Tribuna da Defensoria

Retomando a democracia para os excluídos

Autor

  • Beatriz Cunha

    é defensora pública do Estado do Rio de Janeiro mestranda em Direito Público pela Uerj e pós-graduada em Direitos Humanos pela PUC-Rio.

19 de janeiro de 2021, 8h03

À luz dos acontecimentos da tarde de 6 de janeiro de 2021 nos Estados Unidos, o ministro Luiz Fux publicou artigo no qual assegurou, enquanto presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), que a corte permanecerá vigilante para que situação semelhante jamais ocorra no Brasil[1].

De fato, o alerta soa pertinente. É que, nos últimos tempos, assistimos a uma conjuntura de recessão democrática em diversos países do mundo. Governantes populistas autoritários tomaram o poder pela porta da frente, eleitos pelo voto de um povo que não mais se identificava com a representação política tradicional e que se seduziu com uma retórica antissistema, contra 'tudo isso que está aí".

No Brasil, com os riscos e as peculiaridades próprios de um país em desenvolvimento, o movimento iniciou-se com a "explosão social" de 2013; desenvolveu-se com o lavajatismo e a crise do presidencialismo de coalizão; e ganhou ainda mais força com o impeachment de Dilma Rousseff e a ascensão do neoliberalismo autoritário [2]. Com a posse de Jair Bolsonaro, em 2019, a crise alcançou o seu ápice, dando origem a um governo voltado ao ataque à autonomia das instituições, à redução do sistema de proteção social, à criminalização de movimentos sociais e à deslegitimação da ciência.

Nesse contexto, os desafios para contenção da erosão democrática já eram muitos, mas foram acentuados em razão da superveniência de verdadeira turbulência humanitária ocasionada pela pandemia da Covid-19. Para além dos profundos efeitos no campo sanitário, social e econômico, parte da preocupação inicial dos juristas voltou-se à possibilidade de que a crise fosse utilizada como pretexto para corroer ainda mais a democracia [3]. Sob a justificativa de se estar em uma situação de emergência e diante da ausência de previsão de medidas adequadas pelo sistema jurídico, um governo à margem do Estado de Direito poderia ser apresentado como solução [4]. Logo ao início da pandemia, por exemplo, o governo da Hungria requereu ao Legislativo a extensão, por prazo indeterminado, da situação de estado de emergência, o que conferia ao Executivo poderes quase que ilimitados [5].

Tornou-se necessário, portanto, que a sociedade e as instituições mantivessem sob vigilância constante as medidas de combate ao coronavírus, a fim de avaliar se eventuais restrições a direitos fundamentais e outras normas constitucionais se justificavam, à luz dos princípios da concordância prática e da proporcionalidade.

Nessa conjuntura, o STF estava diante do cenário ideal para retomar seu protagonismo na defesa da Constituição, colocando a democracia e os direitos fundamentais em primeiro plano. Ultrapassado o primeiro ano de mandato de Jair Bolsonaro, instalada a profunda crise decorrente da pandemia da Covid-19 e após reiterados ataques à sua autonomia, o ano de 2020 impôs ao STF romper com a postura de autocontenção para frear a guinada autoritária.

Não à toa, olhando para trás, verifica-se que a vigilância, referida pelo ministro Fux, foi de fato constante no que toca à preservação dos pressupostos formais da democracia. É impossível não lembrar da decisão que suspendeu norma que isentava o governo federal de responder aos pedidos de acesso à informação na pandemia [6]; da que determinou que o Ministério da Saúde mantivesse a divulgação diária dos dados epidemiológicos [7]; e da que suspendeu a nomeação de Alexandre Ramagem para o cargo de diretor-geral da Polícia Federal [8], diante da possível pretensão de aparelhamento do órgão. Houve ainda a suspensão de ato cujo objetivo era produzir e compartilhar informações de pessoas integrantes do movimento político antifascista [9]; a suspensão de medida provisória que obrigava as operadoras de telefonia a repassarem à Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) dados identificados de seus consumidores de telefonia móvel [10]; e a declaração de inconstitucionalidade de lei municipal que proibia a utilização de material didático sobre "ideologia de gênero" nas escolas públicas [11].

