Consultor tributário

Município de São Paulo falta com a palavra dada ao Jockey Club

Autor

  • Igor Mauler Santiago

    é sócio-fundador do escritório Mauler Advogados mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Processo Tributário (IDPT).

20 de janeiro de 2021, 9h00

Spacca
1. Introdução
Fundado em 1875, o Jockey Club de São Paulo funcionou inicialmente na Mooca. Em 1936, foi celebrado negócio jurídico entre quatro partes, por meio do qual (i) a Companhia Cidade Jardim doou ao Jockey um terreno às margens do Rio Pinheiros para a construção do seu novo hipódromo; (ii) o Município de São Paulo adquiriu do Jockey a sede da Mooca por preço igual ao custo de construção do novo hipódromo, depositado no Banco do Comércio e Indústria de São Paulo; (iii) o Banco se obrigou a, com esse valor, promover a construção do Hipódromo Cidade Jardim, inaugurado em 1941; (iv) o Jockey se obrigou a mantê-lo em funcionamento para a prática do turfe; e (v) previu-se a reversão do complexo (terreno e edificações) ao Município, em caso de extinção do clube.

Em 1959 foi proferida sentença, depois transitada em julgado, livrando o Hipódromo Cidade Jardim do pagamento de IPTU com base na cláusula de reversão. Ao pretender dar efeitos permanentes a essa decisão, o Jockey esbarrou primeiro na Súmula 239 do STF (STF, 1ª Turma, RE 83.225/SP, Relator Ministro Rodrigues de Alkmin, DJ 15.10.76). O acórdão foi mantido, embora por outro fundamento — o artigo 32 do CTN, editado após o trânsito em julgado da sentença de 1959 —, nos embargos de divergência do clube (STF, Pleno, RE 83.225-EDiv/SP, Relator Ministro Xavier de Albuquerque, DJ 29.02.80).

Desde então a relação entre o Jockey e o município tem sido tormentosa, com lançamentos anuais em valores multimilionários, execuções fiscais em série, tentativas de acordo. Pois bem: assim como a sentença de 1959 não prevalece sobre o artigo 32 da Lei 5.172, de 25.10.66 (CTN), o acórdão do STF fundado nesta regra tampouco sobrevive a duas leis posteriores ao Código, nenhuma delas analisada pela Corte. São elas:

2. O Decreto-lei 57, de 18.11.66 (artigo 15)
Os imóveis urbanos são tributados pelos municípios (CF, artigo 156, inciso I), e os imóveis rurais são tributados pela União (CF, artigo 153, inciso VI). O CTN define imóveis urbanos e rurais a partir do critério geográfico: são urbanos os localizados na zona urbana do município, definida em lei local, desde que atendidos os requisitos ali elencados (artigo 32); são rurais os outros (artigo 29).

Dá-se que esse não é o único critério em vigor. Ao lado dele, tem-se o critério da destinação instituído pelo Decreto-lei 57/66, posterior ao CTN e também recepcionado como lei complementar. Segundo o seu art. 15, o art. 32 do CTN "não abrange o imóvel de que, comprovadamente, seja utilizado em exploração extrativa vegetal, agrícola, pecuária ou agroindustrial, incidindo assim, sobre o mesmo, o ITR e demais tributos com o mesmo cobrados". A aplicabilidade da regra é atestada pelo STJ no REsp. repetitivo 1.112.646/SP (1ª Seção, Relator Ministro Herman Benjamin, DJe 28.08.2009).

Pois bem: o conceito de "atividade rural" é trazido pela IN/RFB 1.700/2017, na parte em que regula a apuração do IRPJ e da CSLL sobre ela incidente. No que aqui interessa, definem-se como atividades rurais todas as culturas animais (artigo 249, inciso IV), e excluem-se desse conceito os prêmios recebidos pelos proprietários, criadores e profissionais do turfe (artigo 250, inciso IX) — a menção ao turfe deixa claro que a legislação tributária federal o enquadra como atividade rural, ressalvados apenas os referidos prêmios.

Essa última conclusão é reforçada pela Lei 7.291/84, que “dispõe sobre as atividades de equideocultura no País” e expressamente inclui o turfe em tal conceito (artigo 1º, parágrafo 1º, alínea “d”). Registre-se que a lei trata do turfe em nada menos de 14 dos seus 26 artigos. A conclusão é imediata: dedicando-se à equideocultura, o Jockey exerce atividade rural, sujeitando-se ao ITR, e não ao IPTU. Isso o que, quanto a um haras situado em área urbana, decidiu o TJ/SP (15ª Câmara de Direito Público, Apelação Cível 1017782-79.2019.8.26.0602, Relator Desembargador Rodrigues de Aguiar, j. 17.07.2020).

3. A Lei municipal 6.989, de 29.12.66 (art. 18, inciso II, alínea “h”)
A teor do dispositivo, são isentos do imposto predial — uma das duas partes em que se divide o IPTU — "os imóveis construídos pertencentes ao patrimônio das agremiações desportivas, efetiva e habitualmente utilizados no exercício de suas atividades, desde que não efetuem venda de ‘poules’ ou talões de apostas". A restrição do alcance da isenção constante da parte final da regra é claramente inconstitucional pelas razões adiante expostas.

