Opinião

A contradição do não reconhecimento de uniões estáveis simultâneas

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21 de janeiro de 2021, 15h16

Em placar acirrado, o Supremo Tribunal Federal, por seis votos a cinco, negou o reconhecimento de uniões estáveis simultâneas e o rateio de pensão por morte no julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.045.273, finalizado em 18 de dezembro passado.

No caso concreto, o recorrente ingressou com pedido de reconhecimento de união estável homoafetiva, cumulado com pedido de declaração de efeitos previdenciários, em face de pessoa falecida. Entretanto, o falecido vivia paralelamente em união estável também com uma terceira pessoa, a qual já havia ingressado previamente com ação judicial e obtido o reconhecimento de seu direito de convivente. 

Após regular tramitação, por se tratar de questão de repercussão geral, o caso foi submetido à apreciação da Suprema Corte.

Ao analisar o recurso, o ministro relator Alexandre de Moraes negou provimento ao pleito do recorrente, sob a alegação de que o Direito brasileiro seria regido pelo princípio da monogamia, que se esteia no artigo 226, §3º, da Constituição Federal, de modo que "a existência de uma declaração judicial de existência de união estável é, por si só, óbice ao reconhecimento de uma outra união paralelamente estabelecida por um dos companheiros durante o mesmo período".  

Em contrapartida, o ministro Edson Fachin, em seu voto vencido, consignou que, no caso concreto, estava evidente a boa-fé objetiva dos companheiros sobreviventes, que desconheciam a concomitância das relações de união estável, razão pela qual deveria ser garantido a ambos a pensão por morte mediante rateio.

Porém, prevaleceu o voto do ministro Alexandre de Moraes, tendo o STF fixado a seguinte tese: "A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1723, §1º do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro".

O julgamento em tela é emblemático, pois traz à baila os efeitos jurídicos, sobretudo previdenciários, de uma realidade presente que não pode ser ignorada, qual seja, a existência simultânea de dois ou mais núcleos familiares. A tese firmada pelo STF norteará as próximas decisões da corte e das instâncias inferiores acerca de casos semelhantes, restringindo a salvaguarda de uniões estáveis paralelas.

Com isso, a decisão vai em sentido oposto a julgados recentes de tribunais admitindo, ainda que excepcionalmente, a existência de uniões concomitantes, como, por exemplo, a recente decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que reconheceu a existência de uniões paralelas sobre o fundamento de que o formalismo legal não pode prevalecer sobre uma situação fática consolidada há anos, gerando a marginalização de núcleos familiares que merecem proteção jurídica [1].  

Além disso, a Suprema Corte acaba empregando uma visão formal e moralista em detrimento dos princípios da liberdade individual, dignidade e solidariedade humana, bem como em arrepio à realidade social, na qual as uniões paralelas existem. Ao assim proceder, o STF afasta-se de seu papel representativo e democrático, que o levou, por exemplo, a reconhecer a união homoafetiva (ADI 4.277/DF) e a equiparar a união estável ao casamento para fins sucessórios (RE 878.694/MG).

No primeiro exemplo, o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar se deu por unanimidade, sobre o fundamento de que a família tem especial proteção do Estado (artigo 226, caput, da Constituição Federal), "pouco importando se formal ou informalmente constituída".

Já no segundo exemplo, a equiparação da união estável ao casamento para fins sucessórios se assentou no entendimento de que é ilegítima a hierarquização das formas de família, porquanto a finalidade do Estado é proteger "não apenas as famílias constituídas pelo casamento, mas qualquer entidade familiar que seja apta a contribuir para o desenvolvimento de seus integrantes (…)"

A nosso ver, tais preceitos são aplicáveis ao caso recentemente apreciado, que envolve duas entidades familiares igualmente existentes e merecedoras de amparo jurídico, na esteira das decisões anteriores do STF que empregaram interpretação teleológica da lei para ampliar o conceito de família de maneira inclusiva, em consonância com o texto constitucional. 

Outrossim, ignorar a existência concomitante de múltiplos núcleos familiares constitui omissão estatal frente a uma realidade inegável que demanda tutela de direitos fundamentais.

Sem prejuízo, o apertado placar do julgamento no STF, bem como as alterações constantes nas concepções atuais de família, inclusive em decisões recentes do próprio STF, sinalizam que as discussões sobre o assunto em referência estão longe de se esgotarem.

 


[1] TJRS, APL 0140305-63.2019.8.21.7000, 8ª Câmara Cível, Relator Des. Jose Antonio Daltoe Cezar, j. 12/11/2020, DJe:19/11/2020.

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