não parece contribuir para dotar de segurança jurídica tão necessária à matéria.

Dessa forma, caminha bem o legislador pátrio por ocasião do projeto de lei em tramitação na tentativa de instituir critérios objetivos e numerus clausulus dos standards de avaliação da juridicidade de um parecer jurídico. Ou seja: impossível realizar interpretação extensiva para gerar responsabilização do parecerista.

Negacionismos extremados, para ambos os lados, em nada contribuem para o desenvolvimento do Direito. Em outras palavras: negar hipóteses de responsabilização do parecerista jurídico é legitimar que um dos atores do processo licitatório está imune a qualquer tipo de responsabilização, gerando os perversos efeitos da impunidade. De outra sorte, gerar responsabilização em hipóteses que fogem ao domínio de conhecimento, bem como o domínio final sobre o fato, é igualmente capaz de afastar os gestores probos da Administração, diante do reconhecimento do que se convencionou denominar de "Direito Administrativo do medo" [2].

Assim, surgindo dúvida na análise fática que possa aviltar algum desses princípios, tem espaço o posicionamento pontual do órgão jurídico. É lógico que a responsabilidade sobre a afirmativa é do gestor, porém, na busca da transparência e probidade, é seu dever esclarecer, informar e vincular as respostas de suas decisões.

A transparência é um princípio imperioso em todas as ações que envolvam a sociedade e o Estado, principalmente na alocação de recursos públicos, e cabe a todos os envolvidos nesse processo a colaboração para que se alcance a efetividade do desenvolvimento nacional sustentável.

 


[2] Sobre o tema, vale a leitura de VALGAS, Rodrigo. Direito Administrativo do medo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020.

Autores

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    é procuradora do Estado do Rio de Janeiro, sócia do Medina Osório Advogados e doutoranda em Direito Financeiro e Econômico Global pela Universidade de Lisboa.

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    é advogada, árbitra listada no CBMA, Cames e Camesc, mestre em Direito pela UERJ, coordenadora acadêmica da ESA OAB/RJ, membro do Fórum Permanente de Transparência e Probidade Administrativa da Emerj, embro efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e membro do Instituto de Direito Administrativo Sancionador Brasileiro (Idasan).

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