Opinião

A (in)constitucionalidade da complementação do ICMS-ST em São Paulo

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22 de janeiro de 2021, 6h05

A Lei Estadual n° 17.293/2020, de 15/10/2020, entre as diversas medidas de ajuste fiscal inseriu o artigo 66-H ao texto da Lei Estadual nº 6.374/1989 [1] para disciplinar a cobrança do complemento do imposto retido por substituição tributária no Estado de São Paulo, quando o valor da operação ou prestação final com a mercadoria (preço praticado) for superior à base de cálculo utilizada para fins de retenção do ICMS por substituição tributária.

Em alternativa à cobrança do complemento do imposto, em seu parágrafo único a lei também autorizou o Poder Executivo a conceder regime especial a contribuintes varejistas que optarem pela definitividade da base de cálculo, dispensando o pagamento da complementação do imposto retido antecipadamente, questão essa que ainda pende de regulamentação.

Contudo, a complementação do imposto devido por substituição tributária, nos termos do caput do artigo 66-H Lei Estadual n° 6.374/1989, foi recentemente regulamentada por meio do Decreto Estadual n° 65.471/2021, publicado no Diário Oficial de 15/1/2021, trazendo a seguinte redação ao artigo 265 do RICMS/SP:

"Artigo 265 O complemento do imposto retido antecipadamente deverá ser pago pelo contribuinte substituído, observada a disciplina estabelecida pela Secretaria da Fazenda e Planejamento, quando (Lei 6.374/89, art. 66-H, acrescentado pela Lei 17.293/20, art. 24):
I – o valor da operação ou prestação final com a mercadoria ou serviço for maior que a base de cálculo da retenção;

II – da superveniente majoração da carga tributária incidente sobre a operação ou prestação final com a mercadoria ou serviço" (grifos dos autores).

Em sua redação original, o artigo 265 acima transcrito previa a possibilidade de cobrança do complemento do ICMS retido em substituição tributária em apenas duas hipóteses: 1) valor da operação ou prestação final em valor superior ao preço final a consumidor fixado por autoridade competente (pauta fiscal); ou 2) majoração superveniente da carga tributária incidente sobre a operação ou prestação final com a mercadoria ou serviço.

Com a vigência do artigo 66-H da Lei n° 6.374/89, acrescentado pela Lei 17.293/2020 e regulamentado pelo Decreto Estadual n° 65.471/2021, ampliou-se previsão de cobrança do complemento do ICMS retido por substituição tributária, aplicando-se genericamente a qualquer situação em que o valor da operação final for superior a base de cálculo da retenção.

Sendo assim, o Estado de São Paulo disciplinou em sua legislação interna o entendimento que grande parte dos Estados da federação passaram a adotar após o julgamento do RE nº 593.849/MG pelo STF (Tema 201), no sentido de exigir a complementação do ICMS-ST como via reflexa ao ressarcimento do imposto, amparada à interpretação de que a base de cálculo de retenção não seria definitiva.

Quando do julgamento da ADI n° 1851, o STF havia firmado a tese de que a base de cálculo do ICMS-ST, para cumprimento da sua finalidade de simplificação da fiscalização e da arrecadação, deveria ser definitiva, sem a possibilidade de restituição ou complementação do imposto pago antecipadamente caso a operação do contribuinte substituído seja realizada sob valor distinto da base de cálculo da operação presumida:

"A lei complementar, por igual, definiu o aspecto temporal do fato gerador presumido como sendo a saída da mercadoria do estabelecimento do contribuinte substituto, não deixando margem para cogitar-se de momento diverso, no futuro, na conformidade, aliás, do previsto no art. 114 do CTN, que tem o fato gerador da obrigação principal como a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência. O fato gerador presumido, por isso mesmo, não é provisório, mas definitivo, não dando ensejo a restituição ou complementação do imposto pago, senão, no primeiro caso, na hipótese de sua não-realização final. Admitir o contrário valeria por despojar-se o instituto das vantagens que determinaram a sua concepção e adoção, como a redução, a um só tempo, da máquina-fiscal e da evasão fiscal a dimensões mínimas, propiciando, portanto, maior comodidade, economia, eficiência e celeridade às atividades de tributação e arrecadação. Ação conhecida apenas em parte e, nessa parte, julgada improcedente" (ADI 1851, Relator(a): ILMAR GALVÃO, Tribunal Pleno, julgado em 08/05/2002, DJ 22-11-2002 PP-00054 EMENT VOL-02092-01 PP-00139 REPUBLICAÇÃO: DJ 13-12-2002 PP-00060).

