Opinião

A política nacional e o programa federal de pagamento por serviços ambientais

Autor

  • Marcia Silva Stanton

    é advogada e consultora na área agroambiental mestre em Direito Ambiental pela Pace University/EUA MBA em Agronegócios pela USP/Esalq e especialista em Direito Empresarial pela UFRGS.

22 de janeiro de 2021, 16h02

Com a publicação da Lei nº 14.119, de 13 de janeiro de 2021, instituindo a Política Nacional e o Programa Federal de Pagamento por Serviços Ambientais, o Brasil avança no uso e na consolidação de instrumentos econômicos para a proteção ambiental. Embora os instrumentos econômicos já estivessem previstos na Política Nacional de Meio Ambiente e tenham um capítulo dedicado ao tema no Código Florestal, sua implementação tem avançado lentamente. Dessa forma, a criação de uma política nacional e um programa federal de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) agrega mais uma opção ao rol de ferramentas e deve ser celebrada.

O Pagamento por Serviços Ambientais é um instrumento que oferece um incentivo positivo a todo aquele que promove a recuperação, manutenção ou incremento de um serviço ecossistêmico [1]. Seu objetivo primordial é a conservação, melhoria ou recuperação dos ecossistemas que fornecem bens e serviços fundamentais para a manutenção e qualidade de vida, chamados de serviços ecossistêmicos, através de oferecimento de uma retribuição monetária e não monetária. São exemplos de serviços ecossistêmicos tanto aqueles de uso rival e exclusivo, como é o caso de alimentos, fibras ou madeira, como aqueles de uso comum e não rival, como é o caso de sequestro e armazenamento de carbono, purificação da água ou ciclagem de nutrientes. Sem a existência de ecossistemas funcionais com seus elementos e processos, não teríamos todos os serviços fundamentais para a qualidade de vida no planeta. Em que pese sua importância, as atividades humanas responsáveis pela conservação destes ecossistemas e seus processos, via de regra, não são objeto de qualquer remuneração ou incentivo, resultando na conversão do uso do solo e na perda destes serviços. O PSA surgiu para reverter esta situação, garantindo a manutenção ou a recuperação destes serviços.

Partindo dessa lógica, a política nacional traz objetivos, diretrizes, conceitos fundamentais e prevê modalidades de pagamento, incorporando os ensinamentos da doutrina especializada, das experiências internacionais e estaduais, bem como, das intensas discussões travadas no âmbito no Congresso Nacional durante mais de dez anos [2]. Entre as diretrizes da política nacional destacamos o reconhecimento do princípio do provedor-recebedor e do usuário pagador; o reconhecimento e a valorização dos serviços ecossistêmicos para a qualidade de vida; o seu papel na promoção do desenvolvimento sustentável; a atuação conjunta e coordenada do setor público, sociedade civil e setor privado, incentivando este último a incorporar e medir em seu planejamento estratégico o impacto das variações na provisão dos serviços ecossistêmicos; o caráter complementar do PSA em relação aos instrumentos de comando e controle existentes; a integração e articulação com as demais políticas públicas, e; a condicionalidade e proporcionalidade dos pagamentos, o que impede o uso do PSA como mais uma política de transferência de renda.

Na análise do projeto de lei pelo Senado Federal, atuando como casa revisora, diversos dispositivos detalhando as áreas e ações elegíveis para o PSA, os requisitos contratuais, os instrumentos de governança e o Cadastro Nacional de PSA foram transferidos da política nacional para o programa federal [3]. O motivo desta alteração se deveu à preocupação em editar normas gerais sem inviabilizar iniciativas dos entes subnacionais que já possuem um longo caminho percorrido na implantação de programas estaduais de PSA adaptados às características e interesses regionais.

Dessa forma, no texto final aprovado, o programa federal prevê os requisitos gerais de participação, as atividades e áreas elegíveis, os requisitos contratuais, a condicionalidade do ajuste, as fontes de financiamento, a natureza propter rem das obrigações e a prioridade para os serviços prestados por comunidades tradicionais, povos indígenas, agricultores familiares e empreendedores familiares rurais. O programa também veda o pagamento com recursos públicos àqueles que estiverem inadimplentes em relação à termo de ajustamento de conduta firmado ou referente à área embargada pelos órgãos do Sisnama, o que se coaduna com o artigo 12 da Política Nacional de Meio Ambiente, que condiciona a concessão de incentivos governamentais ao cumprimento das normas ambientais vigentes.