Lado outro, o STF também foi firme em reconhecer o valor da ciência, minando um dos elementos do fascismo o anti-intelectualismo [12]. Sobre isso, podem ser citados os precedentes nos quais: 1) se estabeleceu a autonomia de Estados e municípios para adotar medidas de contenção à pandemia, desde que amparadas em orientações de seus órgãos técnicos correspondentes [13]; 2) se destacou que a desconsideração dos dados da ciência poderia levar à responsabilização dos agentes públicos [14]; e 3) se fixou tese acerca da obrigatoriedade de imunização por meio de vacina [15].

Todavia, a despeito desses avanços, não se pode olvidar que o neoliberalismo autoritário e o populismo penal são fatores estruturantes da crise democrática contemporânea. E, nesses pontos, ainda há passos a percorrer.

O neoliberalismo autoritário caracteriza-se pela redução da intervenção estatal na economia e desmantelamento do sistema de proteção social. Em síntese: adota-se uma política de austeridade que prioriza dos interesses das grandes empresas e rejeita os direitos sociais, trabalhistas e ambientais. A prova disso é que, durante a pandemia, o negacionismo do presidente veio a se revelar não como produto de desinformação, mas como opção por priorizar as atividades econômicas em detrimento das vidas.

Nesse ponto, há que se aperfeiçoar a vigilância. Durante o ano de 2020, o STF validou acordos individuais de redução salarial [16], contribuindo para o enfraquecimento dos sindicatos; e, apesar de ter deferido requerimentos importantes, como a criação de barreiras sanitárias e a instalação de sala de situação, indeferiu a retirada de garimpeiros e madeireiros das terras indígenas, os quais são os principais vetores de transmissão do vírus [17].

Ademais, muito embora sejam monocráticas, não se pode deixar de citar, diante do seu impacto, decisões que suspenderam liminares que asseguravam o direito à alimentação escolar no contexto da pandemia. Após terem sido deferidas diversas medidas de urgência na grande maioria das 22 ações propostas pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPERJ) [18], o ministro Dias Toffoli suspendeu, até onde se tem notícia, todas cujos entes federativos entraram com requerimento de suspensão durante a sua presidência, entre elas a referente a Angra dos Reis [19], Mendes [20], Queimados [21] e São Pedro da Aldeia [22], além do Estado do Rio de Janeiro [23]. Como fundamento, o ministro afirmou que as decisões geravam subversão à ordem administrativa, consequências para o orçamento e violação à separação dos poderes. Olvidou-se, contudo, que foram mantidas as transferências dos recursos do Programa Nacional de Alimentação (PNAE) durante a pandemia e que se trata de política pública com assento constitucional, além de essencial ao mínimo existencial.


 

 

 

 

 

Com efeito, é premente que o STF também seja firme no combate ao desmantelamento do sistema de proteção social, já que é preciso assegurar uma liberdade igual [24] a todos, o que pressupõe a possibilidade real de fazer escolhas e os meios indispensáveis para que esse direito seja verdadeiramente fruído [25]. Assim, uma análise econômica do Direito não deve significar o esvaziamento de direitos constitucionais, sobretudo ao se notar que a Constituição da República de 1988 condiciona a liberdade econômica à promoção da existência digna das pessoas, conforme os ditames da justiça social (artigo 170, caput).

 

Por outro lado, no sistema de Justiça criminal, o Brasil está sob domínio do populismo penal [26], caracterizado por flexibilizações do princípio da legalidade e por um processo penal que, além de midiático, ignora nulidades a partir do brocardo pas de nullité sans grief. A relação dessa conjuntura com a crise democrática é que a Justiça criminal acaba sendo utilizada como instrumento de disputa política, vingança pessoal e promoção profissional [27]. Não é à toa, portanto, que foram frequentes relativizações do princípio da legalidade em regimes de cunho autocrático no século 20, como a do Código Penal alemão que punia atos que violavam não só as normas legais, mas o sentimento do povo.