No entanto, no julgamento do Tema 201 em repercussão geral, o STF alterou radicalmente seu entendimento para definir que a base de cálculo de retenção não seria definitiva, autorizando a restituição do imposto cobrado a maior a título de retenção por substituição tributária, com base no artigo 150, §7°, da Constituição Federal, quando a operação final resultar em valores inferiores àqueles utilizados para efeito de incidência do ICMS.

Segundo o voto do ministro relator, a interpretação restritiva da expressão contida no artigo 150, §7º, da Constituição Federal representaria uma "injustiça fiscal inaceitável em um Estado democrático de Direito, fundado em legítimas expectativas emanadas de uma relação de confiança e justeza entre Fisco e Contribuinte". Dessa forma, o princípio da praticidade tributária, que ampara o regime de substituição tributária, não poderia se sobressair aos direitos e garantias constitucionais dos contribuintes, como igualdade, capacidade contributiva e vedação ao confisco, especialmente quando o resultado é o enriquecimento ilícito do Estado. Veja-se a ementa:

"RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. DIREITO TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E SERVIÇOS – ICMS. SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA PROGRESSIVA OU PARA FRENTE. CLÁUSULA DE RESTITUIÇÃO DO EXCESSO. BASE DE CÁLCULO PRESUMIDA. BASE DE CÁLCULO REAL. RESTITUIÇÃO DA DIFERENÇA. ART. 150, §7º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. REVOGAÇÃO PARCIAL DE PRECEDENTE. ADI 1.851.
(…)
3. O princípio da praticidade tributária não prepondera na hipótese de violação de direitos e garantias dos contribuintes, notadamente os princípios da igualdade, capacidade contributiva e vedação ao confisco, bem como a arquitetura de neutralidade fiscal do ICMS. 4. O modo de raciocinar 'tipificante' na seara tributária não deve ser alheio à narrativa extraída da realidade do processo econômico, de maneira a transformar uma ficção jurídica em uma presunção absoluta. 5. De acordo com o art. 150, §7º,
in fine, da Constituição da República, a cláusula de restituição do excesso e respectivo direito à restituição se aplicam a todos os casos em que o fato gerador presumido não se concretize empiricamente da forma como antecipadamente tributado" (RE 593849, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 19/10/2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-065 DIVULG 30-03-2017 PUBLIC 31-03-2017 REPUBLICAÇÃO: DJe-068 DIVULG 04-04-2017 PUBLIC 05-04-2017).

Apesar de o Tema 201 tratar exclusivamente sobre a restituição do ICMS retido por substituição tributária, em 2018, no julgamento do RE nº 1.097.998 o ministro Dias Toffoli concluiu que a tese da repercussão geral centrou-se na vedação ao enriquecimento ilícito, imposição que deve ser aplicável tanto ao Fisco quanto ao contribuinte, justificando a necessidade de se complementar o ICMS diante da existência de diferença entre o valor do tributo designado no momento do cálculo do ICMS-ST e o montante efetivamente praticado na relação jurídica tributária:

"EMENTA Agravo regimental no recurso extraordinário. ICMS/ST. Diferença entre o valor efetivamente designado e a quantia presumida do tributo. Complementação. Orientação do RE nº 593.849/MG-RG. Decreto Estadual nº 38.104/96 e do RICMS/96. Violação reflexa. 1. Em respeito à vedação do enriquecimento sem causa, deve-se complementar o ICMS diante da existência de diferença entre o valor do tributo designado no momento do cálculo do ICMS/ST e o montante efetivamente praticado na relação jurídica tributária, conforme orientação firmada no julgamento do RE nº 593.849/MG-RG. 2. É incabível, em sede de recurso extraordinário, reexaminar o entendimento do Tribunal de origem acerca da aplicabilidade, no presente feito, do Decreto Estadual nº 38.104/96 e do RICMS/96 para fins de complementação do recolhimento do ICMS em substituição tributária. A ofensa ao texto constitucional seria, caso ocorresse, apenas indireta ou reflexa, o que é insuficiente para amparar o apelo extremo. 3. Agravo regimental não provido. 4. Majoração da verba honorária em valor equivalente a 10% (dez por cento) do total daquela já fixada (art. 85, §§ 2º, 3º e 11, do CPC), observada a eventual concessão do benefício da gratuidade da justiça". (RE 1097998 AgR, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 07/08/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-185 DIVULG 04-09-2018 PUBLIC 05-09-2018).