Cada clube esportivo tem a sua vocação: uns priorizam o futebol, outros o vôlei, a natação, o hipismo, o golfe e assim por diante, havendo alguns que se destacam em mais de uma modalidade. O turfe é um esporte tão digno de proteção quanto os demais, e a lei que o disciplina trata a exploração de apostas como atividade inerente à sua prática (Lei 7.291/84, artigos 6º a 9º), de cujo resultado participa a União, por meio da Comissão Coordenadora da Criação do Cavalo Nacional – CCCCN (artigo 11). Erigir tal atividade, lícita e inerente a tal prática desportiva, em causa de afastamento da isenção equivale a "instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente", baseado na "ocupação profissional ou função por eles exercida", contra os artigos 5º, caput, e 150, inciso II, da Constituição. Como anota Eros Grau, "essa discriminação é fruto de autêntico preconceito em relação à atividade de turfe, embora prenhe de licitude".

A irrazoabilidade do critério de desigualação adotado pela lei local avulta quando se considera que a exploração de apostas já enseja a incidência de outro imposto municipal, o ISS, confirmada por recente decisão do STF em recurso do Jockey Club do Rio de Janeiro (Pleno, RE 634.764/RJ, Relator Ministro Gilmar Mendes, DJe 01.07.2020). Ou seja: o fato de explorar apostas já gera para o Jockey dever tributário proporcional ao benefício que daí tira, garantindo ao Município a devida participação em tais ganhos. Impor àquele um segundo ônus fiscal (o afastamento da isenção), arrogando-se este uma nova vantagem em razão daquela mesma atividade, viola a razoabilidade-congruência, que, para Humberto Ávila, demanda "uma relação congruente entre a medida adotada e o fim que ela pretende atingir"1. Donde ser "arbitrária aquela diferenciação feita entre os contribuintes (…) em razão de qualidades que, embora possuam, não sejam constitucionalmente relevantes para o tratamento da matéria em questão"2.

Este é o caso de uma diferenciação baseada em atividade acessória exercida pelo contribuinte (a venda de apostas vinculadas ao turfe), sobretudo quando o seu vínculo com a atividade principal decorre de lei e quando a prática dessa atividade acessória já gera o dever de pagar um imposto (o ISS) ao mesmo Fisco que pretende erigi-la em causa de afastamento de isenção relativa a outro (o IPTU), em inaceitável bis in idem.

Ao elencar tal atividade como razão para o indeferimento da isenção, o Município também adota comportamento contraditório (venire contra factum proprium), pois custeou a construção do hipódromo e assentiu na condição de que este fosse destinado ao turfe — que pressupõe as apostas —, e agora as toma como causa de afastamento de isenção dada a todos os demais clubes. Em rigor, a exigência de IPTU em valores impagáveis é uma forma de obter, pela via tributária, a inviabilização financeira do clube e a cessação de suas atividades, com a reversão do hipódromo ao patrimônio municipal. É nada menos do que faltar com a palavra empenhada, cabendo não perder de vista o alerta do Chief Justice Marshall de que "the power to tax involves the power to destroy".

E há mais: dispõe a Constituição (artigo 187, caput) que a política agrícola — que compreende atividades agropecuárias (parágrafo 1º) — será planejada e executada na forma da lei. O artigo 50 do ADCT fixou prazo de um ano para a sua edição, o que redundou na Lei 8.171/91, a qual institui o protagonismo da União na regulamentação do tema, reservando aos demais entes funções meramente executivas (artigo 6º, incisos II e III). Ora, ao ligar uma consequência negativa — a perda da isenção de IPTU — à exploração das apostas, que a União define soberanamente como ínsitas ao turfe e, pois, à equideocultura, a lei municipal invade a competência federal, ofendendo não apenas as Leis 7.291/84 e 8.171/91 – o que já bastaria para a sua invalidade –, mas também, e de forma direta, o artigo 187 da Carta.

Sendo o turfe um esporte, a Lei 7.291/84, naquilo em que lhe diz respeito, faz também as vezes da norma geral sobre desporto prevista no artigo 24, inciso IX, e parágrafo 1º, da Constituição, que por isso mesmo prepondera sobre as leis estaduais e municipais, na forma do parágrafo 4º do mesmo artigo. Isso constitui uma razão adicional para a invalidade da lei municipal que sanciona com a perda de uma isenção o contribuinte que nada mais faz do que exercer o direito à exploração de apostas que lhe atribui a norma geral baixada pela União.

Anote-se por último que, embora as entidades turfísticas possam embolsar até 38% do total das apostas (Decreto 96.993/88, artigo 23, 2º) — teto que o Jockey nem de longe atinge —, o uso desses valores não é livre. A teor do artigo 10 da Lei 7.291/84, no mínimo 97% (o artigo 54 do Decreto 96.993/88 elevou esse índice para 99%) dos recursos auferidos com apostas e outras receitas turfísticas — deduzidos os encargos trabalhistas, previdenciários e as contribuições à CCCCN — serão destinados a atender às despesas de interesse turfístico (dentre as quais os prêmios aos apostadores e aos proprietários, criadores e profissionais do turfe), reservando o máximo de 3% dessas receitas (o artigo 54 do decreto reduziu esse índice para 1%) para o custeio das despesas gerais das entidades turfísticas (onde figura o IPTU). Essa imposição legal revela a total irrealidade dos valores lançados pelo Município contra o Jockey, reforçando a higidez dos seus argumentos jurídicos.

4. Conclusão 
Pelo exposto, conclui-se que o Hipódromo Cidade Jardim deve pagar ITR, e não IPTU. Caso superada essa tese, entendendo-se que está mesmo sujeito ao imposto municipal, fará jus à isenção de imposto predial aplicável a todos os clubes esportivos, por ser inconstitucional a cláusula restritiva imposta pela lei paulistana.

Esta coluna contou com a valiosa colaboração de Carolina Schäffer Ferreira Jorge.


1 HUMBERTO ÁVILA. Sistema Constitucional Tributário. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 425.

2 Op. cit., p. 434.

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  • é sócio-fundador do Mauler Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais e membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.

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