Cloroquina Nos Outros

TrateCov pode ser usado em impeachment e não trata dados de forma clara

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21 de janeiro de 2021, 21h19

Foto: ABC
Aplicativo retirado do ar recomendava tratamento sem comprovação cientifica para pessoas com sintomas de Covid-19
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O Ministério da Saúde retirou do ar a plataforma do aplicativo TrateCov nesta quinta-feira (21/1). A ferramenta é destinada à orientação de profissionais de saúde e estava disponível havia uma semana. Ela recomendava o tratamento precoce de pessoas com sintomas de Covid-19 com medicamentos sem comprovação científica — como cloroquina e ivermectina.

Depois de retirar o aplicativo do ar, o Ministério da Saúde afirmou, por meio de nota, que o aplicativo havia sido "invadido e ativado indevidamente" e que a plataforma foi lançada como um projeto piloto e não estava funcionando oficialmente como um simulador.

Além da controvérsia no terreno científico, o aplicativo também suscitou questionamentos jurídicos. Um dos primeiros a apontar irregularidades da ferramenta foi o advogado Ronaldo Lemos. Por meio de seu perfil no Twitter, o especialista em Direito Digital afirmou que o código do aplicativo pode ser usado como a prova de que crime de responsabilidade foi cometido pelo presidente da República, Jair Bolsonaro.

O especialista também afirma que o TrateCov é hospedado nos Estados Unidos e viola frontalmente a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/18), que classifica dados de saúde como sensíveis.

"Código de programação é a materialização de uma tomada de decisão objetiva. O código segue uma linguagem lógica, não tem espaço para ambiguidades. A decisão de colocar cloroquina e ivermectina é uma decisão de política pública consciente e muito clara", sustentou.

Em entrevista à ConJur, a advogada e presidente da Comissão de Proteção de Dados e Privacidade da seccional do Rio de Janeiro da OAB, Estela Aranha, concorda com Lemos em relação à hipótese de cometimento de crime de responsabilidade.

"Claramente, a desídia na condução de políticas de combate ao coronavírus, ignorando a gravidade da pandemia, criticando e desacreditando as políticas de prevenção adequadas como o uso de máscara, a higienização das mãos e o isolamento social, somada à incapacidade de fornecer os suprimentos necessários para o tratamento da doença, como foi o caso de Manaus, atentam contra o artigo 141 da Constituição da República, que destaca a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida. Essa necropolítica configura crime de responsabilidade — e apresentar como resposta a isso um aplicativo que tem a função básico de indicar remédios sem eficácia comprovada é mais um elemento para reforçar isso", argumenta.

A advogada Blanca Albuquerque, do Damiani Sociedade de Advogados, afirma, contudo, que é preciso entender se a determinação para criação do código do aplicativo partiu do presidente. "É fato que o código ter sido feito de modo que sugira medicamentos como cloroquina para tratamento da Covid-19 é ilegal, já que configuraria a estruturação de uma política pública baseada em torno de algo sem comprovação científica, em meio a uma pandemia. Contudo, é preciso analisar como se deu a determinação para criar esse código dessa maneira", explica.

LGPD
Sobre a violação à LGPD, Estela Aranha explicou que o TrateCov utiliza o aplicativo Redcap (Research Electronic Data Capture). Ele foi desenvolvido pela Universidade Vanderbilt, de Nashville (Tennessee), nos EUA.

"É uma ferramenta de bancos de dados clínicos, um software baseado na web ou em servidores baseados em nuvem que é utilizado para coletar dados para pesquisas clínicas e criar bancos de dados e projetos. A utilização dessa ferramenta não pressupõe necessariamente a transferência internacional de dados", afirma.

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Um dos medicamentos indicados pelo aplicativo do governo era a cloroquina
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Ao avaliar os termos de licenciamento do aplicativo, Estela aponta que, apesar dele estar adequado ao HIPAA, que é a legislação setorial de Proteção de Dados na área da saúde nos Estados Únidos, é de responsabilidade do controlador dos dados — no caso o Ministério da Saúde — aplicar a legislação nacional para proteção desses dados.

"No Brasil, temos a LGDP, que classifica os dados de saúde como dados sensíveis. E, apesar de a legislação permitir o tratamento de dados sensíveis sem o consentimento do titular para a tutela da saúde, outras obrigações legais têm de ser seguidas. É preciso ter transparência sobre quais dados serão coletados, para qual finalidade, se haverá compartilhamento ou não dos dados, para quem; são necessárias medidas técnicas e administrativas para garantir a segurança dos dados pessoais, entre outras coisas. E como é um aplicativo de telemedicina, atenção especial deve ser dada ao sigilo médico", explica.

Para Blanca Albuquerque, mesmo que o aplicativo esteja hospedado nos Estados Unidos, há a incidência da LGPD e isso deve ser tratado com toda cautela, já que são dados sensíveis.

Maria Cibele Crepaldi Affonso dos Santos, sócia gestora do Costa Tavares Paes Advogados, aponta que a LGPD prevê que, se houver algum tipo de tratamento de dados for feito fora do território brasileiro, é preciso que esse país tenha uma legislação semelhante à brasileira. "É preciso deixar claro se esse dado será tratado no exterior quando o usuário vai colocar os dados dele no aplicativo", afirma.

A especialista afirma que a legislação de tratamento de dados nos Estados Unidos é pulverizada e é preciso identificar o ordenamento jurídico da localidade em que esse dado será tratado, para então avaliar se o aplicativo viola a LGPD.

Conselho Federal
Também nesta quinta-feira, o Conselho Federal de Medicina (CFM) informou que solicitou ao Ministério da Saúde a remoção imediata do aplicativo TrateCov do ar. Leia a íntegra da nota abaixo: 

 Após análise feita por conselheiros e assessores técnicos e jurídicos sobre o aplicativo TrateCov, recém lançado para auxiliar as equipes na coleta de sintomas e sinais de pacientes possivelmente infectados pela covid-19, o Conselho Federal de Medicina (CFM) alertou ao Ministério da Saúde sobre as seguintes inconsistências na ferramenta:

• Não preserva adequadamente o sigilo das informações;
• Permite seu preenchimento por profissionais não médicos;
• Assegura a validação científica a drogas que não contam com esse reconhecimento internacional;
• Induz à automedicação e à interferência na autonomia dos médicos;
• Não deixa claro, em nenhum momento, a finalidade do uso dos dados preenchidos pelos médicos assistentes.

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