Nessa esteira, tem-se que a Lei nº 17.293/2020 e o novel Decreto Estadual n° 65.471/2021 apenas positivam na legislação estadual paulista a atual posição do STF quanto à possibilidade de cobrança do complemento do ICMS-ST decorrente do reconhecimento da não definitividade da base de cálculo da substituição tributária.

No entanto, ainda que o Estado de São Paulo tenha envidado os melhores esforços em vista a garantir a constitucionalidade da cobrança da complementação do ICMS, entendemos que a matéria regulada pela Lei nº 17.293/2020 poderá ser objeto de discussão judicial pelos contribuintes, na medida que disciplinou aspectos que fogem da competência legislativa outorgada pela Constituição Federal aos Estados.

Isso porque o artigo 146, inciso III, da Constituição Federal, reservou à lei complementar a definição de tributos, da base de cálculo e das obrigações tributárias, sendo esta matéria privativa à lei complementar federal:

"Artigo 146  Cabe à lei complementar:
(…)
III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;
b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários".

Contudo, não há na Lei Complementar nº 87/1996 ou nas demais normas que compõem o Sistema Tributário Nacional qualquer menção ao "dever de complementar" o ICMS-ST, tampouco da responsabilização do contribuinte substituído, questão essa que vem sendo disciplinada diretamente pelos Estados ao arrepio do texto constitucional.

Muito embora o artigo 155, § 2°, XII, "b", da Constituição Federal, atribua aos Estados e ao Distrito Federal a competência para disciplinar a cobrança do ICMS, tal prerrogativa não autoriza referidos entes federados a legislar para definir um novo contribuinte (o adquirente substituído) na relação jurídico-tributária, tampouco fixar sua base de cálculo.

Em nossa opinião, para que a lei paulista fosse válida, seria necessário que a complementação do ICMS-ST estivesse previamente prevista em lei complementar federal, em obediência aos princípios constitucionais da legalidade e da reserva legal. Não pode o poder legislativo estadual invadir a regra de competência exclusiva prevista na Constituição Federal, ainda mais para estabelecer nova obrigação tributária, como o complemento do ICMS-ST, ainda que se extraia tal conclusão a contrario sensu do julgamento do Tema 201 pelo STF.

Ante ao exposto, com a regulamentação do artigo 66-H da Lei estadual nº 6.374/89, o Estado de São Paulo passará a exigir dos contribuintes substituídos paulistas a complementação do ICMS-ST, apurado na forma da Portaria CAT nº 24/2018. Tenham certeza que os contribuintes que não optarem pela definitividade da base de cálculo, quando de sua regulamentação, poderão ser fortemente fiscalizados pela Fazenda Estadual, especialmente nos casos em que for requerido o ressarcimento do ICMS-ST por diferença de base de cálculo.

Para aqueles que optarem por discutir judicialmente a constitucionalidade da complementação do ICMS-ST, tenham a certeza que se inicia uma longa e morosa batalha judicial, que muito provavelmente será apenas definida pelo STF.

 


[1] "Artigo 66-H – O complemento do imposto retido antecipadamente deverá ser pago pelo contribuinte substituído, observada a sua regulamentação pelo Poder Executivo, quando:
I – o valor da operação ou prestação final com a mercadoria ou serviço for maior que a base de cálculo da retenção;
II – da superveniente majoração da carga tributária incidente sobre a operação ou prestação final com a mercadoria ou serviço.
Parágrafo único – Fica o Poder Executivo autorizado a instituir regime optativo de tributação da substituição tributária, para segmentos varejistas, com dispensa de pagamento do valor correspondente à complementação do imposto retido antecipadamente, nas hipóteses em que o preço praticado na operação a consumidor final for superior à base de cálculo utilizada para o cálculo do débito de responsabilidade por substituição tributária, compensando-se com a restituição do imposto assegurada ao contribuinte".

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