Nesse contexto, é preocupante o que se viu em relação ao sistema carcerário durante a pandemia da Covid-19. Muito embora tenham sido adotadas medidas descarcerizadoras em diversos países do mundo [28], o STF omitiu-se em deferir requerimentos formulados na cautelar incidental na ADPF 347, na ADPF 684 e no HC 143641. Até mesmo a conclamação feita pelo ministro Marco Aurélio para que os juízes analisassem medidas processuais urgentes em relação à população carcerária foi, no dia seguinte, revogada pelo plenário na ADPF 347 [29]. No mesmo sentido, pesquisa da Folha realizada em maio de 2020 demonstrou que, mesmo nos processos individuais, o STF negou 94% de pedidos de liberdade [30].

Assim, na alta cúpula do Judiciário, durante quase todo o ano, os avanços nessa seara restringiram-se à recomendação nº 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a qual, por não ter efeito vinculante, foi sistematicamente descumprida por diversos tribunais locais. Essa pequena conquista sofreu, ainda, um retrocesso em setembro quando o CNJ editou a Recomendação nº 78/2020 para restringir o espectro da Recomendação nº 62/2020, impedindo a sua aplicação em favor de pessoas condenadas por crimes previstos na Lei nº 12.850/2013 (organização criminosa), na Lei nº 9.613/1998 (lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores), contra a Administração Pública (corrupção, concussão, prevaricação etc.), por crimes hediondos ou por crimes de violência doméstica contra a mulher.

Nesse contexto, mesmo quando motivado por nobres propósitos, verifica-se ser necessário também romper com o uso amplo e imoderado do direito penal para contenção da crise [31]. Por se tratar de um órgão composto de julgadores não eleitos, decisões proferidas para atender às expectativas da sociedade só se legitimam quando visam a resguardar as regras do jogo democrático e os direitos fundamentais.

Dessa forma, não se podendo negar o indispensável papel exercido pelo STF para frear a guinada autoritária, é fundamental que as energias também sejam voltadas à contenção do neoliberalismo autoritário e do populismo penal. Para restabelecimento da democracia brasileira, faz-se indispensável romper com a erosão dos direitos fundamentais dos excluídos, alçando-os em patamar compatível com a sua força normativa.

 


[1] FUX, Luiz. Suprema Vigilância. In: O GLOBO, 10 de janeiro de 2021.

[2] SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Democracia em crise no Brasil: Valores Constitucionais, Antagonismo Político e Dinâmica Institucional. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020. p. 47-143.

[3] BRANDÃO, Rodrigo. Coronavírus, ‘estado de exceção sanitária’ e restrições a direitos fundamentais. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/coronavirus-estado-excecao-sanitaria-direitos-fundamentais-04042020. Acesso em 28/12/2020.

[4] BINENBOJM, Gustavo. Pandemia, Poder de Polícia e Estado Democrático de Direito. In: Revista Eletrônica da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro -PGE-RJ, Rio de Janeiro, v. 3n. 1, jan./abr. 2020.

[5] O GLOBO. Executivo da Hungria busca poderes quase ilimitados em meio à crise do coronavírus. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/executivo-da-hungria-busca-poderes-quase-ilimitados-em-meio-crise-do-coronavirus-24321614. Acesso em 28/12/2020.

[6] STF, Referendo na Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6351-DF. Rel. Min. Alexandre de Moraes. j. 30.04.2020.

[7] STF, Referendo na Medida Cautelar na ADPF 690. Rel. Min. Alexandre de Moraes. j. 20.11.2020.

[8] STF, Mandado de Segurança n.º 37.097-DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes. j. 29.04.2020.