Durante toda a tramitação dos diversos projetos de lei no Congresso Nacional, um dos aspectos mais polêmicos foi a questão da adicionalidade. Em projetos de PSA, a adicionalidade é tratada como sendo aquele benefício adicional ao cenário de base sem a intervenção do projeto [4]. O conceito surgiu no âmbito no Protocolo de Quioto, como um requisito essencial do mecanismo de desenvolvimento limpo, ao exigir que os projetos fossem capazes de proporcionar reduções de emissões de gases de efeito estufa em níveis adicionais às que teriam ocorrido na ausência da atividade de projeto (artigo 12, §5º, "c" do protocolo). Nesse contexto, muito se discutiu se as práticas de conservação realizadas em áreas sujeitas à limitação administrativa, como é o caso da área de preservação permanente (APP), reserva legal (RL) e uso restrito (AUR), seriam elegíveis à um PSA ou estariam excluídas por não apresentar adicionalidade ambiental eis que já eram práticas exigidas por lei.

No texto aprovado na Câmara e enviado para revisão do Senado, havia sido feita a opção política por vedar o uso de recursos públicos monetários em áreas sujeitas a limitação administrativa, salvo nos casos de bacias hidrográficas consideradas críticas para o abastecimento público de água definidas no órgão colegiado criado pela lei. As razões apresentadas na ocasião estavam relacionadas a questões de justiça e eficiência [5]. De fato, a adicionalidade é medida de maior eficiência e, embora deva ser sempre perseguida, não é requisito essencial de um programa de PSA. Muradian et al ressalta que a adicionalidade está relacionada a critérios de equidade e eficiência, mas reconhece que a maior parte dos projetos em funcionamento nos países em desenvolvimento não atende ao critério da adicionalidade [6].

Se a adicionalidade é medida de eficiência, como definir se um PSA é eficiente? O princípio da eficiência é dever imposto à Administração Pública no sentido de dar efetividade às suas finalidades públicas, entre as quais se insere a realização dos direitos fundamentais. Logo, a eficiência não pode prescindir da efetividade. No caso do PSA, o objetivo primordial é garantir a constante provisão de serviços ambientais e existem muitos fatores a ser considerados para aferir-se a efetividade de um projeto ou programa, conforme os objetivos traçados. Questões de equidade e justiça social devem ser avaliadas no contexto específico, mas o peso que devem ter quando comparados com critérios de eficiência é assunto que ainda exige maior investigação [7]. Também não se pode ignorar a histórica dificuldade do país em fazer cumprir o antigo Código Florestal e a sensação de injustiça vocalizada por muitos proprietários rurais por suportarem, sozinhos, o custo da conservação que a todos beneficia. O Código Florestal de 2012 representou o acordo político possível, fruto do processo democrático, e esse código prevê a possibilidade de uso de PSA para as atividades de manutenção de APP e RL (artigo 41, §4º, da Lei nº 12.651/12).

Dessa forma, agiu bem o Senado Federal ao alterar o texto legislativo retirando a proibição de retribuição monetária para atividades realizadas em APP e RL. No texto encaminhado para sanção, esse regramento foi deslocado da política nacional para o programa federal, e aquelas áreas situadas em bacias hidrográficas críticas para o abastecimento de água detêm prioridade de participação no programa federal, e não mais exclusividade como no texto anterior (artigo 9º, § único, da Lei nº 14.119/21). A justificativa apresentada foi de que texto do PL, ao vedar a possibilidade de uso de PSA nas áreas de APP e RL, contrariava o que dispõe o Código Florestal na matéria, especialmente o previsto no §4º do artigo 41, além de invalidar ou afetar de maneira negativa iniciativas subnacionais [8].

