Opinião

Bíblia e ambulantes declarados patrimônio cultural imaterial do Rio: o que significa?

Autor

  • Sonia Rabello

    é jurista professora colaboradora do Lincoln Institute of Land Policy (EUA) no Programa de Capacitação para América Latina ex-procuradora-geral do município do Rio de Janeiro e professora titular na FDir/UERJ (aposentada).

19 de janeiro de 2021, 21h57

Neste mês de janeiro, em meio às desditas da pandemia da Covid-19 e da recuperação fiscal do Estado do Rio de Janeiro, passaram a viger duas leis insólitas: as Leis 9.170 e 9177, ambas feitas para declarar, respectivamente, os trabalhadores ambulantes de trens e a "Bíblia sagrada" como patrimônios culturais imateriais do Estado.

O que será que pretenderam os deputados estaduais com essas leis?

A primeira resposta é óbvia: ter numericamente mais uma proposição legislativa em seus currículos parlamentares. E essa pressão para ter muitas propostas legislativas, independentemente da qualidade ou do inócuo da proposição, nem é somente culpa dos mesmos.

Em geral, existe uma pressão rasteira da mídia, que, ao comentar e classificar a atividade de um parlamentar, tem como uma das primeiras avaliações feitas a quantidade de propostas legislativas que ele ou ela tem ou teve em seu mandato, independentemente do que foi proposto. Como consequência, a quantidade de propostas legislativas inócuas ou inconstitucionais é enorme, e constitui um desserviço e uma perda incalculável de tempo da tarefa legislativa e um acúmulo incalculável de ações no Judiciário. Um custo público para ambos os poderes, que poderia e deveria ser contabilizado para ser cortado em tempos de economia e racionalização dos serviços públicos pagos pelo contribuinte.

O segundo interesse é um agrado inócuo a determinados grupos de eleitores. Os parlamentares proponentes sabem (ou não?) que esses grupos de eleitores ignoram que o efeito prático daquela lei é provavelmente nenhum, especialmente quando declaram algo (a Bíblia ou o biscoito Globo), ou alguma atividade ou pessoa (trabalhadores ambulantes nos trens), "patrimônio imaterial". Aliás, como um trabalhador ambulante poderia ser patrimônio imaterial?

De qualquer forma, a cada lei declarando patrimônio cultural imaterial há um frisson criado pela expectativa trazida nesse "agrado". O que irá acontecer agora que a Bíblia foi declarada patrimônio imaterial fluminense? Se alguém tiver uma Bíblia antiga e rasgada não poderá mais jogá-la no lixo? Ah, pode, sim, pois o patrimônio é imaterial, e não a coisa, o livro que alguém tem em casa, no templo ou na igreja.

E quanto aos trabalhadores ambulantes? A concessionária não poderá mais proibir o comércio de ambulantes nos trens? Está liberado para quem quiser vender qualquer coisa ou só para os trabalhadores que já estiverem em atividade? Ninguém mais entra ou saí? E para determinados produtos ou só para balinhas, cosméticos, acessórios de eletrônicos? Ou são os trabalhadores que são patrimônio, mesmo que não exerçam ou possam exercer mais a atividade?

Bem, não importam as perguntas sobre os efeitos da lei, pois nem mesmo a Administração saberá se estará obrigada a ter qualquer ação sobre o que foi declarado patrimônio imaterial por ato da legislativo. Isso porque o ato legislativo não disse quais os efeitos que pretendeu atribuir à sua declaração de patrimônio imaterial. Por isso, ambas as leis, como tantas anteriores, são meramente declarativas, não dizem nem quais são os seus efeitos, nem qual é a proteção pretendida. Nesse sentido, são inócuas.

Atos legislativos não podem atribuir serviços obrigatórios a outro poder, no caso, ao Executivo. Isso porque serviços administrativos acarretam aumento da despesa para desempenho daquela atividade.

Então, o único efeito dessas leis declaratórias é vê-las como uma homenagem que o Parlamento faz a algum grupo de pessoas. Mas o excesso deste tipo de homenagem faz o assunto virar ordinário e vulgar.

A "homenagem" resume-se a um papel publicado em um Diário Oficial, que irá somar-se aos projetos de algum parlamentar necessitado de se legitimar com números para atender, quem sabe, a alguma pressão da mídia. Vale a pena?

Autores

  • é jurista, professora colaboradora do Lincoln Institute of Land Policy (Mass. EUA) no Programa de Capacitação para América Latina e ex-procuradora geral do município do Rio de Janeiro.

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