Segunda Leitura

Custas judiciais: quem paga a conta da Justiça?

Autor

  • Leonardo Resende Martins

    é juiz federal no Ceará professor do Centro Universitário Farias Brito (FB Uni) e formador judicial na Enfam e na Esmafe (TRF da 5ª Região). Possui MBA em Poder Judiciário pela Fundação Getúlio Vargas e Master em Gestão Integrada do Meio-Ambiente pela Universidade de Pavia na Itália e atualmente está cursando o Mestrado Profissional em Direito e Poder Judiciário da Enfam.

24 de janeiro de 2021, 8h05

Custas judiciais costumam ser um tema particularmente sensível no debate sobre o sistema de Justiça. Como qualquer tributo, ninguém gosta de pagá-las. Mas, como não existe almoço grátis, o serviço judiciário precisará ser suportado por alguém. Daí a pergunta: no Brasil, quem paga a conta da Justiça?

Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, em 2019, a arrecadação das custas, emolumentos e taxas atingiu a cifra de R$ 13,1 bilhões, o equivalente a somente 13% das despesas do Poder Judiciário brasileiro[i]. Dito de outra forma, o dinheiro que remunera juízes e servidores e que paga as faturas dos fóruns e tribunais não vem propriamente do bolso dos usuários da Justiça; vem dos contribuintes em geral, por meio de tributos indiretos.

Isso, à primeira vista, poderia parecer uma vantagem. Afinal, o pagamento das custas e demais despesas processuais pode significar um obstáculo ao acesso à Justiça. Para resolver esse problema, a Constituição Federal de 1988 previu, dentre o rol dos direitos fundamentais, que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos” (artigo 5º, inciso LXXIV). Por sua vez, o Código de Processo Civil conferiu vasta amplitude à gratuidade judiciária, abrangendo as custas, as despesas processuais em geral e os honorários advocatícios e estabelecendo uma presunção relativa de hipossuficiência para as pessoas físicas. Vale lembrar ainda que, no primeiro grau de jurisdição dos juizados especiais, os litigantes são isentos do pagamento de custas, taxas ou despesas, inclusive de honorários advocatícios, independentemente de sua condição econômica (artigo 54 da Lei 9.099/95).

Num país extremamente desigual, com significativa parte da população vivendo abaixo da linha da pobreza, a gratuidade judiciária, ao lado da previsão constitucional da Defensoria Pública como instituição responsável à defesa dos necessitados (artigo 134), constitui importante garantia do cidadão e fator indispensável de legitimação do sistema de Justiça, em sintonia com o que Mauro Cappelletti e Bryant Garth chamaram de primeira onda renovatória do acesso à Justiça[ii].

É preciso, contudo, chamar a atenção para algumas distorções sistêmicas que uma excessiva liberalidade na concessão desse benefício pode acarretar.

Como dito anteriormente, as custas judiciais representam parte pouco relevante das fontes de custeio do Poder Judiciário. Em outras palavras, aqueles que usufruem diretamente dos serviços judiciários não pagam essa conta; o contribuinte é quem paga. Num sistema tributário caracterizado por forte carga regressiva e pouca equidade[iii], em que os pobres recolhem proporcionalmente mais tributos que os ricos, isso é um grave problema. Ou seja, os miseráveis subsidiam a litigância dos abastados.

Isso explica porque determinadas corporações — bancos, seguradoras, concessionárias de serviços públicos, operadoras de plano de saúde etc. — utilizam sistematicamente o Judiciário para desaguar seus litígios. Num cálculo econômico, vale a pena baixar a qualidade de seus serviços e descumprir a lei, pois eventuais ações judiciais de consumidores — apenas aqueles que se dispuserem a romper a inércia — saem relativamente baratas.

Um modelo mais justo deveria — para utilizar uma expressão dos economistas — internalizar os custos da judicialização para quem dela efetivamente se beneficia. Trata-se de uma questão de distributividade e eficiência do sistema. As custas e as despesas processuais em geral devem servir como fator de desestímulo econômico à litigância, provocando alterações no comportamento dos agentes de modo a orientá-los a uma cultura de observância da lei e dos contratos, ao aperfeiçoamento de seus produtos e de serviços e à instituição de mecanismos de prevenção de litígios, como programas corporativos de desjudicialização.

É necessário, portanto, que os juízes sejam bem criteriosos na apreciação dos pedidos de justiça gratuita. Não apenas com propósitos fiscalistas, arrecadatórios, mas, sobretudo, para, a partir de uma perspectiva de economia comportamental, prover os incentivos adequados aos cidadãos, às empresas e ao próprio Poder Público, o maior litigante dentre todos.

Não proponho, evidentemente, tolher dos mais pobres o acesso gratuito à Justiça. Tampouco defendo a fixação de custas em patamares exorbitantes. Sobre esse ponto, aliás, o Supremo Tribunal Federal consolidou o entendimento de que “viola a garantia constitucional de acesso à jurisdição a taxa judiciária calculada sem limite sobre o valor da causa” (Súmula 667), estabelecendo, pois, um teto que assegure correlação entre a quantia paga pela parte e o custo da atividade prestada.