Merece críticas o tratamento dado à matéria em relação às fontes de financiamento e veículo financeiro, um dos grandes gargalos do PSA. O programa federal prevê como fonte de financiamento doações de pessoas físicas e jurídicas, agências multilaterais e bilaterais de cooperação internacional (artigo 6º, §7º, da Lei nº 14.119/21). O projeto de lei apresentado originalmente continha a previsão de um fundo específico, o Fundo Federal de PSA, a ser alimentado com recursos provenientes da compensação financeira pelo uso de recursos naturais (recursos hídricos, exploração mineral e royalties pela exploração do petróleo e gás natural), TCFA, dotações orçamentárias, acordos, contratos e convênios celebrados com a administração publica, doações, empréstimos, reversão de saldos não aplicados, rendimentos financeiros e cobrança pelo uso da água. Contudo, ainda em 2015, na tramitação do PL dentro das comissões temáticas da Câmara, as fontes de financiamento foram completamente esvaziadas, restando a fonte advinda de doações e a aposta de que o financiamento virá do setor privado. Inobstante esse esvaziamento, a Lei nº 14.119/21 manteve a possibilidade de destinação para PSA dos recursos oriundos da cobrança pelo uso dos recursos hídricos, a critério do comitê de bacia hidrográfica (artigo 21). Também possibilita que o PSA seja financiado mediante cotas de reserva ambiental (CRA), green bonds e certificados de redução de emissões por desmatamento e degradação (artigo 3º). O governo tem feito um significativo esforço para impulsionar o mercado privado de PSA, através do programa Floresta + e do projeto Floresta + Carbono, mas somente a regulamentação a ser feita e o tempo dirão se o setor privado vai aderir.

Por fim, cumpre mencionar que alguns dispositivos foram objeto de veto presidencial, entre os quais o que previa a possibilidade de direcionamento dos recursos do pagamento por serviços ambientais prestados por unidades de conservação para atividades vinculadas à própria unidade, o que instituía um órgão colegiado para o programa federal, bem como, o Cadastro Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais (CNPSA). Também foram retirados todos os incentivos fiscais e demais instrumentos econômicos que poderiam ser direcionados para atividades relacionadas à proteção dos serviços ecossistêmicos. Os dispositivos vetados tratavam de modalidades similares às constantes no capítulo X do Código Florestal, o que confirma a falta de vontade política de dar maior uso aos instrumentos econômicos disponíveis para a proteção ambiental.

O tema serviços ambientais têm ganhado cada vez mais visibilidade e cresce a percepção de que ele é transversal à inúmeras políticas públicas. As atenções agora se voltam para a regulamentação deste importante instrumento onde teremos a oportunidade de detalhar questões operacionais e debater com seriedade de onde virão os recursos. O PSA é uma grande oportunidade para que os demais países legitimamente preocupados com a perda de biodiversidade e com a crise climática global assumam a sua responsabilidade de forma concreta e contribuam para a preservação destes recursos, mas esta não pode ser a única fonte de financiamento. O sucesso de um PSA depende da existência de recursos em um fluxo seguro e constante. Dessa forma, se entende que a ausência de uma previsão mais audaciosa e específica quanto às fontes e veículo de financiamento pode esvaziar e fragilizar o programa federal.

 


[1] WUNDER, Sven. Payments for environmental services: some nuts and bolts. Occasional Paper nº 42. Jakarta: CIFOR, 2005. p. 03

[2] Vide toda a tramitação dos PLs no. 792/07 e 312/2015 na Câmara dos Deputados, e que resultou na edição da Lei no. 14.119/21.

[3] Senado Federal. Parecer no. 196/2020 ao PL no. 5028/2019, do Plenário do Senado Federal. Brasília/DF, 2020. Disponível em https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8915178&ts=1608159567532&disposition=inline. Acesso em: 18 jan. 2021

[4] WUNDER, S (Org.). Pagamento por Serviços Ambientais: perspectivas para a Amazônia Legal. Brasília: MMA, 2008. p. 16

[5] CÂMARA FEDERAL. Relatório da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável ao PL no. 312/2015. Brasília/DF, 2019. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1796894&filename=Tramitacao-PL+312/2015. Acesso em 18 jan. 2021. p. 12/13.

[6] MURADIAN, Roldan et al. Reconciling Theory and practice: an alternative conceptual framework for understanding payments for environmental services. Ecological economics vol. 69, p. 1202-1208, 2010. p. 1.204.

[7] PASCUAL, Unai, et al. Exploring the links between equity and efficiency in Payments for Environmental Services: A Conceptual approach. Ecological Economics, vol. 69, 1237-1244, 2010. p. 1243.

[8] SENADO FEDERAL, 2020.

Autores

  • Brave

    é advogada e consultora na área agroambiental, mestre em Direito Ambiental pela Pace University/EUA, MBA em Agronegócios pela USP/Esalq e especialista em Direito Empresarial pela UFRGS.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!