Opinião

A vacinação e o tênue limite entre proteção e desrespeito aos direitos dos idosos

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21 de janeiro de 2021, 6h34

Se o ano de 2020 será lembrado pela pandemia, provavelmente o ano de 2021 será recordado como o ano da vacinação. E, inclusive, uma vacina produzida em tempo recorde [1] e que, para além de visar a salvar muitas vidas ao redor do mundo, outros fatores também entram nessa equação, como, por exemplo, questões políticas relativas à recuperação econômica e, ainda, ao retorno ao trânsito entre pessoas, bens e serviços entre países.

E, nesse cenário pandêmico, não é novidade alguma que os idosos representam um grupo vulnerável que demanda uma atenção especial por parte dos Estados-nações, já que, ao serem diagnosticados com a Covid-19, o nível de letalidade é superior se comparados ao dos mais jovens. Aliás, tal lógica tem se aplicado ainda na denominada "segunda onda" do vírus [2].

Justamente por isso e, ainda, diante da escassez das empresas farmacêuticas em distribuir vacinas para cobrir toda a população mundial de uma só vez (e, obviamente, em razão das dificuldades logísticas em tal proceder), os Estados tomaram a decisão de vacinar, inicialmente e com exclusividade, as pessoas idosas e aquelas que trabalham em serviços essenciais [3]. Tal medida está sendo adotada nos mais diversos Estados que já iniciaram o seu plano de vacinação, incluindo países da Europa e também nos Estados Unidos.

No entanto, na segunda-feira (18/1), o governo da Noruega reportou que aproximadamente 30 idosos vieram a óbito depois da vacinação, pela marca Pfizer BioNTec, contra a Covid-19 [4], oportunidade em que especialistas chineses também pediram a suspensão de uso de vacinas com a tecnologia de RNA mensageiro [5].

Após a divulgação de tais graves informações, o governo da Noruega revisou o seu pronunciamento, alegando que as mortes não tiveram nenhuma ligação com a vacina.

Entretanto, isso não foi o bastante para abafar uma série de questionamentos a respeito do cronograma de vacinação realizado por uma série de países, inclusive o Brasil. Afinal, na própria divulgação realizada em grandes mídias houve o noticiamento de que a referida vacina não tinha se submetido a estudos aprofundados com idosos com comorbidades e idade superior a 85 anos [6].

E mais, o presidente do Comitê de vigilância da vacinação da Agência Italiana de Medicamentos (Aifa), Vittorio Demicheli, afirmou que não existem razões de alarde nas alegadas mortes, mencionando ainda que a vacinação na Itália estava acontecendo com aqueles que tinham riscos mais altos de morrer [7].

Embora tal afirmação possa ter um caráter protetivo, ela traz consigo um perigoso viés. É que, se a vacina foi desenvolvida e, inclusive, aprovada pelos Estados-nações às pressas (no Brasil, em caráter emergencial) [8], qual a efetiva segurança que ela pode acarretar àqueles que a recebem? Assim, não se sabe se a afirmação de Demicheli ressaltou a possível morte pelo diagnóstico da Covid-19 ou, por outro lado, a suposta alegação de que a pessoa idosa, simplesmente por ter idade mais avançada, teria a probabilidade de morrer antes das demais e, por isso, sua vida e saúde teriam valor inferior às do restante da população.

Nessa última perspectiva, ocupariam os idosos o mesmo papel daqueles combatentes de guerra que permanecem nas linhas de frente? Estariam eles fadados a sofrer com efeitos e sequelas de uma vacina que sequer pode ter sido objeto de amplo estudo no momento da elaboração e aprovação? Não se engane, esse é um duro, e muito triste, questionamento.

Isso significa que a informação de mortes de idosos na Noruega, por mais que tenham constatado posteriormente que em nada se conectam com a vacina, nos evidenciou a existência de um limite tênue entre a proteção e o desrespeito dos direitos da pessoa idosa.

Não se tem dúvidas de que as pessoas idosas devem receber a vacinação de modo prioritário, já que, de acordo com o Estatuto do Idoso (artigo 3º), o direito à vida e à saúde deve ser assegurado a elas, com absoluta prioridade (princípio da prioridade absoluta e proteção integral). Como elas efetivamente são mais vulneráveis quando diagnosticadas pela Covid-19, a vacinação de pessoas com idade mais avançada é essencial.

No entanto, questiona-se o caráter da exclusividade na vacinação desse grupo social neste momento inicial de vacinação em massa. Será que não seria mais adequado o estabelecimento de um cronograma com sequenciamento de grupos de pessoas das mais variadas faixas etárias para que os efeitos pudessem ser evidenciados de maneira mais prudente? Adicionalmente, tal proceder poderia colaborar com o próprio desenvolvimento das vacinas e do tratamento da doença.

Desse modo, a prioridade da vacinação em idosos é essencial, mas isso não quer dizer que se imponha, concomitantemente, a operacionalização de tal vacinação com caráter de exclusividade (isto é, restrito aos idosos e aos grupos específicos), principalmente em um cenário de tantas incertezas, em que todos — inclusive, e prioritariamente, aqueles que possuem a idade mais avançada — devem ter a sua vida e sua saúde respeitadas.

Sem dúvidas, esse é um ponto que deve entrar na pauta política, principalmente diante de um cenário de tantas incertezas. Impõe-se, portanto, ao governo uma análise estratégica e, como não poderia deixar de ser, com atenção aos direitos fundamentais mais básicos de todos, inclusive dos idosos.

 


[3] Aliás, nesta última categoria, para além de enquadrar os profissionais de saúde, se encontram também aqueles do ramo de transportes. Informação disponível em: https://www.gov.br/infraestrutura/pt-br/profissionais-de-transporte-entram-em-grupo-prioritario-em-campanha-de-vacinacao-contra-a-covid-19. Acesso em 19 jan. 2020.

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  • Brave

    é advogada especialista em Direito das famílias, sucessões e idoso, mestranda em Direito Processual pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), presidente da Comissão de Adoção e do Idoso do IBDFAM-ES, diretora da Associação Brasileira de Advogados de Vitória (ABA-ES) e membro da International Society of Family Law.

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