É preciso apenas compelir aqueles que possuem capacidade econômica a efetivamente pagar as custas devidas. Vale recordar que a maior parte das ações judiciais propostas no Brasil tramita sob a garantia da gratuidade. Na Justiça Federal, por exemplo, 73% dos casos novos têm como porta de entrada os juizados especiais[iv]. Só aí já se vão quase três quartos das demandas em que nada é cobrado das partes, pelo menos no primeiro grau, mesmo que tivessem condições financeiras de pagar.

No quarto remanescente, as partes costumam fazer de tudo para evitar o recolhimento das custas. E nem precisam dedicar muito esforço, visto que a mera autodeclaração de pobreza basta para as pessoas físicas terem deferido o benefício da gratuidade judiciária, ficando a depender de eventual impugnação pelo adversário ou de questionamento pelo juiz, de ofício.

Não é incomum que pessoas de renda elevada, que residam em apartamentos suntuosos ou em condomínios de luxo ou que estejam envolvidas em transações de elevado vulto, se declarem “pobres nos termos da lei”, sem indicar nenhum elemento concreto que justifique a impossibilidade de pagar as custas. Elas partem simplesmente da falsa ideia de que a Justiça é um serviço pelo qual não se precisa pagar. E já vimos que, quando o rico não arca com sua despesa, o pobre é quem assume a bronca.

O Superior Tribunal de Justiça possui farta jurisprudência afastando a aferição da hipossuficiência com base unicamente em um critério objetivo de renda. De todo modo, deve-se ter em mente que o rendimento médio mensal do trabalhador brasileiro é de R$ 2.291[v], considerando apenas as pessoas que estejam efetivamente ocupadas. Assim, o juiz deve exigir dos que ganham quatro, cinco vezes esse valor uma comprovação mais cabal da sua necessidade. Para situações limítrofes, o CPC oferece soluções alternativas à concessão ampla e irrestrita da gratuidade, como o parcelamento de custas (artigo 98, parágrafo 6º) ou a limitação do benefício a específicos atos processuais ou a simplesmente uma redução no valor das despesas (artigo 98, parágrafo 5º).

É preciso também que as custas sejam recolhidas no montante adequado. Sempre observo com curiosidade petições iniciais que indicam como valor da causa – base de cálculo das custas – uma quantia eminentemente simbólica “para fins meramente fiscais”. É como se fosse uma confissão de sonegação: “Sr. juiz, o conteúdo econômico da lide é elevado, porém, como desejo pagar custas mais baixas, estou atribuindo à causa um valor fictício.” Isso é inadmissível.

Na minha experiência na magistratura federal, vejo com muita frequência ações, especialmente de direito tributário, que envolvem pleitos milionários de restituição ou compensação, em que a parte autora aponta uma quantia insignificante como valor da causa. Quando intimada para justificar a inconsistência, alega-se, em geral, a dificuldade de se realizar previamente a apuração dos ganhos. Não me parece, contudo, excessivo exigir tal ônus do autor, já que o CPC impõe que o pedido deva ser certo (artigo 322), assim como o próprio valor da causa (artigo 291). Quem ajuíza uma ação deve saber estimar, mesmo que por aproximação, o quanto pretende receber ao final, ainda que tenha que contratar um contador para realizar esse cálculo.

Custas fixadas em patamares mais compatíveis com as despesas geradas na prestação do serviço, moderação na concessão da gratuidade judiciária e atenção no controle do valor da causa são fatores fundamentais para inibir demandas aventureiras e estimular o tratamento adequado dos conflitos. Se o bolso é tido como a parte mais sensível do ser humano, é necessário saber mexer nele com inteligência e racionalidade. Do contrário, os bolsos dos mais pobres é que, literalmente, pagarão a conta.

[i] Relatório Justiça em Números 2020, disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB-V3-Justi%C3%A7a-em-N%C3%BAmeros-2020-atualizado-em-25-08-2020.pdf, acesso em 23.1.2021, p. 74 e 77.

[ii] CAPPELLETI, Mauro e GARTH, Bryanth. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto

Alegre, Editora Fabris, 1988.

[iii] Sobre o tema, confira-se o estudo “Indicadores de Equidade do Sistema Tributário Nacional”, produzido pelo Observatório da Equidade do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social – CDES, disponível em https://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=1240, acesso em 23.1.2021.

[iv] Conselho Nacional de Justiça, Relatório Justiça em Números 2020, disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB-V3-Justi%C3%A7a-em-N%C3%BAmeros-2020-atualizado-em-25-08-2020.pdf, acesso em 23.1.2021, p. 60.

[v] Dados do IBGE relativo ao primeiro trimestre de 2019, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, disponível em https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/media/com_mediaibge/arquivos/8ff41004968ad36306430c82eece3173.pdf, acesso em 23.1.2021.

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