Paradoxo da Corte

Inusitado julgamento de recurso de apelação pelo tribunal arbitral

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

19 de janeiro de 2021, 8h01

No âmbito da praxe forense, é sabido que ninguém pode categoricamente afirmar que jamais ocorrerá determinada situação! Quando menos se espera ela surge…

Deparei-me com inusitado julgado, de 14 de outubro de 2020, da 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, prolatado no Conflito de Competência 165.678/SP, da relatoria da ministra Maria Isabel Gallotti, que declarou, à unanimidade de votos, competente o Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canada (CAM-CCBC) para o julgamento do recurso de apelação interposto contra sentença proferida nos autos de tutela de urgência antecedente à instauração de processo arbitral.

Examinando a controvérsia de forma mais detida, observo que, com fundamento no artigo 22-A da Lei de Arbitragem, a empresa X, que havia celebrado um contrato com a sociedade Y, ajuizou pedido de tutela perante a 1ª Vara Empresarial e Conflitos de Arbitragem do Foro Central da Comarca de São Paulo requerendo, entre outras providências, a retirada da requerida do mercado e a apreensão de seus segredos comerciais. Observo que o pleito foi atendido, com o proferimento de sentença de procedência, na qual reconhecida a vigência de todas as obrigações e ônus constantes do contrato de compra e venda de quotas da empresa Y, a qual foi condenada ao pagamento de honorários advocatícios no elevado montante de quase R$ 15 milhões.

Irresignada com os termos da sentença, a empresa Y interpôs recurso de apelação, oportunamente distribuído à 2ª Câmara de Direito Empresarial do TJ-SP, sob a relatoria do desembargador Sérgio Shimura.

Nesse ínterim foi instaurado, a requerimento da empresa X, processo arbitral perante o CAM-CCBC, em razão da existência de controvérsia acerca da implementação das condições no tempo e modo devidos, previstas no mencionado contrato de compra e venda das quotas da empresa Y, objetivando ainda a definir eventual inadimplemento de obrigações relativas às garantias para pagamento do preço final.

Ocorre que nos autos do recurso de apelação, noticiada a instituição da arbitragem, o desembargador relator declinou de sua competência, frisando corretamente que a instauração do processo arbitral implicou a perda superveniente de objeto da apelação, a teor do artigo 22-B da Lei de Arbitragem. Todavia por paradoxal que possa parecer , o relator e, em sequência, a referida turma julgadora, em sede de agravo interno, ratificaram a condenação da verba honorária fixada na sentença de procedência do pedido cautelar, valendo-se do fundamento de que não houve impugnação atinente à condenação da verba honorária e tampouco em relação ao valor atribuído à causa. Seguiu-se a inusitada determinação do desembargador relator, in verbis: "Dessa forma, os autos devem ser prontamente encaminhados ao juízo arbitral, para que este assuma o processamento da ação e, se for o caso, reaprecie a tutela conferida, mantendo, alterando ou revogando a respectiva decisão, nos termos do artigo 22-B da Lei 9.307/96".

Observa-se, destarte, que o problema redunda na questão da competência para fixar a sucumbência imposta na sentença proferida na ação cautelar preparatória de arbitragem, sobretudo após o aludido órgão fracionário do TJ-SP ter declinado de sua competência para o exame e julgamento da apelação.

Importa salientar, antes de mais nada, que o tribunal estatal, embora entendendo despido de competência para decidir o mérito da apelação, considerou-se competente (!!!) para proferir decisão ratificando os honorários de sucumbência no percentual de 10% do valor da causa atualizado a favor dos patronos da requerente.

Diante dessa situação, de fato, inédita, a parte requerida, isto é, a empresa Y, suscitou a instauração de conflito positivo de competência perante o STJ.

Pois bem, instado a prestar informações nos autos do referido conflito de competência, o tribunal arbitral informou os pedidos submetidos à arbitragem, constando, entre eles, além de ampla apreciação de mérito da controvérsia, o de: "Declarar a ineficácia e inexigibilidade da condenação ao pagamento de honorários advocatícios revogando a determinação conferida no procedimento de tutela cautelar, em razão da competência única e exclusiva deste tribunal arbitral para decidir em caráter definitivo acerca da sucumbência, inclusive com relação à medida cautelar…".

Concluiu o tribunal arbitral suas informações, assinalando: "Ressalta-se que a análise do cabimento dos honorários advocatícios e a fixação de seu valor dependem da prévia avaliação dos pedidos preliminares formulados pelas partes sobre a manutenção ou revisão da tutela de urgência concedida pelo Juízo da 1ª Vara Empresarial e Conflitos de Arbitragem da Comarca de São Paulo (…) Tendo isso em vista, o tribunal arbitral informa que tais pedidos ainda não foram apreciados no âmbito do procedimento arbitral, o que será feito no momento apropriado e esgotado o contraditório".

O TJ-SP, a seu turno, ao prestar as informações requisitadas, asseverou que, como não houve insurgência quanto à verba sucumbencial no recurso de apelação, não havia possibilidade de modificação de tal capítulo da sentença, razão pela qual a órgão julgador de segundo grau entendeu pertinente a ratificação da condenação na verba honorária.

Diante desse cenário, o conflito foi suscitado forte no argumento de que ambos os tribunais estatal e arbitral entenderam competentes para decidir acerca dos consectários da sucumbência arbitrados na precedente medida cautelar.

Ao julgar o conflito, a ministra relatora Maria Isabel Gallotti ponderou que, na verdade, o capítulo da sentença referente à sucumbência, enquanto não encerrado o processo, não é autônomo, mas consectário do que vier a ser decidido acerca do mérito. "O trânsito em julgado é determinante para conferir autonomia aos honorários advocatícios, conforme consta com abundância na jurisprudência desta corte…".

E, assim, diante dessa premissa, acompanhando o voto condutor, a 2ª Seção do STJ, afinal, reconheceu a existência do conflito e declarou competente o CAM-CCBC "para o julgamento da apelação contra a sentença no processo cautelar, inclusive no que toca aos ônus da sucumbência".

Ora, bem analisada a questão, verifica-se que o TJ-SP se equivocou ao afrontar o disposto no artigo 22-B da Lei de Arbitragem, que tem precisa redação: "Instituída a arbitragem, caberá aos árbitros manter, modificar ou revogar a medida cautelar ou de urgência concedida pelo Poder Judiciário".

Nota-se, como acima visto, que entre os pedidos formulados pela empresa Y, ao requerer a instauração do processo arbitral, constava aquele referente à revisão da condenação fixada nos autos da precedente tutela de urgência.

Desse modo, tão logo noticiada a instauração do processo arbitral, a corte de Justiça paulista, em atenção ao disposto no referido artigo 22-B, deveria simplesmente julgar prejudicado o recurso de apelação, à vista da ausência superveniente de um pressuposto processual, qual seja, a superveniência da arbitragem, implicativa da extinção do processo sem resolução do mérito (artigo 485, inciso VII, do Código de Processo Civil), e enviar os respectivos autos ao tribunal arbitral.

E isso porque, a despeito da legítima possibilidade de prévio ajuizamento de tutela antecedente para a adoção de medidas urgentes perante o Poder Judiciário, a atribuição para processá-la, após a instauração da arbitragem, passa imediatamente a ser do juízo arbitral, ao qual caberá, recebendo os autos, reanalisar todas as decisões eventualmente já proferidas, e, em consequência, dispor, de forma definitiva, inclusive no que concerne aos consectários da sucumbência.

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