[9] STF, Medida Cautelar na ADPF 722. Rel. Min. Cármen Lúcia. j. 20/08/2020.

[10] STF. Referendo na Medida Cautelar nas ADI 6387, 6388, 6389, 6393, 6390, Rel. Min. Rosa Weber, j. 07/05/2020.

[11] STF, ADPF 457, Min. Alexandre de Moraes, j. 24/04/2020.

[12] SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Democracia em crise no Brasil: valores constitucionais, antagonismo político e dinâmica institucional. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020. p. 166.


 

[13] STF, ADI n.º 6343, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 06/05/2020.

[14] STF, ADI 6421, 6422, 6424, 6425, 6427, 6428 e 6431, rel. Min. Roberto Barroso, j. 21/05/2020.

[15] STF, ADI 6586 e 6587, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 17/12/2020. STF, Recurso Extraordinário com Agravo 1267879, Rel. Roberto Barroso, j. 17/12/2020.

[16] STF, Referendo na Medida Cautelar na ADI 6363, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Redator do Acórdão: Min. Alexandre de Moraes, j. 17/04/2020.

[17] STF, ADPF 709, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, j. 05/08/2020.

[18] DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. DPRJ ajuizou ao menos 22 ações por alimentação a alunos na pandemia. Disponível em: https://defensoria.rj.def.br/noticia/detalhes/10981-DPRJ-ajuizou-ao-menos-22-acoes-por-alimentacao-a-alunos-na-pandemia. Acesso em 09/01/2021.

[19] STF, Medida Cautelar na Suspensão de Tutela Provisória 434-RJ, Min. Presidente Dias Toffoli, j. 07/07/2020.

[20] STF, Medida Cautelar na Suspensão de Tutela Provisória 475-RJ, Min. Presidente Dias Toffoli, j. 16/07/2020.

[21] STF, Medida Cautelar na Suspensão de Tutela Provisória 495-RJ, Min. Presidente Dias Toffoli, j. 29/07/2020.

[22] STF, Medida Cautelar na Suspensão de Liminar 1.342-RJ, Min. Presidente Dias Toffoli, j. 23/07/2020.

[23] STF, Medida Cautelar na Suspensão de Liminar 1.360-RJ, Min. Presidente Dias Toffoli, j. 01/09/2020.

[24][24] BINENBOJM, Gustavo. Liberdade igual: o que é e por que importa. 1.ª ed. Rio de Janeiro: História Real, 2020. p. 102.

[25][25] SARMENTO, Daniel. Dignidade da Pessoa Humana – Conteúdo, Trajetórias e Metodologia. 2.ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 152-159.

[26] DORNELLES, J. R. W. Criminalização da política, estado de exceção, populismo penal e a criminalização da política. In: Sistema Penal & Violência, v. 8, n.º 2, 2016; GOMES, Luiz Flávio. Populismo penal midiático: caso mensalão, mídia disruptiva e direito penal crítico. São Paulo: Saraiva, 2013.

[27] SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Democracia em crise no Brasil: valores constitucionais, antagonismo político e dinâmica institucional. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020. p. 292.

[28] PRISON POLICY INITIATIVE. Responses to the COVID-19 pandemic. Disponível em: https://www.prisonpolicy.org/virus/virusresponse.html. Acesso em 09/01/2021; GOV.UK. Covid-19: Prison releases. Disponível em: https://www.gov.uk/government/publications/covid-19-prison-releases. Acesso em 09/01/2021.

[29] STF, Referendo em Tutela Provisória Incidental na ADPF 347, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 18/03/2020.

[30] FOLHA. STF resiste a pressões para soltar presos durante a pandemia. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/05/stf-resiste-a-pressoes-para-soltar-presos-durante-pandemia.shtml. Acesso em 09/01/2021.

[31] BELO, Ney. Democracia e direito penal: articulações necessárias. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-mai-26/crime-castigo-democracia-direito-penal-articulacoes-necessarias. Acesso em 11/01/2021.

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